O grande temor das nações originárias, caso o Supremo Tribunal Federal (STF) mantenha o marco temporal para a ocupação das reservas — que vai a julgamento na próxima quarta-feira —, é a explosão da violência entre ruralistas e indígenas e um crescimento das disputas judiciais entre os dois lados. Essa preocupação foi manifestada, ontem, na conversa que algumas lideranças que estão acampadas na Esplanada dos Ministérios tiveram com o Correio.
Geovani, um dos líderes do povo Krenak de Minas, salientou que “os povos indígenas estão muito sensíveis às atitudes do governo, pois a cada dia há ataques mais agressivos por parte do presidente Jair Bolsonaro. Nunca deixamos de lutar pelo território por condições de sobrevivência”.
Para Katu, da etnia Tupinambá de Una (BA), a luta não termina com um resultado do STF sobre o marco temporal. Ele diz que continuarão batalhando contra qualquer proposta que lhes fira os direitos, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/00 — que altera a Constituição para transferir o poder de demarcação de terras indígenas e quilombolas para o Congresso, competência que, atualmente, é da União. “Essa proposta (do marco) só interessa aos ruralistas, mas não vamos ficar parados. Somos 305 povos neste país”, disse.
Tukumã, Pataxó da aldeia Coroa Vermelha de Santa Cruz de Cabrália (BA), explicou que o que está em jogo no STF é sua ancestralidade. “Fomos ensinados pelos nossos pais, avós, bisavós, tataravós a cuidar das nossas terras. A terra é nossa mãe. Não podemos pensar só no dinheiro, temos que pensar no coletivo, na comunidade”, observou.
Cássio, um dos líderes da etnia Tapeba, do interior do Ceará (CE), alerta: “Acionaremos os órgãos internacionais para que o nosso direito seja garantido”, destacou.
Preservação
Apenas 1,6% da perda de florestas e vegetação nativa no Brasil, entre 1985 e 2020, ocorreu em terras indígenas, segundo levantamento feito por pesquisadores da iniciativa MapBiomas, que reúne ONGs, universidades e empresas de tecnologia. Após analisar imagens de satélite do período usando recursos de inteligência artificial, concluíram que os territórios indígenas já demarcados ou aguardando demarcação foram os que mais preservaram suas características originais.
“Se queremos ter chuva para abastecer os reservatórios que provêm energia e água potável para consumidores, indústria e o agronegócio, precisamos preservar a Floresta Amazônica. E as imagens de satélite não deixam dúvidas: quem melhor faz isso são os indígenas”, explica o coordenador do MapBiomas, Tasso Azevedo.
Enquanto isso, a área de agropecuária cresceu em cinco dos seis biomas brasileiros. O crescimento da área ocupada por atividades agropecuárias, por outro lado, foi de 44,6% entre 1985 e 2020. Juntas, agricultura e pecuária ganharam 81,2 milhões de hectares no período. Essas atividades cresceram em cinco dos seis biomas brasileiros, com exceção da Mata Atlântica.
No período analisado, a área de plantio de soja e de cana alcançou a mesma extensão de toda a formação campestre do Brasil. A soja já equivale a um Maranhão e a cana ocupa o dobro da área urbanizada do país, aponta o levantamento do MapBiomas.
Enquanto o padrão de expansão da agropecuária nesse período é o avanço das pastagens sobre áreas de vegetação nativa, a agricultura se expande, principalmente, sobre áreas de pastagem. Com isso, a área total de pastagem parou de crescer em meados dos anos 2000 e começou a encolher registrando uma retração de 4% de 2005 a 2020, depois de crescer 45% entre 1985 e 2005. (Com Agência Estado)
Lenha na fogueira das demarcações
1) Por que o STF vai decidir a questão?
» Em 2013, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com sede em Porto Alegre, aceitou a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA-SC) a reintegração de posse de uma área que é parte da Reserva Biológica do Sassafrás. Neste local, fica a Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ, habitada pelos povos xokleng, guarani e kaingang. A decisão do TRF-4 mantinha entendimento de outra decisão da Justiça Federal em Santa Catarina, de 2009.
» Mas, agora, o Supremo Tribunal Federal julga recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai) questionando a decisão de 2013. O resultado dos ministros terá repercussão geral — ou seja, poderá ser aplicada em situações semelhantes pelo país. O julgamento, que começou na última quinta-feira, será retomado dia 1º de setembro.
2) Quem é a favor do marco?
» O governo federal vem utilizando a tese do marco temporal para impedir demarcações — o próprio presidente Jair Bolsonaro disse, há poucos dias, que se o Supremo Tribunal Federal (STF) não acatar a tese, “acaba com o agronegócio”. Proprietários rurais, favoráveis ao marco, jogam na zona cinzenta: ao argumentarem que há necessidade de se garantir segurança jurídica, na realidade trabalham em cima da falta de registros claros sobre as terras e da mobilidade de várias nações que têm por característica serem nômades. Além disso, os ruralistas apontam o risco de desapropriações caso a tese seja derrubada.
» Da parte dos índios, há o temor de que demarcações de terras já feitas sejam revogadas caso o STF valide o marco. E que se assista a uma enxurrada de ações judiciais pedindo a revisão das fronteiras das áreas dos nativos.
3) O que acontece se o marco se tornar norma?
» Indígenas poderão ser expulsos de terras ocupadas por eles há décadas sob qualquer alegação. Isso porque terão de comprovar que estavam ali antes da promulgação da Constituição de 1988, algo que, em inúmeros casos, será impossível. Além disso, várias etnias já foram expulsas de seus lugares de origem e, atualmente, vivem em outros assentamentos. Para piorar, processos de demarcação de terras indígenas históricos, que se arrastam por anos, poderão ser suspensos. A tese do marco traz, ainda, a possibilidade de áreas indígenas, mesmo sendo protegidas física e culturalmente pelos povos originários, serem privatizadas e comercializadas — algo que interessa a setores ruralistas.
4) Se a tese do marco for rejeitada, é a paz para os índios?
» Não. Isso porque tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 490/07 que tenta transformar o marco em lei. O PL determina que devem ter direito às terras consideradas ancestrais apenas os povos que as ocupassem em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O texto foi proposto originalmente em 2007, mas rejeitado na Comissão de Direitos Humanos dois anos depois e sendo arquivado em 2018. Mas foi ressuscitado durante a campanha eleitoral de Bolsonaro — que chegou a dizer que acabaria com reserva indígena no Brasil.
» Para piorar, em 29 de junho passado a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados — presidida pela deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) — considerou o PL constitucional. A expectativa é de que, com os baixos índices de popularidade do governo e do presidente, e a abertura da campanha eleitoral antecipada, os ruralistas façam pressão para que o PL volte a tramitar — e fazer o jogo pesado para que seja aprovado pelo plenário.