Desde a primeira vez que amamenta o filho até o momento em que decide parar de fazê-lo, as mães podem enfrentar uma série de questionamentos e frustrações quanto ao processo de aleitamento. Alvo frequente de pitacos e interferências de terceiros, alheios à relação íntima de nutrição (física e mental) entre mãe e bebê, o ato da amamentação é muitas vezes criticado e ridicularizado por machismos, preconceitos e vaidades enraizados em nossa sociedade. Muitas que optam por dar leite do peito por mais tempo sabem bem disso. É o caso da amamentação prolongada.
Para termos propriedade no assunto, precisamos entender primeiro o termo ao pé da letra: amamentação prolongada é aquela que ultrapassa o tempo de dois anos de aleitamento materno recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde brasileiro. Qualquer tempo antes disso não é considerada amamentação prolongada. Assim, a orientação desses órgãos é que a mãe dê o peito exclusivamente até os seis meses de idade da criança e que continue o ato até dois anos ou mais - esse “mais” é o que chamamos de amamentação prolongada.
E manter a amamentação por mais tempo de fato tem muitos benefícios - apesar também de ser alvo de inúmeros preconceitos e ignorância. O leite materno, após os dois anos de idade, evita mortes infantis, fortalece o sistema imunológico, diminui o risco de hipertensão, colesterol alto, diabetes e obesidade; e reduz o risco de desenvolver câncer de mama nas mães (veja mais em: A verdade sobre amamentação prolongada).
Se há tantos benefícios assim, porque a manutenção do processo de aleitamento é tão reprimido?
Quem nunca ouviu alguém dizer que depois de algum período o leite não serve para nada, "vira água"; ou ainda que continuar amamentando é desleixo da mãe, que não quer “se esforçar” para introduzir comida ao bebê e usa o peito como 'muleta'? Há ainda aqueles (não raros, infelizmente) que acham "feio" quando um bebê maior mama no peito da própria mãe.
Foi o que ocorreu com a biomédica Ediane Lacerda, de 29 anos. Em 2020, ela estava na fila de um banco com o filho Bernardo, de dois anos na época, quando o garoto pediu o leite materno. Ediane prontamente deu o peito, mas foi surpreendida com uma agressão física de uma senhora.
“Ela tinha uns 60 anos, estava junto com a filha. Ela pegou no meu peito, balançou e disse ‘aqui não tem mais leite não’, bem alto e olhou o Bernardo e falou ‘eca, que nojo!’”, lembra Ediane.
A mãe não consegue expressar o choque que levou ao ver uma pessoa estranha se sentir à vontade não só para criticar as escolhas maternas, mas também de tocar no corpo dela sem ao menos pedir permissão.
O choque a levou a responder o preconceito e à agressão de uma forma, no mínimo, inusitada. “Eu fiquei tão assustada, que a minha única reação foi dizer ‘tem sim, quer ver?’ e esguichar leite nela. Todo mundo que estava no banco bateu palma e depois foram me acolher. Hoje eu nunca faria isso, mas foi como reagi no momento”, conta.
Ela afirma que este foi o momento mais constrangedor que viveu com pessoas que reprimiam a amamentação prolongada de seu filho, mas que sempre se depara com críticas ou perguntas. “Eu sempre tento entender que essa pessoa tem pouca informação e é guiada por estereótipos. Quando me falam algo, eu me resguardo e tento explicar, porque assim eu também ajudo a proteger a amamentação prolongada”, diz.
“Mas é complicado mesmo, você quer alimentar seu filho e ainda tem que dar satisfação. Sempre estou com a lei na ponta da minha língua para me assegurar se alguém quiser fazer algo”, completa.
Foi a firmeza de Ediane que a fez continuar o processo de aleitamento até hoje, com o filho com três anos e oito meses. “Não tenho planos para desmamá-lo, vai ser um processo natural. No tempo necessário que ele achar, ele vai desmamar. Hoje ele mama umas três vezes ao dia, acho que mais ou menos daqui um ano, se for no ritmo que ele tá, vai ter o desmame”, conta.
A mamãe se diz privilegiada por poder ter estudado e até feito cursos sobre a maternidade e a amamentação antes mesmo de engravidar, o que a ajudou a conhecer e se apaixonar pela amamentação prolongada. Ela sabia que a maior dificuldade seria se “blindar” do mercado e das opiniões alheias. O resultado foi ver o filho cada vez mais desenvolvido e forte.
“O Bernardo tem uma imunidade muito forte, ele não fica doente como outros bebês. O QI dele é elevado, as professoras dele sempre me falam sobre isso. Ele é seguro e independente, porque desenvolvemos uma confiança grande com o processo”, conta.
Em fevereiro deste ano, infelizmente, Ediane foi infectada pela covid-19 e, com orientação médica, permaneceu amamentando, com auxílio de máscara, álcool em gel e assepsia no peito. Bernardo não contraiu a doença e a mãe acredita que é pela imunidade fortalecida que o menino desenvolveu.
“Não sofri em deixá-lo na escola, como outras mães que contam que os filhos choram e não querem deixar os pais. Por ele sempre me ter disponível para amamentar, acredito que ele sabe que eu não o deixaria em um lugar ruim ou, ainda, não voltaria para buscá-lo. Ele é muito social e independente e acredito que isso é fruto da amamentação prolongada".
A mãe também diz que o filho não tem vergonha de mamar, seja em casa ou em público. Sempre que alguém pergunta se ele ainda mama, Bernardo afirma “sim, aqui no peito da mamãe tem meu leitinho” e começa a mamar. “Isso ajuda até a mim mesma não ter vergonha. Se as pessoas realmente se preocupassem com a saúde da criança, elas não iam ter esse preconceito”, conta.
Ao redor do mundo, outras mães enfrentam o preconceito e permanecessem firmes no propósito de proporcionar uma melhor saúde para os filhos. A britânica Sophie Mei Lan, de 32 anos, ganhou as manchetes dos jornais da Inglaterra ao contar que mantém a amamentação com leite materno para as duas filhas, uma de sete e outra de quatro anos.
A mãe afirma que, por diversas vezes, foi criticada ao realizar a alimentação em público, mas que decidiu normalizar o ato, já que “as pessoas decidiram sexualizar a amamentação de uma maneira que pareça anormal, mas que é completamente natural”.
Já a norte-americana Sharon Spink, de 50 anos, chegou no objetivo e ‘dobrou a meta’: ela amamentou a filha, Charlotte, por quase 10 anos. Ao site Practical Parenting, a mulher contou que tentou manter a amamentação prolongada com os outros três filhos, mas não conseguiu por falta de apoio. Por isso, quando Charlotte veio, ela decidiu que só pararia quando a menina quisesse.
“É bom para a criança controlar quando ela quer desmamar, em vez de forçar A decisão. Ela naturalmente se desmamou e foi um processo gradual. Ela ainda mamava uma vez por mês ou quando não se sentia bem. Agora não faz mais”, contou Sharon. A norte-americana relata que, por anos, a filha nunca teve tosse, resfriado ou infecção no ouvido.
“Eu espero que Charlotte sempre lembre do conforto e segurança que ela sentia no peito”.
“Preconceito é cultural e fruto de pressão do mercado”
“Os conceitos sobre amamentação prolongada são culturais. O uso da mamadeira, do bico, da chupeta, foi muito difundido primeiro por ser visto como algo chique e legal quando foram lançados; além de ser uma alternativa para suprir bebês das mães que estavam mudando e indo trabalhar fora”, conta Anna Karolina Amorim, pediatra do Hospital Santa Marta, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria e consultora em amamentação.
“Mães e avós que usaram esses aparatos afirmam que é assim que se cria um filho, porque 'não morreu, tá vivo e bem’. O problema é que muitas dessas afirmações são infundadas. Antes, não não havia pesquisas para contabilizar os benefícios do leite materno, que são muitos”, complementa Anna. “Nosso esforço é para conscientizar todas as gerações e garantir a saúde dos bebês. Leite materno é um alimento completo, melhora a imunidade e diminui o nível de mortalidade infantil”, frisa.
À pedido do Correio, a pediatra desvendou quatro mitos da amamentação prolongada e explicou quais são os seus benefícios. Confira:
1. É verdade que o leite vira água, principalmente após os dois anos de idade?
Anna: De jeito nenhum. Estudos demonstram que, mesmo após um ano de vida do bebê, 100 ml de leite materno permanecem com mais calorias nutritivas do que o leite de vaca, mesmo não sendo mais o principal alimento da criança.
É importante lembrar que o leite materno é produzido para a necessidade de cada bebê. Por exemplo, nos dias mais frios, ele vai ser mais gorduroso para nutrir o bebê e mantê-lo quente. Nos mais quentes, ele vai ser mais aguado para saciar a necessidade de líquidos.
O leite do bebê prematuro é, inclusive, mais pobre em proteína para que ele não tenha sobrecarga renal. Então, com a idade, o leite vai se moldando, mas continua sendo leite e um alimento rico e importante para o desenvolvimento do bebê.
2. E sobre o emocional, bebês que vivem a amamentação prolongada são prejudicados? Não se desenvolvem ou se tornam mais dependentes?
Anna: Ao contrário. O que se comprova em todos os estudos é que a amamentação aumenta o vínculo de mãe e filho, além de ajudá-lo a se desenvolver motoramente e psicologicamente. Além disso, quanto maior o tempo de amamentação, maior será a inteligência da criança. E quanto mais tempo a gente conseguir amamentá-la, mais segura emocionalmente ela será.
3. É verdade que o leite acaba ou se torna fraco quando a mãe está grávida e ainda amamenta o outro filho?
Anna: Não é verdade. O que acontece é que se trata de uma decisão muito individual de cada mãe com relação a cada gestação. É possível amamentar estando grávida, mas é preciso cuidado. Durante a amamentação há liberação de oxitocina, hormônio que facilita a produção de leite materno, mas também pode causar contrações, tornando-se um empecilho a quem está em gravidez de risco, por exemplo.
Assim, ela pode precisar deixar de amamentar, mas não por conta do leite. Outra coisa que pode ocorrer é o aumento da sensibilidade dos seios. Mas essas são situações individuais que devem ser acompanhadas por um médico.
4. É possível amamentar dois filhos de idades diferentes ao mesmo tempo, processo conhecido como tandem? O leite seca? A mãe fica doente?
A: É possível sim. Só é muito cansativo, ao mesmo tempo em que é muito recompensador. Mais uma vez, é escolha de cada mãe com seu filho (s). Se ela acha que está tranquilo amamentar os dois filhos, nós (pediatras) temos que apoiar e acolher a família. Não muda a qualidade do leite e ninguém sai prejudicado nesse processo.
Outros mitos (absurdos demais para não estar aqui)
Há ainda quem acredita que a manutenção da amamentação está ligada a problemas sexuais da mãe. Esta afirmação, obviamente, não se sustenta. É importante ressaltar que os hormônios liberados pela amamentação podem exercer uma influência nos primeiros dias na mulher, mas que não podem influenciar a vida sexual por muito tempo. Além disso, caso a mãe sinta qualquer desconforto, o auxílio médico pode ajudá-la nessa aproximação.
Sexualizar frequentemente o corpo feminino, aliás, é outro fator que proporciona o preconceito com a amamentação prolongada. É pensado que o seio da mulher deve satisfazer o parceiro (a), mas é impensável que possa ser utilizado por mais tempo para alimentar o filho. “Vai ficar com o peito caído” ou “seu parceiro não vai ter desejo” são outras afirmações que demonstram a prioridade da sociedade em detrimento da necessidade da criança.
Outro motivo apontado para criticar o processo de aleitamento prolongado é o de que este é mantido apenas por “necessidade emocional da mãe” e não do bebê. Órgãos de saúde e médicos afirmam que quanto mais a criança ter o vínculo de amamentação com a mãe, mais ela será segura e confiante, sendo assim o peito uma maneira de fornecer um crescimento emocional saudável e fortalecido para a criança.
A verdade sobre amamentação prolongada: é benéfica, gratuita e empodera mãe e bebês
Além do aspecto emocional, a amamentação prolongada é considerada, cientificamente, como uma forma de prevenir diversas doenças ou deficiências no organismo do bebê. “Ela diminui o risco de mortalidade em 41% e de morbidade também, ou seja, limita muito o desenvolvimento de doenças imunológicas e também outros quadros, como obesidade”, pontua.
Hipertensão, colesterol alto e diabetes também são evitadas, assim como alergias, infecções e doenças respiratórias. Com a manutenção do leite materno na dieta da criança, o risco de apresentar diabetes tipo 2 é 37% menor do que crianças desmamadas precocemente.
Fornecer o leite materno após dois anos de idade também auxilia a criança a adquirir anticorpos contra vários vírus, já que estes são passados pelo alimento da mãe para o bebê. Inclusive, estudos comprovam que os anticorpos adquiridos pela mãe contra a covid-19 passam também para crianças acima de dois anos que continuam a se alimentar com leite materno.
“Há um fortalecimento dos músculos da face e aumenta a qualidade da esmaltação dos dentes. Ele também diminui o risco de cárie”, diz Anna.
Os benefícios também são vistos na mãe, que podem diminuir a chance de câncer de mama. A cada ano amamentado, a chance de desenvolver o tumor cai 4,3%.
Desmame natural x desmame forçado
Os mitos da amamentação prolongada e o preconceito da sociedade podem resultar em um desmame forçado. O ato de privar a criança do leite materno faz com que haja um interrompimento do processo de fortalecimento do sistema imunológico da criança.
Após o primeiro ano, a mulher é bombardeada de perguntas sobre quando ela irá parar com a amamentação e é apontada como a responsável para tal. No entanto, o Ministério da Saúde afirma que o desmame natural é o ideal, já que é menos estressante para a mãe a para a criança e só ocorre quando as necessidades da criança estão preenchidas e ela tem maturidade para desfazer o vínculo.
“O desmame abrupto deve ser desencorajado, pois, se a criança não está pronta, ela pode se sentir rejeitada pela mãe, gerando insegurança e, muitas vezes, rebeldia”, frisa a cartilha Saúde da criança: nutrição infantil, do órgão.
Já na mãe, o desmame forçado pode causar estase do leite, mastite, tristeza, depressão e até mesmo um luto pela perda do vínculo ou causado por mudanças hormonais que a falta de amamentação gera.
Assim, é preciso esperar que a criança esteja madura para desfazer o vínculo. Entre os sinais de que ela pode querer o desmame e pode receber auxílio da mãe para isso, o órgão aponta o menor interesse nas mamadas; aceita variedade de alimentos; é segura na relação com a mãe; aceita outras formas de consolo; aceita não ser amamentada em certas ocasiões e locais; dorme sem mamar no peito; mostra pouca ansiedade quando encorajada a não amamentar; e às vezes prefere brincar ou fazer outra atividade com a mãe em vez de mamar.
Se a criança demonstra essas características, a mãe pode combinar com ela um prazo para desmamar, mas sem forçá-la ou ameaçá-la. Não é preciso se afastar ou fazer condições. É importante que a mãe tenha paciência e seja flexível com recaídas. Sobretudo, cabe a mãe e a criança decidir sobre a manutenção da amamentação ou tentar um desmame combinado. Seja qual for a escolha, ela vai precisa ser apoiada.
Combater a desinformação é dever de todos
A pediatra Anna Karolina Amorim vive os benefícios na pele. Ela é mãe de Maria Lúcia, de dois anos. Ciente dos prós da amamentação prolongada, ela pretende continuar a alimentar a filha por mais tempo. Apesar de ser especialista no assunto, Anna tem de enfrentar críticas. “Voltei há pouco tempo de uma viagem para ver a família e ouvi muitos mitos. A gente tem que explicar, estar ciente e certa do que queremos para nossos filhos”, diz.
“Como pediatra, o que cabe a mim é receber familiares da mãe, como avós e bisavós do bebê, e explicar os benefícios, mostrar estudos e desconstruir isso. É importante fazer isso até mesmo para mãe, que precisa de uma rede de apoio para se sentir acolhida. Cabe a nós difundir e propagar que a amamentação é boa e importante para o bebê”, complementa.
Anna também afirma que o tema da amamentação deve ser difundido em todos os níveis da sociedade, desde a educação básica até os hospitais. “Temos que tratar isso como uma questão de saúde coletiva, porque a amamentação traz benefícios para a família, reduz gastos e previne doenças. O assunto deve ser debatido em casa, nos postos, hospitais, escolas, mídia e na esfera política. Temos que proteger a amamentação”, conclui.