Apesar de, pela primeira vez desde outubro do ano passado, nenhum Estado brasileiro registrar taxa de ocupação de leitos de UTI para covid superior a 80%, as infecções pelo vírus voltaram a subir pelo menos no curto prazo (últimas três semanas), em todo o território nacional — no longo prazo (últimas seis semanas), a sinalização é de estabilidade, indica o mais recente Boletim InfoGripe da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
E, nesse contexto, as atenções se voltam para dois Estados em particular, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro, com o último em alerta.
Mas por quê?
Uma combinação de fatores, entre os quais o descuido da população em meio à flexibilização das medidas anti-covid, está por trás desse cenário que, segundo o informe, "sugere possível interrupção de queda no atual momento".
Dados recentes compilados pelo pesquisador Marcelo Gomes, coordenador do Infogripe, e sua equipe, a partir de casos notificados de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), independentemente da presença de febre, sinalizam "crescimento moderado" no curto prazo e "estabilidade" no longo prazo a nível nacional. A maioria dos casos de SRAG são de covid-19 (96,6%).
E Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro são os únicos Estados com tendência de crescimento em ambos os termos.
Mato Grosso do Sul apresenta crescimento "forte" (>95%) na tendência de curto prazo e "moderado" (>75%) na de longo prazo. Já no Rio de Janeiro, crescimento "moderado" no curto prazo e "forte" no longo prazo.
E, especificamente no caso do Rio de Janeiro, um alerta: a capital fluminense apresenta sinal "moderado" de crescimento tanto no curto quanto no longo prazo.
Além do Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul, a tendência é de "queda ou estabilidade" no curto prazo nos outros estados e Distrito Federal, com exceção de Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia e Sergipe. Já no longo prazo, o Acre também registra aumento no número de casos.
Não se trata de uma "projeção": as tendências de curto e longo prazo são estimativas que levam em conta a variação no número de novos casos semanais de SRAG durante um período de três semanas (curto prazo) e seis semanas (longo prazo).
Ou seja, se houver crescimento no número de casos nas últimas três semanas, o indicador de curto prazo apresentará tendência de crescimento. A mesma lógica se aplica ao indicador de longo prazo (seis semanas).
"Nos estados em que temos sinal de crescimento apenas na tendência de curto prazo, deve-se interpretar como sinalização de possível interrupção de queda, com tendência de crescimento a ser reavaliada nas próximas semanas", diz o boletim.
Neste sentido, os indicadores sinalizam o comportamento dos casos de SRAG "no momento atual".
Motivos
Segundo Gomes, é importante lembrar que, embora o número de hospitalizações e mortes esteja caindo no Brasil, o nível de transmissão comunitária do vírus em todo o território nacional ainda é "alto ou mais elevado".
"Temos ainda um cenário de alta transmissibilidade e temos as flexibilizações ocorrendo, diminuição dos cuidados coletivos e individuais e até em parte dessas flexibilizações, que geram uma percepção menor de risco", diz ele à BBC News Brasil.
"A consequência natural é a interrupção na queda no número de infecções", acrescenta.
Gomes lembra também que "parte da queda que observamos nos últimos meses vinha também no avanço da cobertura de segunda dose na população mais idosa, parcela importante das internações".
"Consequentemente, tivemos uma redução muito significativa nos valores observados na população acima de 60 anos, mas agora em boa parte do país já alcançamos uma cobertura alta nessa população, ou seja, não tem muito como avançar entre novos vacinados", assinala.
"Isso de certa forma satura o efeito protetor da vacina nessa população especificamente e, daqui em diante, a curva de novos casos passa a seguir a tendência da população em geral, que não está totalmente vacinada", completa.
Segundo a plataforma Our World in Data, da Universidade Oxford, no Reino Unido, apenas 22% da população brasileira receberam as duas doses da vacina contra covid-19.
"Nosso problema continua sendo o nível de exposição. Voltamos a ter muita circulação, muita interação presencial e um relaxamento generalizado das regras", destaca Gomes.
"Essa combinação de fatores gera uma falsa sensação de segurança, e estamos longe do fim da pandemia".
Rio de Janeiro
Segundo o pesquisador, no caso do Rio de Janeiro, a tendência de crescimento é observada tanto na capital quanto no Estado.
Mas ele ressalva que esse cenário não pode ser atribuído majoritariamente à variante Delta, inicialmente detectada na Índia e comprovadamente mais transmissível do que a covid-19 original.
Um levantamento divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES) mostrou que 45% das amostras analisadas eram dessa cepa.
E um documento interno da SES vazado pela imprensa nesta semana afirmou que a cidade do Rio de Janeiro é o "epicentro da variante delta no país" e que a direção da pasta deveria avaliar "com urgência" a possibilidade de aumentar o número de leitos de covid na rede.
"Não nos parece ainda ser o caso de atribuir esse cenário majoritariamente à Delta. No momento, decorre mais do nível de exposição, ou seja, do comportamento da população e das flexibilizações adotadas", assinala Gomes.
Mas ele atenta para o "efeito catalisador" de uma maior exposição ao vírus e o avanço de uma variante mais transmissível.
"Isso deixa o cenário ainda mais preocupante, pois gera uma possibilidade de um crescimento mais acelerado por causa disso", ressalva.
"Lembrando que as medidas de proteção também servem para a variante Delta: usar máscaras, evitar aglomeração, ventilação adequada de ambientes, privilegiar locais abertos… tudo isso continua funcionando, mas nosso empenho tem que ser maior, pois essa variante é mais transmissível", conclui.
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