Justin Trudeau, primeiro-ministro canadense, recebe uma chuva de cascalho, franceses saem às ruas em protesto e alguns brasileiros, em vez de estender as mãos à saúde, preferem encolher o braço e se entregar à própria sorte. Em vários cantos do mundo, homens e mulheres dizem não à imunização contra o novo coronavírus e partem para o ataque, atirando pedras, como ocorreu no Canadá, ou se escorando em teorias da conspiração para desqualificar as vacinas. Exatos oito meses após a primeira pessoa ter sido vacinada contra a COVID-19 no Brasil, uma pergunta merece reflexão e urgência na resposta. Por que as vacinas ainda despertam polêmica, arrebanham negacionistas e ganham estocadas quando salvam vidas?
“As pessoas devem ter tranquilidade para saber que as vacinas são seguras e os efeitos colaterais, muito raros. Todos nós precisamos nos proteger”, diz a médica infectologista da Santa Casa BH, Cláudia Murta. Ela integra o comitê de enfrentamento à COVID-19 do hospital que faz parte da rede do Sistema Único da Saúde (SUS) e é referência, pela Prefeitura de Belo Horizonte, no atendimento a casos da doença respiratória. A especialista credita a causa de certa polêmica à falta de conhecimento sobre os imunizantes e, nos últimos anos, à disseminação de fakenews e do movimento antivacina mundo afora.
Em 17 de janeiro, a enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, foi a primeira pessoa a ser vacinada contra a COVID-19 no Brasil. Ela recebeu o imunizante Coronavac, desenvolvido no país pelo Instituto Butantan, em São Paulo. Em 12 de fevereiro, Mônica recebeu a segunda dose e disse à imprensa que sofreu ataques nas redes sociais.
O movimento antivacina é forte em alguns países, mas não no Brasil, como destaca a infectologista Cláudia Murta. A partir de 1904, ano da chamada Revolta da Vacina, surgiram pequenos grupos contrários à imunização, embora sem grande movimento e alarde. Nossa população, no geral, aceita muito bem as vacinas, tanto que o Brasil apresenta um dos menores índices de rejeição a elas, conforme estudos realizados”, diz a médica. Entre episódios que circularam recentemente está o de que vacinas causariam autismo, relação jamais comprovada pelas pesquisas para alívio dos pais e sinal de vitória da ciência sobre o obscurantismo.
Líquido e certo
Orientando que todos devem entender as vacinas como os produtos farmacêuticos, ou seja, os remédios mais seguros existentes hoje, Cláudia Murta compara os efeitos dos imunizantes a outro bem da humanidade. “Vacinas salvam milhões de vidas todos os anos, e sua contribuição, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), é comparável à agua tratada, que também salva milhões de vidas. As vacinas vêm logo em seguida.”
Ao falar dos benefícios das vacinas, Cláudia Murta cita as várias doenças erradicadas e outras que podem ter o mesmo fim. Exemplo positivo está na vacinação contra a poliomielite, conhecida por paralisia infantil, com grande sucesso nas campanhas que levaram à erradicação da doença, evitando sequelas e problemas motores em milhares de crianças.
Durante a pandemia, com a maior parte da população em casa, meses em reclusão, houve queda nas coberturas vacinais, sem se atingir a meta ideal de 95%. A infectologista alerta para atualização do calendário de todas as faixas etárias para se evitarem doenças graves principalmente nas crianças. E ensina o caminho: as vacinas estão disponíveis gratuitamente no SUS, com possibilidade de o cartão ser complementado na rede partícular para algumas doenças.
Sem as doses de proteção, os perigos vêm de todo lado. Com a queda da cobertura vacinal, o sarampo, que estava erradicado no Brasil, voltou a causar vítimas e até morte em adultos. “Houve circulação do vírus do sarampo entrando pelo Norte do país. Sim, vieram estrangeiros não vacinados, mas se a população brasileira estivesse com uma cobertura alta para o sarampo, o vírus não teria circulado”, explica a médica, observando a necessidade de imunização contra várias doenças para crianças no primeiro ano de vida e depois os reforços em adolescentes, grávidas, adultos e idosos, com a oferta da vacina contra gripe anualmente. “Precisamos nos proteger e também a coletividade”.
Preconceito
Contra o preconceito, a favor da ciência. Um ano e meio após a Organização Mundial de Saúde declarar a pandemia, o mundo ainda vive imerso em negacionismo e contradições. “Vivemos um fenômeno mundial de desinformação, as chamadas fake news, e as vacinas, por estarem num momento de enorme evidência devido ao coronavírus, têm sido uma das principais vítimas”, diz o diretor do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais, André Christiano dos Santos, médico da família e comunidade.
Segundo André Christiano, ninguém nunca se preocupou com o processo de fabricação de vacinas, os percentuais de efetividade esperados, onde são fabricadas. “De uma hora para outra, boa parte da população passou a se preocupar com isso, se achando até especialista no assunto e trazendo preconceitos para algumas vacinas, com boicote ao seu uso.”
O resultado do desconhecimento gera confusão, medo e alarde desnecessário. “Algumas ideologias e modismos acabam atrapalhando. Há pessoas que não tomam vacinas pelo fato de (os imunizantes) passarem por uma fase de experimentação em animais, outras por acreditarem em falsas premissas de conspirações globais como se um chip fosse implantado no momento da aplicação das vacinas”, avalia André Christiano.
O diretor do Sindicato dos Médicos de Minas destaca que apesar de tantos fatores desfavoráveis a maioria da população tem confiado na ciência e tomado a vacina quando chega o seu momento.” Para resumir, o médico garante que vacina boa é vacina no braço, e no braço da maioria da população que pode se vacinar. Só assim venceremos está pandemia”.
Marcos
1804 – Introdução da vacina no Brasil
1904 – Epidemia de varíola no Rio de Janeiro, aprovação da obrigatoriedade de vacinação e ocorrência da Revolta da Vacina
1937 – Início da produção e uso da vacina contra a febre amarela fabricada no país
1961 – Primeira campanha com a vacinação oral contra a poliomielite
1999 – Primeiro ano da campanha de vacinação para a terceira idade contra gripe, tétano e difteria
Além da falta de informação que compromete a cobertura vacinal, movimento antivacina tem influenciado na rejeição no país e no mundo
Vacinados reconhecem valor da proteção que negacionistas minimizam
Moradora do distrito de São Bartolomeu, em Ouro Preto, na Região Central de Minas, Claudilene Aparecida da Silva, de 33 anos, não se descuida um minuto da saúde dos filhos Henrique, de 8, e Alice, de 7, crianças que irradiam alegria. Mantendo os cartões de vacina e um caderno com as anotações, Claudilene não “cai” em fakenews e muito menos em boatos. “As vacinas evitam um mal maior, servem para nos proteger das doenças”, afirma na porta de casa. Já com a primeira dose contra a COVID-19 no braço, Claudilene adere às campanhas de imunização por dever sagrado: “Vacina é saúde”.
Em Santa Luzia, na Região Metropolitana de BH, o servente de pedreiro Guilherme Rodrigues, de 28, solteiro, também se mostra orgulhoso de ter tomado a primeira dose e guarda da memória os ensinamentos familiares. “Minha mãe diz que a defesa está em nossas mãos e, agora, na ponta da agulha”.
Se há pessoas que acreditam nas vacinas, outras trazem, do berço, a negação desse benefício. “Eu me vacinei agora contra a COVID-19, porque irei à Irlanda visitar minha irmã. Do contrário, não tomaria a injeção. Minha mãe dizia que a doença vem de dentro para fora, o mal está nas palavras, nas ações, e a somatização adoece o corpo físico”, diz uma publicitária de 45 anos, moradora de BH, que prefere não se identificar.
Eis o seu relato: “Quando criança, nunca tomei vacinas. Só fui saber o que era isso aos 19 anos, numa viagem a Goiânia (GO). O ônibus parou numa barreira sanitária e me lembro de ter feito um escândalo. Mas acabei aceitando, pois, do contrário, voltaria para casa. Depois, ao sofrer um acidente, veio a vacina contra tétano. Foram essas e agora a contra a COVID. Tive catapora e rubéola, mas nunca fiquei doente. Com a minha irmã foi diferente, a saúde dela era frágil e, logo criança, recebeu as vacinas”.
Recordando o início da campanha em 1999 para imunizar os idosos contra a gripe, uma mulher residente na Grande BH se recorda ainda com aflição daquele tempoo]. “Minha estava com 70 anos e se recusou a tomar a vacina. Foi ‘na onda, na conversa fiada do povo’ de que o governo queria exterminar os aposentados para acabar com o pagamento dos benefícios e das pensões às viúvas. Desde então, nunca estendeu o braço à saúde. Fico preocupada, pois, com mais de 90, avisou que ‘nem morta’ vai tomar as duas doses contra a COVID-19. Pensei que fosse culpa do pastor da igreja que ela frequenta, mas até ele tentou convencê-la a se vacinar. Pelo menos, minha mãe não sai mais de casa”.
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