A Justiça Federal do Rio de Janeiro deferiu liminar que proíbe o governo federal de "praticar qualquer ato institucional atentatório à dignidade intelectual" de Paulo Freire. A decisão da juíza Geraldine Vital, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro, engloba servidores públicos, autoridades e integrantes do atual governo, que serão multados em R$ 50 mil caso não respeitem a ordem.
O pedido foi feito pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que denunciou à Justiça agressões verbais e decisões institucionais nos diversos órgãos de educação contra o patrono da educação brasileira.
Um dos ataques do governo apontados pelo MNDH foi a alteração na plataforma criada para professores buscarem cursos de aperfeiçoamento profissional, chamada até então de Plataforma Freire. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes) foi responsável pela mudança, e renomeou o espaço como Plataforma da Educação Básica.
O movimento também afirma que o presidente da República “já defendeu, em seu plano de governo, expurgar a filosofia freiriana das escolas” e que “o ideólogo de direita Olavo de Carvalho também ataca o legado de Freire”.
Em um dos episódios, em 3 de dezembro de 2019, o guru de Bolsonaro, Olavo de Carvalho, usou as redes sociais para questionar a relevância de Paulo Freire. “Que é que o Paulo Freire fez pela educação brasileira? P**** nenhuma. Não alfabetizou nem o Lula”, disse.
No mesmo ano, em 2019, o Ministério da Educação não renovou o contrato com a associação responsável por gerir a TV Escola. Na ocasião, Bolsonaro disse a apoiadores, no cercadinho do Palácio da Alvorada, que o canal era “totalmente de esquerda” e que “os caras” eram "formados em cima dessa filosofia do Paulo Freire”, a quem chamou de “energúmeno, ídolo da esquerda”. De acordo com o dicionário Houaiss, energúmeno significa ignorante, boçal ou imbecil.
Juíza defende legado de Freire
Na decisão, Geraldine ressalta o legado de Paulo Freire ao afirmar que ele “esteve à frente de políticas como o Programa Nacional de Alfabetização e a Educação de Jovens e Adultos e influenciou no movimento denominado pedagogia crítica”. A magistrada ainda afirma que as ideias do patrono ainda são atuais e servem de base para diversas obras e movimentos educacionais.
Geraldine também afirma que, apesar da liberdade de manifestação do pensamento, há um limite para emitir opiniões. “Quando há abuso de direito pela expressão que ameace a dignidade, tem-se violação capaz de liquidar a finalidade da garantia constitucional, desfigurando-a”, pontua na decisão.
Dessa forma, a juíza entende que há “perigo de dano” em não se respeitar o título de Patrono da Educação Brasileira, e por isso a liminar foi deferida, três dias antes do Centenário de Freire. A Advocacia-Geral da União (AGU) tem até 15 dias para recorrer da decisão.
Você sabia?
Paulo Freire ganhou a maior honraria da Educação brasileira ao ser condecorado com o título de patrono, pela Lei nº 12.612/12. Na época, a diretora de educação integral do Ministério da Educação, Jaqueline Moll, afirmou que Freire “é a figura de maior destaque da educação, pelo olhar novo que ele constrói sobre o processo educativo”.
De fato, o educador e filósofo pernambucano (1921-1997) não é reconhecido apenas em terras brasileiras. Ele é o brasileiro mais homenageado da história, com 35 títulos de Doutor honoris Causa concedidos por universidades da Europa e da América, além de ser o detentor do prêmio Educação para a Paz da Unesco, em 1986.
Com infância vivida durante a depressão de 1929, Freire conviveu com a pobreza e a fome na infância. Depois de se graduar em direito pela Universidade de Recife — atual Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) —, ele optou por lecionar língua portuguesa, com foco nos analfabetos.
Em 1961, sendo diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade de Recife, Freire delimitou um desafio e cumpriu com êxito: montar uma equipe para alfabetizar 300 cortadores de cana em 45 dias. O feito foi reconhecido três anos depois pelo governo de João Goulart, que multiplicou o método no Plano Nacional de Alfabetização. Poucos meses depois, o plano foi interrompido pelos militares que assumiram o governo.
Freire deixou o país e passou 16 anos em exílio. Viveu entre Chile, Suíça, Estados Unidos e Inglaterra, além de difundir o método de ensino dele em países africanos que falam a língua portuguesa, como Guiné-Bissau e Cabo Verde. As experiências e o método foram reunidos na obra mais conhecida de Freire, A pedagogia do Oprimido, com um modelo de educação humanizado e dinâmico.