Em uma articulação liderada por governistas, a Câmara dos Deputados aprovou ontem projeto de lei que amplia a possibilidade de regularização fundiária de terras da União por autodeclaração, ou seja, sem vistoria presencial feita por técnicos do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O texto vai agora para o Senado Federal.
Para críticos, a proposta — tratada, desde o início do governo Bolsonaro como uma prioridade — abre caminho à regularização de áreas da União ocupadas ilegalmente por grileiros e desmatadores, permitindo dar a muitos deles o título das propriedades — o que levou o projeto a ser conhecido como “PL da Grilagem”. Os defensores do texto entendem, por sua vez, que o projeto de lei dá oportunidade para pequenos e médios produtores regularizarem as terras e gerarem renda com o aumento da produção. O projeto de lei recebeu 296 votos favoráveis, contra 136 votos contrários.
O presidente Jair Bolsonaro já havia editado uma medida provisória sobre o assunto em dezembro de 2019. Mas a matéria não foi validada em 120 dias — precisaria ser votada até 19 de maio de 2020 no Congresso — e perdeu vigência. A proposta ganhou nova forma, por meio de projeto de lei de autoria do deputado Zé Silva (SD-MG), ligado à bancada ruralista na Câmara. O texto estabelece a ampliação de quatro para seis módulos fiscais no tamanho de imóveis que podem ser regularizados por meio de autodeclaração. O módulo fiscal é uma unidade em hectare que foi definida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para cada município do país e que varia do mínimo de 5 ao máximo de 110 hectares.
A regularização de terras por meio de autodeclaração é baseada em informações fornecidas pelos próprios ocupantes do imóvel rural, sem a necessidade de uma inspeção de campo ou vistoria de nenhuma autoridade governamental no local.
Vistoria presencial
O processo de declaração existe desde 2009, quando foi criado o programa Terra Legal, do antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Segundo essa regra, sem a vistoria presencial para propriedades maiores, bastará a análise de documentos e de declaração do ocupante de que ele segue, sim, a legislação ambiental. Ambientalistas adversários dessa ideia afirmam que o projeto pode, em um segundo momento, revisar o marco temporal de 2008 e aumentar o tamanho das terras ocupadas passíveis de regularização.
Já no entendimento dos defensores da proposta, o texto dá oportunidade para pequenos e médios produtores regularizarem suas terras e gerarem renda com o aumento da produção. Os apoiadores da proposta argumentam que, com os títulos das terras, os agricultores teriam segurança jurídica e poderiam ter acesso a crédito, bem como comercializar produtos com notas fiscais.
Eles defendem também que a mudança trazida pelo novo texto legal permitirá combater o desmatamento porque dará um “CPF” à propriedade e permitirá a fiscalização. “Dizem que o projeto defende a grilagem. Na verdade, vem combater. São agricultores que vivem o sonho da terra própria, mas não conseguem vender com nota fiscal a própria produção quando conseguem produzir. Qualquer dono de imóvel que não tem o documento é invisível para o Estado brasileiro”, justificou o autor da proposta, o deputado Zé Silva (PSD-MG).
O relator do projeto tem argumentação semelhante. “Necessário destacar que não há qualquer estímulo à grilagem. Pelo contrário: a proposição contribui para que eliminemos de vez a ocupação ilícita de terras públicas. Por isso, mantivemos o marco temporal da ocupação em 22 de julho de 2008, indicando que toda a ocupação posterior não será regularizada”, escreveu Bosco Saraiva (Solidariedade-AM) em seu relatório.
Indígenas e quilombolas
O relator negou ainda que os povos tradicionais sejam prejudicados pelo texto. Segundo o parecer, a titulação em áreas indígenas e quilombolas ou de ribeirinhos será proibida. Não haverá nenhuma restrição, no entanto, para a titulação de terras ocupadas por povos tradicionais, mas que estejam ainda em fase de demarcação.
Já a deputada Joênia Wapichana (Rede-RR) tem criticado o texto desde o início de sua tramitação. “Existe uma demanda ainda em relação à demarcação de terras indígenas. Há terras indígenas que constantemente são invadidas, áreas de proteção ambiental que estão em risco. Na Amazônia, nós estamos vendo um cenário cada vez mais conflituoso em meios rurais”, argumentou.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, comentou a aprovação do projeto. “(Foi o) texto possível. Nem ideal para um lado nem para um outro. Afasta as versões que habitavam em torno do assunto, de chamar essa proposta de projeto da grilagem. É respeito ao produtor, a sua terra, com títulos para que ele possa ter acesso a empréstimos, à formulação da vida da sua família”, disse, após concluída a votação.
Para Raoni Rajão, professor de gestão ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a aprovação do projeto não representa uma vitória da proteção ambiental. No entanto, para ele, a proposta é a menos danosa entre as gestadas pelo governo para ampliar concessões e anistias a grileiros.
“Mantendo os seis módulos e o marco temporal, e isso sendo mantido pelo Senado, dos males, o menor. Mas é assim que deveriam debater? Não. Tinham de entender o problema como um todo, discutir aumentar a pena para invasão de terras públicas de maneira ilegal, o que hoje é crime de baixo potencial ofensivo”, comentou.
Rajão participou de debates na Câmara em que representantes de agropecuaristas expressavam interesse em abranger no projeto médios e grandes produtores. “Na perspectiva inicial da proposta, eles queriam beneficiar médios e grandes. O fato de eles não terem conseguido a intenção inicial já é algo positivo. Temos de tomar certo cuidado para não sermos generalistas e binários para não desanimar pessoas que não têm perspectiva necessariamente ambientalista, mas que querem uma proposta razoável”, avaliou.
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