O que Dom Pedro I, um precursor da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), um ramo da família latifundiária Fonseca Galvão em Pernambuco e um punhado de clérigos do período da Independência têm em comum?
Para defender a causa da separação política em relação a Portugal, eles "tupinizaram" os próprios nomes de batismo.
A cisão almejada por parte da elite colonial em relação à metrópole portuguesa passou pelo uso da figura do indígena em diversos campos. Bastante presente nas artes, essa utilização se observou com notável força na literatura romântica.
O principal exemplo é Iracema, romance de José de Alencar que põe o nativo na posição de lenda fundadora da nação, no qual a índia "virgem dos lábios de mel" morre para dar à luz o primeiro cearense — ou seria brasileiro? — mestiço.
Outra forma com que membros do alto escalão da sociedade da época empregaram o índio para avançar o interesse pela Independência foi através da onomástica, ao alterar os próprios nomes. É um processo que ficou conhecido como "tupinização" ou, de forma mais abrangente, "indianização" dos sobrenomes, já que não apenas termos do tupi eram usados.
A lógica por trás do fenômeno é simples.
Como havia disputa entre os que queriam a volta à subordinação a Portugal e os independentistas, somente se dizer na vanguarda da Independência do que era então parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves parecia insuficiente. Precisava-se, além do mais, compor o próprio nome com algo ligado à terra brasileira.
"A valorização do elemento indígena durante a Independência foi sobretudo simbólica", explica João Paulo Pimenta, professor do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo). "Simbólica porque o processo de Independência foi, em parte, o processo de criação de antagonismos, entre Brasil e Portugal, que não existiam antes e geraram identidades diferentes, separando os portugueses do Brasil e os portugueses de Portugal."
Uma parte fundamental da criação desses antagonismos consistiu em uma "referência intermediária" pela identificação dos grupos favoráveis à Independência como parte da América, diz Pimenta. "A valorização permitiu criar a imagem de que havia pautas e histórias diferentes entre Brasil e Portugal, entre América e Europa. Por isso, há também uma postura de colocar nos nomes referências ao continente americano em geral."
O 'manifesto nativista' do Visconde de Jequitinhonha
"Estamos falando, a partir desse período, de como uma determinada elite se apropria do que é ser índio e dos valores indígenas", aponta Vania Moreira, professora titular e do programa de Pós-Graduação em História pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). "Foi um primeiro momento de utilização do imaginário acerca do indígena, que se desdobra na literatura com o Romantismo e o desejo da criação de uma cultura eminente brasileira."
O professor emérito pela Universidade de Sorbonne e da Fundação Getulio Vargas, Luiz Felipe de Alencastro, aborda o movimento de troca de nomes ocorrido durante a Independência no texto "Vida privada e ordem privada no império", que consta da coletânea História da vida privada no Brasil (1997). Já que não havia regulação jurídica da matéria até a publicação do Código Civil de 1916, as alterações de nome podiam ser promovidas com relativa facilidade. Além disso, o número de prenomes tradicionais portugueses parecia reduzido, aponta Alencastro.
Dentre tantos, o caso "mais célebre, se não o mais radical", escreve o estudioso, é provavelmente o do visconde de Jequitinhonha — denominação geográfica também de raiz indígena, que tem o significado de "rio largo".
O baiano, nascido em 1794, chamava-se Francisco Gomes Brandão e era filho de um traficante de escravos. Formou-se em Portugal, na Universidade de Coimbra, obtendo os diplomas de filosofia e direito, sendo inclusive um dos precursores da OAB, ao presidir instituto que à época se prestava a representar a classe dos advogados.
Ao retornar a Salvador, entrou a militar pela Independência. No ano de 1824, esforçando-se para mostrar a determinação pela causa, trocou seus nomes portugueses por "um verdadeiro manifesto nativista", afirma o historiador, passando a se chamar Francisco Gê Acaiaba de Montezuma.
"Gê", ou "jê", é um termo que faz menção aos tapuias, expressão genérica para designar grupos indígenas que não falavam tupi-guarani, enquanto Acaiaba é um vocábulo tupi, referente à cajazeira. Já Montezuma é uma referência ao imperador do povo pré-colombiano asteca à época da invasão das tropas espanholas, no início do século XVI. "Colocar um termo asteca nome também era uma forma de se dizer americano e alinhado a um certo povo considerado civilizado", afirma Pimenta, da USP.
Dom Pedro I também está no balaio. Ao passar a frequentar a loja maçônica do Grande Oriente, fundada em junho de 1822 no Rio de Janeiro, o primeiro imperador do Brasil recebeu, como era costumeiro, um nome de batismo: tornou Pedro Guatimozín, referência a outro imperador asteca.
Um exemplo de indianização com elementos indígenas puramente locais ocorreu com um ramo da família de senhores de engenhos Fonseca Galvão, de Pernambuco, "que mudou o nome legitimamente português", como escreve Gilberto Freyre em "Casa Grande e Senzala" (1933), para Carapeba, termo tupi que faz referência a um peixe da família dos guerrídeos. Clérigos e militares também acharam espaço na tendência.
O número 5 da Gazeta Pernambucana, publicado em novembro de 1822 e disponível no arquivo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, chama atenção para um ataque sofrido por um padre e deputado pró-Independência da província — algo que na opinião do periódico seria injustificado por se tratar de alguém favorável à causa do Brasil. A Gazeta, então, listou diversos nomes "tupinizados", de indivíduos que estariam, assim, automaticamente identificados com a separação política, merecendo proteção.
Entre eles, estavam o padre Martinho Caetano Pegado, do Bispado de Pernambuco, que adicionou um "Jacarandá" a seu nome e acabava por expressar seu apoio a Dom Pedro I, recém-feito imperador. Outro destaque tinha o padre Bento Januário de Lima, também de Pernambuco, que para se diferenciar justapunha um "Camará", termo referente a uma planta em tupi. Manuel Alexandre Taveira, segundo tenente de artilharia ligeira da província, "preferindo morte à escravidão e ao despotismo", rogou aos "verdadeiros patriotas" do Império o seu reconhecimento pelo nome modificado pela palavra "Canetudo".
O lugar do indígena no pós-Independência
Outro tipo de menção expressa dos pró-Independência aos indígenas ocorria na forma de criação de meios de imprensa, diz Moreira. Este é o caso de José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado o "Patriarca da Independência" e encabeçador do primeiro ministério formado por brasileiros.
Após o seu pedido de demissão do gabinete de Dom Pedro I, fundou em 1823 um jornal de tendência antilusitana e nativista com nome "O Tamoyo". O título da publicação era uma referência ao grupo indígena que combateu os portugueses no período colonial.
"Era necessário fincar o pé em algo genuinamente brasileiro nessa época para construir a identidade do Estado que está se erguendo. Mas não percamos de vista que o que se tem a partir do Marquês de Pombal e que também é o objetivo de Bonifácio é um projeto de assimilação do indígena, de miscigenação dele com outras raças, até que a sua identidade desapareça", afirma Fernanda Sposito, historiadora e professora da Universidade Federal do Paraná.
Ela se refere ao Diretório dos Índios, iniciativa legislativa de 1757 de Pombal, primeiro-ministro português. Trata-se de uma lei assimilacionista que colocava os aldeamentos indígenas sob administração de um diretor e intencionava transformar os índios em vassalos do rei de Portugal.
Autora da dissertação "Nem cidadãos, nem brasileiros", defendida na USP em 2006, Sposito afirma que o processo de formação de Estado brasileiro não incluiu os indígenas em nenhuma dessas duas categorias. Ela também lembra que o indígena não é sequer mencionado na Constituição de 1824 outorgada por Dom Pedro I.
"Na Assembleia Constituinte de 1823, houve a discussão sobre quem era o brasileiro e, também, quem era o cidadão brasileiro. Vai se dizer que o indígena não é nenhum dos dois, porque vive em guerra com a sociedade e é um selvagem", aponta. "O brasileiro era quem aderia à Constituição, então não importava se você não nascia aqui. O português podia ser considerado brasileiro, desde que residisse aqui à época e declarasse apoio à Carta", explica ela, citando o caso do próprio Dom Pedro I, português de origem.
O próprio Montezuma, que, como vimos acima, indianizou o próprio nome, sendo deputado da Constituinte, defendia a posição de que os índios estavam "fora do do grêmio da nossa Sociedade".
"Não são súditos do Império, não o reconhecem, nem por consequência suas autoridades, da primeira até a última, vivem em guerra aberta conosco; não podem de forma alguma ter direitos, porque não têm nem reconhecem deveres os mais simples", afirmou o deputado, segundo o Diário da Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, disponível pelo Senado Federal.
Sujeitos da história
A professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Mariana Dantas, chama a atenção para o fato de que a apropriação de nomes indígenas e seus retratos na pintura e na literatura pela elite serviram para moldar a ideia de que a população indígena "está no passado, e não no presente de construção do país".
"A referência aos tamoios como um grupo heroico, no caso do periódico de Bonifácio, se localiza no tempo longínquo. É o mesmo caso de Iracema: ela morre, desaparece e só serve para deixar um legado", diz Dantas. "A ideia, não muito óbvia, mas que se insinua nas entrelinhas, é que o indígena está sumindo e, aos poucos, vai sendo esquecido da história".
"É uma ideia que, de alguma forma, perdura até hoje: a de que o índio bom, para a nossa sociedade, é o índio morto", sentencia Pimenta, da USP.
Dantas ressalta que é preciso levar em consideração o indígena como um sujeito político, que, diferentemente de um espectador, é agente da história. "Não é como no quadro do Victor Meirelles", diz ela, em referência à pintura "A primeira missa no Brasil" (1861).
A própria experiência dos indígenas contemporâneos da Independência mostra o grau de sua participação política. Pesquisadora do papel dos índios nas revoltas liberais de Alagoas e Pernambuco em sua tese de doutorado, que lhe valeu o Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa em 2015, a historiadora avalia que os nativos se organizavam a favor ou contra os processos políticos estudados com base nos próprios interesses, como a defesa e o acesso à terra.
"Há uma multiplicidade de formas de luta indígena, mas o nexo comum entre várias participações políticas do índio no século XIX em Pernambuco, Ceará, Espírito Santo ou Rio Grande do Sul, é a inserção deles nas redes de relação local procurando principalmente defender o acesso coletivo à terra coletiva", diz ela, citando ainda que a luta pela negociação do uso da mão de obra compulsória do indígena era outro guia para a posição deles.
Deste modo, índios se associavam a um político local porque este contribuíra, de alguma maneira, para prevenir a invasão de seu território — o aldeamento próximo ao povoamento colonial em que viviam, elucida Dantas. Havia grupos de índios, inclusive, que chegaram a defender a restauração de Dom João VI, durante a Guerra dos Cabanos, já que associavam o regime monárquico à concessão de terras que tinham a seu dispor, explica.
"Tematizar a história indígena não é só citar que os índios estão ali, mas colocá-los em posição de protagonismo. Nós nos esquecemos da sua presença porque nos acostumamos com o índio mítico do passado fundador", diz Moreira, docente da UFRRJ.
"O fato de eles terem acampado na Praça dos Três Poderes é um indicador do engajamento político que têm", afirma, em referência às manifestações de grupos indígenas em Brasília na semana passada, em meio ao julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o marco temporal da demarcação de terras.
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