Arine Miranda havia dado à luz pela terceira vez fazia pouco tempo quando precisou usar o metrô, no Distrito Federal. Era para ser uma viagem rotineira, não fosse ter sido vítima de uma abordagem grosseira de outra passageira após tentar amamentar a filha, um bebê de três meses, que chorava de fome. Em tom de ameaça, a mulher disse que amamentar em público estava causando incômodo aos viajantes.
Essa repreensão não foi a única vivida por Arine em seu processo de aleitamento. Em outra ocasião, dessa vez em um restaurante no Rio de Janeiro, o garçom pediu que ela se retirasse do salão e desse o peito à criança no banheiro do estabelecimento, em um ambiente sem qualquer estrutura para a mãe e o bebê. “Quem vê maldade em gente amamentando uma criança é doente. Eu acho que deveria ter leis mais severas para esses tipos de constrangimento, porque é um absurdo isso. Você não vai deixar de alimentar seu filho por causa de outras pessoas”, desabafa.
“Eu estava bem vestida e ainda coloquei uma fralda na cabeça da criança, mesmo assim, uma mulher me abordou e disse que eu estava constrangendo ela e o marido. E ainda disse que ia chamar a polícia pra mim”, (Arine Miranda)
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde recomendam a amamentação exclusiva desde a primeira hora de vida até os seis meses de idade do neném, e como complemento alimentar até os dois anos ou mais. Mas, apesar da maior parte das pessoas terem consciência dos benefícios do aleitamento materno, a prática de amamentar ainda está cercada de desinformação e preconceitos quando feita em locais públicos.
Pode parecer estranho que, embora a amamentação seja um direito garantido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (veja quadro sobre a Lei mais adiante), ainda exista quem se oponha a isso, exigindo que as mães se cubram ou saiam para lugares escondidos, após ser alvo de olhares tortos e comentários intolerantes e, principalmente, ilegais.
Mãe de duas crianças, uma menina de 2 anos e um menino de 4 meses, a administradora Joyce Costa Arêda aprendeu a ignorar comentários para parar de amamentar em público.
“Quando eu coloco meu seio para fora em qualquer ambiente público eu não me sinto obrigada a me esconder porque só eu sei as vulnerabilidades, dores, suor e lágrimas às quais eu precisei me submeter para amamentar, porque eu sabia que tinha a responsabilidade de alimentar uma criança. Então ninguém tem o direito de julgar esse ato”, enfatiza.
“Quando eu coloco meu seio para fora em qualquer ambiente público eu não me sinto obrigada a me esconder porque só eu sei as vulnerabilidades, dores, suor e lágrimas às quais eu precisei me submeter para amamentar” (Joyce Costa Arêda)
Para Joyce, a visão deturpada do corpo da mulher contribui para que esse assunto ainda seja um tabu. “Se alguém é capaz de olhar uma mãe amamentando uma criança e sexualizar isso, o problema não é comigo, essa pessoa é quem tem problema e tem que mudar sua atitude”. E completa: “Amamentar é um ato sublime, é triste saber que até para exercer nossos direitos mais mínimos - de alimentar nossos filhos sempre quando preciso -, temos que travar uma luta. Isso é tão antiquado, mas ainda real. Eu amamento aonde meus filhos sentirem fome e se alguém se incomodar, essa pessoa é que está no lugar errado”, finaliza.
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O direito à amamentação é garantido a lactantes seja em qual espaço for, público ou privado. Segundo a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, “é assegurado à lactante o direito de amamentar a criança em todo e qualquer ambiente, público ou privado, ainda que estejam disponíveis locais exclusivos para a prática”. Quem proibir ou constranger as que decidirem alimentar seus filhos terá que pagar multa.
Mamilos não deveriam ser polêmicos
Uma pesquisa recente com mil mulheres e homens, conduzida pela marca de sutiã de amamentação e de bombear leite Milx, revelou que uma em cada três pessoas pesquisadas foram constrangidas (ou tiveram uma parceira que tenha sido constrangida) por amamentar em público.
Outro estudo, de 2014, conduzido pela Universidade de Atenas, por sua vez, descobriu que, enquanto amamentar em público é socialmente aceito na Noruega, Suécia e Finlândia, é muito mais raro na França e no País de Gales “onde as mulheres ainda têm sentimentos mistos devido a possível constrangimento ou julgamento a que possam ser submetidas”.
Em países onde a amamentação em público é ainda ilegal, os legisladores frequentemente citam motivos religiosos. Na Arábia Saudita, por exemplo, mulheres são proibidas de expor os seios em público, mesmo para amamentar – a despeito do fato de a religião islâmica incentivar as mulheres a amamentarem por cerca de dois anos.
Em julho, a companhia aérea holandesa KLM inspirou tanto críticos quanto apoiadores quando uma comissária disse a uma mãe, que amamentava, para se cobrir. A diretiva oficial da companhia: “Amamentar é permitido a bordo contanto que nenhum passageiro fique ofendido pela prática”.
Tânia Mara Campos de Almeida, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (NEPeM) e professora de sociologia na Universidade de Brasília (UnB), explica que a amamentação só começou a ser considerada um tabu recentemente. “Faz parte de um movimento conservador que nos últimos anos está se instalando na sociedade. Me lembro de quando era criança, a amamentação era algo incentivado, respeitado e admirado. Só recentemente a amamentação em público passou a ser motivo de constrangimento para as mulheres, é mais uma das formas de controle do corpo feminino”, comenta.
“Só recentemente a amamentação em público passou a ser motivo de constrangimento para as mulheres, é mais uma das formas de controle do corpo feminino” (Tânia Mara Campos, professora da UnB)
A doutora expõe outros dois motivos para que o desconforto contínuo de ver mulheres amamentando seus bebês aconteça: existem grandes interesses econômicos por parte da indústria alimentícia, que faz uso do marketing em favor de produtos “substitutivos” ou complementares ao leite materno - o mercado do segmento movimenta cerca de US$ 70 bilhões (R$ 363 bilhões) por ano e é dominado por empresas renomadas norte-americanas e europeias.
Outro fator é que os corpos femininos são constantemente sexualizados. “A amamentação é a manifestação da natureza feminina. Pessoas acabam vendo coisas erradas e ‘pecaminosas’ onde não existem, mas aí o problema não é a amamentação, é de quem tem essa visão”.
Para a pesquisadora, falar sobre o aleitamento materno é naturalizar a prática e fundamental para incentivar outras mães a amamentar onde quiserem, em público ou não, ou seja, da maneira - ou da maneira que se sentirem mais confortáveis e seguras.“Precisamos conscientizar e discutir esse assunto. O poder público precisa assumir isso como algo coletivo, o constrangimento de uma mulher que amamenta não é um problema da mulher como indivíduo, é um problema de todos, e isso diz muito sobre a sociedade que estamos”.
Amamentação livre
Mamães que trabalham também têm uma lei específica que garante a amamentação dos filhos. O artigo 396 da CLT estabelece que para amamentar o próprio filho, até que este complete seis meses de idade, a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho, a 2 (dois) descansos especiais, de meia hora cada.
Saiba mais sobre os direitos da mãe trabalhadora
Para aquelas que buscam passar em um concurso público, há não muito tempo, o direito à amamentação era previsto apenas em alguns editais e mesmo assim sem regras gerais. Como explicou ao Correio, na ocasião, o professor de direito constitucional do Gran Cursos Online e consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Wellington Antunes, era comum haver restrição desse direito por algumas bancas como medidas de segurança, com intuito de evitar fraudes durante as provas. “Alguns editais permitiam, outros não falavam nada, ou falavam em condições especiais, sem detalhar como se aplicaria. Como não existia um direcionamento legislativo, havia interpretações divergentes”.
Porém, em 2019, o presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou lei que garante às mães candidatas de concursos públicos o direito de amamentar durante as provas. No mesmo ano, aqui no DF, o governador Ibaneis Rocha também sancionou legislação semelhante.
Evoluindo
Aos poucos as mães e pais estão ganhando mais espaço no meio legislativo para proteger a amamentação. Neste ano, foi apresentado no Senado Federal um projeto de lei que aumenta para dois anos o período de concessão obrigatória do intervalo para amamentação durante horário de trabalho.
O PL 790/2021 é de Fabiano Contarato (Rede-ES), que defende que a lei atual está em desacordo com recomendações da OMS, da Unicef e da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Na justificativa do projeto, o senador destaca que o aleitamento materno não é responsabilidade exclusiva da mãe, mas também da família, comunidade, profissionais de saúde, Estado e empregadores.