A sobrevivência das mulheres indígenas enfrenta uma série de desafios com a falta de recursos nas regiões extremas do Norte do país. Para as gestantes, a situação é ainda mais grave. Falta tudo: médicos especializados, medicamentos, assistência e até mesmo itens de higiene. Com a pandemia de covid-19, os povos ainda vivem com receio de contaminação.
O Correio acompanhou de perto a história dessas mulheres. A reportagem viajou a convite do Ministério da Defesa e esteve nas regiões que contam com o apoio de bases militares para o atendimento de necessidades básicas. Desde 1985, a atenção a essas comunidades ganhou o apoio institucional das Forças Armadas por meio do programa Calha Norte.
Segundo o governo, são atendidos, atualmente, 442 municípios das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, pouco mais de 15 milhões de pessoas são beneficiadas, e os recursos passam de R$ 1 bilhão. A ajuda é essencial para a sobrevivência dos povos indígenas, porém, a população precisa lidar com outros problemas, que vão de falta de infraestrutura a dificuldade de acesso a serviços básicos.
No ponto de confluência entre os rios Uaupés e Papuri, no Amazonas, na divisa com a Colômbia, os indígenas do povoado multiétnico Iauaretê vivem com poucos recursos para manter a tradição. Cerca de 3 mil indígenas de 8 etnias vivem no local: Tukano, Tariano, Dessanos, Piratapuia, Uananos, Tuiucas, Rupda e Rupdér. O povoado está localizado na região de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.
Da etnia Tariana, a agricultora Erica Maria de Lima Rodrigues, 27 anos, grávida de dois meses. Morando na região, ela afirma que lida com a falta de produtos básicos para o dia a dia e para a criação dos outros dois filhos. “A gente passa muita necessidade aqui, de médicos, de dentistas. Às vezes eles nem vêm. Nessa gestação, eu tive um início de aborto, mas, felizmente, não aconteceu nada. Sem os médicos, temos os nossos benzedores e o apoio do Exército”, conta.
A pandemia do novo coronavírus também foi cruel na comunidade. A família de Erica foi contaminada neste ano. “Passamos muito mal, tivemos falta de ar. Quase não tivemos assistência, tudo aqui é muito longe. Mas o que segurou mesmo foi a vacina e os nossos remédios da natureza”, relata. “Tem muita coisa que não encontramos por aqui e tem que esperar as pessoas trazerem. Tem que pedir em São Gabriel (outro município). Não tem como comprar fralda, lenço umedecido, bater ultrassom”, diz Erica.
Atuando na região há dois meses, a médica rondoniense Gilksânnia Moura se desdobra para ajudar a comunidade Iauaretê. Instalada no polo base para receber os pacientes, a especialista em saúde indígena também visita vilas do local regularmente. “Tenho que ser um pouquinho de tudo: ginecologista, obstetra, pediatra, cardiologista e médico da família”, afirma Moura.
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Adolescência
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados neste mês, mostram que o Acre tem o maior percentual de gravidez entre meninas de 13 a 17 da região Norte. No estado, 12,8% das adolescentes que já tiveram relação sexual engravidaram pelo menos uma vez na vida.
O número, inclusive, é maior que o percentual do Brasil, que tem 7,9% no total, e da região, de 7,3%. O estudo leva em consideração os números captados em 2019. Na cidade de Cruzeiro do Sul (AC), Júlia, de sobrenome e etnia desconhecidos, faz parte da triste realidade das mulheres que não puderam se planejar para a gestação. Para entender a história dela, é preciso voltar no tempo. Segundo seu próprio relato, aos 8 anos, após a separação dos pais, ela foi sequestrada pelo próprio pai e viveu a maior parte do tempo isolada na floresta.
Sem saber ao certo quantos anos tem atualmente e nem a idade correta dos filhos, Júlia enfrenta as consequência de todos os abusos físicos, sexuais e psicológicos. Os seis filhos são do próprio pai dela. “Nas minhas contas, eu tenho 39 anos”, diz, ainda confusa.
Uma assistente social que recebeu Júlia em 2012, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Cruzeiro do Sul, conta que, das seis crianças, cinco possuem algum tipo de deficiência física ou intelectual. “Ela não sabe deles e eles nunca tinham ido a lugar nenhum, desde que foram encontrados por uma pessoa que fazia trilha na selva”, detalha. “Nem a mãe dela nunca mais teve contato”, conta a profissional.
Júlia, agora, espera o sétimo filho, fruto de um relacionamento com um homem que conheceu após ter acesso à cidade. “Eu já conhecia ele desde que eu era criança. Mas agora, que voltei, a gente se encontrou de novo e estamos tentando formar uma nova família”, diz. Com seis meses de gestação, ela pode, pela primeira vez, fazer pré-natal e marcar o parto com um médico.
Agora, tentando refazer a vida, Júlia aprendeu a escrever o próprio nome e tem até celular, com o qual se comunica via áudio. “Tudo para mim foi muito novo, achei tudo tão diferente. Eu nem sabia como era uma televisão, achei tão bonito.”
Em Cruzeiro do Sul, apesar de ser uma cidade com poucos recursos, as gestantes ainda conseguem realizar alguns exames. No entanto, muitas delas lidam com pouco acesso à informação e abandono dos próprios companheiros.
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