Há também uma apuração sobre o Grupo São Francisco, no interior de São Paulo, que foi comprado pela Hapvida em 2019.
A ANS, agência reguladora dos planos de saúde, passou a investigar a Hapvida após relatos de que a empresa supostamente pressionava médicos de diferentes locais, inclusive no Grupo São Francisco, para receitar hidroxicloroquina em casos suspeitos ou confirmados de covid-19.
Na manhã desta segunda-feira (27/09), a ANS fez "diligências in loco" nas sedes da Hapvida e do Grupo São Francisco para buscar "mais informações para o processo de apuração" sobre as suspeitas de irregularidades. A agência não detalhou quais os materiais que foram alvos e que serão analisados na investigação.
Em abril, o Ministério Público Estadual do Ceará (MP-CE) multou a Hapvida em R$ 468 mil por, segundo o MP-CE, "impor, indistintamente a todos os médicos conveniados, que receitem determinados medicamentos no tratamento de pacientes com Covid-19". Após aplicar a penalidade, o promotor de Justiça Hugo Vasconcelos Xerez, responsável pelo procedimento, pediu ainda que o caso fosse encaminhado para a ANS.
A Hapvida protocolou recurso contra a multa aplicada pelo MP-CE e aguarda resposta.
Em 30 de agosto, a ANS começou a investigação contra a Hapvida. "Há processo apuratório em andamento em virtude de denúncia feita por prestador referente à restrição de liberdade profissional, quanto à prescrição de medicamentos", explica a agência em comunicado à BBC News Brasil.
No caso da operadora São Francisco, o procedimento da ANS foi aberto em 8 de setembro, após denúncias de médicos que atuam na empresa. A agência reguladora explica que conduz "a apuração de eventual restrição, por qualquer meio, à liberdade do exercício de atividade profissional do prestador de serviços".
Apesar de a operadora do interior de São Paulo pertencer à Hapvida, a ANS argumenta que abriu duas apurações distintas porque a "São Francisco tem CNPJ próprio, devendo obedecer à legislação de saúde suplementar e estando sujeita a sanções caso cometa infrações".
Em nota à reportagem, a Hapvida nega que tenha feito pressão para o uso da hidroxicloroquina em seus hospitais e afirma que respeita a autonomia médica. "Além disso, a prescrição de quaisquer medicações sempre foi feita de comum acordo, formalizado entre médico e paciente durante consulta", diz comunicado da empresa.
A ANS também conduz atualmente duas apurações contra a Prevent Senior. As denúncias contra a operadora de saúde não se resumem, como no caso da Hapvida, à suposta imposição do uso de medicamentos sem comprovação contra a doença.
Segundo a ANS, contra a Prevent Senior há uma apuração, aberta em 8 de setembro, "para verificar se os médicos sofreram restrição na sua liberdade profissional" e outra, aberta em 20 de setembro, "para verificar se os beneficiários foram devidamente informados sobre os riscos da utilização dos medicamentos".
De acordo com um dossiê elaborado de forma anônima por médicos e ex-médicos da Prevent Senior, a empresa também cobrava a utilização de hidroxicloroquina contra a covid-19. O uso do medicamento seria imposto junto com azitromicina, em um "kit covid".
Outras denúncias contra a empresa, que vieram à tona durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, apontam supostas fraudes em um estudo sobre a hidroxicloroquina e ocultação de mortes pela doença (entenda mais aqui).
Em 17 de setembro, a ANS fez diligência na Prevent Senior. A agência afirma que atualmente está analisando a documentação obtida e aguarda respostas sobre um pedido para ter acesso a informações e documentos encaminhados à CPI da covid-19.
A Prevent Senior nega as acusações, alega que o dossiê contra a empresa é fruto de dados roubados e manipulados e pede que a Procuradoria-Geral da República investigue o caso.
A hidroxicloroquina na Hapvida
Em agosto de 2020, a BBC News Brasil publicou uma reportagem na qual médicos de diferentes regiões do país relataram a pressão da empresa para receitar o remédio. Dois profissionais de saúde disseram que foram dispensados por não adotarem o medicamento para a doença, por não haver comprovação científica.
A reportagem conversou novamente com esses profissionais de saúde na quinta-feira (23/09). Os dois afirmam que a Hapvida fazia pressão para o uso de hidroxicloroquina de forma muito parecida com o que tem sido relatado sobre a Prevent Senior.
"Eles (na Hapvida) conferiam no sistema quem havia prescrito hidroxicloroquina (a pacientes com a covid-19) e quem não tinha. E chamavam a atenção e ameaçavam dispensar todos aqueles que não prescrevessem", conta um médico ouvido pela reportagem, que pediu para não ser identificado. Ele diz ter sido dispensado pela empresa ao se recusar a receitar o medicamento a pacientes com a covid-19.
Esse profissional, que atuou em uma unidade do Grupo São Francisco no início da pandemia, diz que havia reuniões com médicos nas quais os superiores afirmavam que tinham um "estudo pronto para a publicação" que mostrava que havia menos mortes e internações entre pacientes que tomavam a hidroxicloroquina.
"Eles falavam que iam mandar esse estudo para quem quisesse, mas nunca me mandaram", diz o profissional de saúde.
Segundo os médicos, a Hapvida adotou um protocolo que indica o uso da hidroxicloroquina nos primeiros dias de sintomas da covid-19. Nas orientações da rede, a droga é contraindicada em casos de pessoas que têm dificuldades como problemas cardíacos ou renais ou alergia à medicação.
O protocolo da Hapvida também incluía outros medicamentos, como o antiparasitário ivermectina, o corticoide prednisona e o antibiótico azitromicina. Mas os profissionais de saúde alegam que a pressão maior era para a prescrição de hidroxicloroquina.
A Hapvida não detalha, em nota à BBC News Brasil, sobre a fonte que usava como referência para definir a forma como o medicamento seria usado entre os pacientes com a covid-19.
O médico Felipe Peixoto afirma que a Hapvida dizia que o uso da hidroxicloroquina era fundamental. Segundo ele, a operadora argumentava que os números de internações e de pacientes em estado grave diminuíram após adotar o remédio.
"Mas na verdade não tinha nenhum dado concreto em relação a isso. Não foi garantido nenhum método de segurança para os pacientes que tomavam a medicação", afirma. Ele conta que foi dispensado ao se recusar a prescrever o medicamento a pacientes em uma unidade da operadora de saúde em Fortaleza (CE).
Parte da suposta pressão que sofriam para o uso do remédio, segundo os médicos, ocorria por meio de grupos de WhatsApp para profissionais da empresa. Eles dizem que essa cobrança também ocorria pessoalmente em alguns casos.
Peixoto conta que, antes de ser dispensado pela empresa, um chefe responsável por uma unidade de saúde da rede afirmou, em um grupo de WhatsApp, que não cabia "discussão sobre a hidroxicloroquina". Ele teria ainda, segundo o médico, orientado os profissionais a parar de informar sobre os riscos da medicação.
A cobrança para a adoção do remédio, dizem os médicos, aumentou a partir de maio de 2020, quando a Hapvida anunciou que havia adquirido milhares de unidades de hidroxicloroquina e passou a entregá-las gratuitamente aos seus clientes. Na época, a empresa divulgou a compra dos medicamentos e argumentou que isso se deu em razão dos bons resultados que o fármaco trazia para pacientes com a covid-19.
A cloroquina e o seu derivado, a hidroxicloroquina, são medicamentos usados para tratar doenças como lúpus, artrite, reumatoide e malária. Desde o ano passado, estudos apontam a ineficácia desses fármacos para o combate à covid-19.
Na apuração sobre a Hapvida, a ANS busca informações como quem seriam os responsáveis por exigir a prescrição da hidroxicloroquina e como era feita a suposta auditoria dos prontuários, que segundo os relatos ocorriam para checar se o remédio havia sido receitado.
No comunicado em que nega qualquer cobrança para a prescrição da hidroxicloroquina, a Hapvida afirma que defende a liberdade profissional para que os médicos possam definir "os tratamentos mais adequados para paciente, de acordo com as informações disponíveis no momento do atendimento".
O que pode acontecer após a apuração da ANS?
A ANS afirma que ao término da apuração sobre a Hapvida, assim como no caso da Prevent Senior, avaliará "a eventual adoção de medida" se ficar comprovado que houve irregularidades.
"Os resultados das diligências estão sendo analisados e subsidiarão as decisões quanto às medidas que deverão ser adotadas. Todavia, se forem constatadas ações que não sejam de competência da Agência, os documentos poderão ser encaminhados para as entidades competentes", diz comunicado da ANS à BBC News Brasil.
Se houver novas denúncias sobre possíveis irregularidades de outras operadoras de saúde do país, a ANS afirma em nota que "novos processos poderão ser instaurados".
A advogada Luciana Dadalto, especialista em direito médico e da saúde, explica que a ANS pode aplicar diferentes tipos de punição se ficar comprovado que as operadoras agiram de modo ilegal.
As normas da ANS definem que as operadoras não podem custear "tratamentos ilícitos ou antiéticos, assim definidos sob o aspecto médico, ou não reconhecidos pelas autoridades competentes". Além disso, diz que essas empresas não podem interferir na autonomia dos profissionais de saúde.
"O maior problema no Brasil atualmente é a falta de compreensão de que a prescrição do "kit covid" é antiética, porque a gente fala de um tratamento sem comprovação científica", aponta a especialista.
Se a ANS entender que houve algum tipo de ilegalidade da operadora, as punições podem variar de suspensão temporária de venda de planos de saúde ao cancelamento da autorização do funcionamento da empresa.
"A ANS tem competência também para punir administradores da operadora, não só o plano em si. Ela pode punir administradores ou membros dos conselhos se houver alguma violação", diz Luciana.
Além disso, a agência reguladora pode encaminhar as apurações para o Ministério Público, que pode conduzir o caso nas instâncias criminal e civil na Justiça.
O caso também pode, se as irregularidades forem confirmadas, ser encaminhado para o Conselho Regional de Medicina (CRM) e para o Conselho Federal de Medicina (CFM) para que os envolvidos sejam punidos administrativamente.
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