Há alguma semanas, a babá Ana Maria Pereira, de 27 anos, recebeu duas notícias que mudaram sua vida. A primeira é que sua irmã, Lidiane Pereira, de 30 anos, havia morrido de covid-19 depois de ficar vários dias internada em um hospital de João Pessoa, na Paraíba. A segunda é que seu sobrinho, Pedro Lucas, de 5 anos, a partir de então ficaria sob sua responsabilidade.
Lucas nasceu com microcefalia e outros problemas de saúde causados pelo vírus da zika. Sua mãe, Lidiane, tinha abandonado o emprego para se dedicar aos cuidados do filho. Com saúde frágil, o menino passa semanalmente por uma série de consultas e terapias. Agora, esse trabalho será assumido pela tia.
Entre 2015 e 2016, a região Nordeste registrou o maior surto conhecido de zika no mundo. Na época, 2.653 bebês foram diagnosticados com a síndrome congênita, entre eles Pedro Lucas. O vírus foi registrado em 84 países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Agora, com a pandemia e com o agravamento da crise econômica, dezenas de familiares de baixa renda têm enfrentado uma série de dificuldades para manter o intenso tratamento das crianças, a ponto de algumas delas terem regredido com a pausa das terapias, como mostrou a BBC News Brasil.
No caso de Pedro Lucas, a situação é ainda pior: agora órfão de mãe, o menino precisou se mudar de João Pessoa, onde fazia tratamento, para Alagoa Grande, no interior da Paraíba, onde será cuidado por sua tia Ana.
"Minha irmã faleceu e, agora, toda minha atenção é voltada para cuidar do Lucas. Estou fazendo o que minha irmã gostaria que eu fizesse. Faço tudo por eles, o que for necessário para que Lucas fique bem", diz Ana, que, como a irmã, precisou largar seu trabalho para assumir os cuidados do sobrinho.
Esses cuidados não são poucos. Além de paralisar o crescimento do cérebro do bebê, o vírus da zika pode afetar todo o sistema nervoso da criança, alteração que pode causar uma série de problemas conhecidos como síndrome congênita da zika: convulsões, irritabilidade, dificuldade para engolir, membros atrofiados e endurecidos, movimentos involuntários, baixa visão e audição.
Quase diariamente, Lidiane levava o filho para consultas e sessões de fisioterapia, neurologia, terapia ocupacional, entre outros tratamentos. Na maioria das vezes, usava transporte público. No início de junho, ela contraiu covid-19, foi internada e intubada, mas acabou não resistindo.
"Ela era uma mãe muito dedicada ao filho, parou de trabalhar por ele. Lucas requer muito cuidado: ele praticamente não fica em pé. É da cama para o colo, do colo para a cadeira de rodas. Só quem já conhece desde pequeno sabe cuidar dele", diz Ana, que conta ter sempre ajudado a irmã.
O pai do garoto, que mora em João Pessoa, ajuda financeiramente, mas trabalha fora e não participa dos cuidados do filho. "Lucas precisa de alguém com ele o tempo todo", diz Ana.
Nem todos custos do tratamento permanente são cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como alguns remédios, equipamentos e o transporte até clínicas e hospitais.
Lucas recebe um salário mínimo pelo Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC). Porém, antes de contrair covid-19, Lidiane consignou parte do benefício para comprar equipamentos que ajudam a mobilidade do filho, como uma órtese para as pernas e uma luva especial que protege as mãos do garoto.
"Hoje, ele recebe um valor bem menor por causa desse empréstimo. Muitos dos gastos saem do nosso bolso", conta Ana.
Nas últimas duas semanas, após a morte da irmã, a babá não tem conseguido levar o sobrinho para o tratamento em João Pessoa, a 103 km de Alagoa Grande.
"Não temos carro, não tem ninguém que possa levá-o. Não tenho como ir para João Pessoa várias vezes por semana sem ajuda", diz Ana, que, após deixar o emprego para assumir a guarda de Lucas, recebeu doações em dinheiro e comida de parentes e amigos.
Zika e coronavírus
Desde o início da pandemia, o martírio das mães de crianças com síndrome congênita da zika piorou. Os constantes deslocamentos para consultas, muitas vezes feito em transporte coletivo, expuseram as famílias já vulneráveis ao coronavírus.
Em 20 de maio, a Associação de Famílias das Crianças com Microcefalia - Mães de Anjos da Paraíba (Amap), que representa 125 mães, enviou um ofício à Prefeitura de João Pessoa solicitando uma audiência com alguma autoridade em saúde. A entidade queria antecipar a vacinação das mães de crianças com microcefalia para evitar que elas contraíssem covid-19.
Segundo a associação, a Prefeitura não respondeu ao documento. Recentemente, o grupo criou uma campanha de arrecadação de recursos para ajudar mães de crianças com microcefalia no site Vakinha.
A BBC News Brasil pediu um posicionamento sobre a demanda da associação para a Prefeitura de João Pessoa, comandada pelo prefeito Cícero Lucena (Progressistas), na última quinta-feira. Mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
"As mães são as únicas referências para essas crianças. Elas estão com eles 24 horas por dia, sabem quando eles estão com fome, com sede, com dores. Elas são muito dependentes das mães. É uma dedicação total, a maioria das mulheres para de trabalhar para cuidar dos filhos", diz Janine dos Santos de Souza, de 28 anos, presidente da Amap e também mãe de uma criança com microcefalia.
"Imagina se uma criança dessas fica sem a mãe por causa da covid. O que vai acontecer com ela? Quem vai cuidar dela? É uma situação desesperadora. Muitas mães estão deixando de levar os filhos para o tratamento, porque estão com medo de pegar covid e morrer", diz Souza.
A falta de atenção médica pode causar ainda mais problemas à saúde das crianças. Muitas delas têm problemas respiratórios ou de ingestão de alimentos.
Aprender a engolir é uma questão de sobrevivência, por exemplo. Aspirar comida acidentalmente para os pulmões é um problema comum entre as crianças e frequentemente leva a infecções, pneumonia e morte.
A pneumonia por broncoaspiração, em que a comida desce pela laringe em vez de pelo esôfago e vai parar nos pulmões em vez de no estômago, é uma das principais causas de morte entre as crianças da zika.
Com fisioterapia precoce e constante, muitas podem superar tais problemas. Mas com a suspensão o tratamento na pandemia, algumas crianças de Alagoas, por exemplo, regrediram e voltaram a usar sondas alimentares.
"É impressionante ver como quando uma criança para um tempo com as terapias ela volta com bastante dificuldade de deglutição, regride muito", disse Adriana Melo, obstetra da maternidade pública de Campina Grande, na Paraíba, em entrevista recente à BBC News Brasil.
"Sem trabalho constante, a musculatura dessas crianças atrofia muito rápido."
Já Ana Maria Pereira agora tenta lidar com a nova responsabilidade sobre o sobrinho Pedro Lucas, falta de recursos financeiros e o luto pela perda da irmã para a covid.
"Moro com minha mãe, que está doente e sofrendo muito com a partida da Lidiane. A gente era muito apegada a ela, era a pessoa mais próxima a mim. Nós até guardamos as fotos dela para não ficarmos olhando e chorando o tempo todo. Está sendo muito difícil", diz ela.
"Estou me virando com o que eu posso. A gente se vira com um pouquinho aqui e ali, assim a gente vai passando os dias. Nunca vou abandonar meu sobrinho, e ele sabe disso. Só estou fazendo o que minha irmã já fazia."
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