O raciocínio parece ter uma lógica irrefutável: o melhor método para evitar uma gestação é não fazer sexo.
Na prática, porém, essa questão é muito mais complicada, especialmente quando falamos de adolescentes.
Entre os especialistas, já é consenso que a prevenção da gravidez em meninas de 10 a 19 anos passa necessariamente por uma série de fatores, que envolvem a educação, a disponibilidade de métodos contraceptivos e a existência de perspectivas profissionais e sociais.
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Mas as políticas públicas brasileiras nessa área parecem querer ir na contramão das evidências científicas. Prova disso é a recente discussão que aconteceu na cidade de São Paulo, em que o vereador Rinaldi Digilio (PSL) propôs a criação da "Semana Escolhi Esperar".
A ideia é instituir datas para que o tema da prevenção da gravidez na adolescência seja discutido nas escolas da capital paulista.
O projeto ganhou aval da própria Prefeitura de São Paulo, comandada por Ricardo Nunes (MDB).
Embora não cite diretamente a abstinência sexual, a escolha do nome "Escolhi Esperar" para a iniciativa chamou atenção por ser o mesmo mote usado em campanhas de grupos religiosos cristãos, que entendem que a relação sexual só pode acontecer após o casamento.
O debate na Câmara Municipal paulista pode até ser o mais recente, mas não é o único: em outras cidades e Estados, vereadores, deputados, prefeitos e governadores também abraçaram a ideia e já lançaram emendas e projetos de lei similares, que tentam até promover a abstinência sexual como método contraceptivo para os jovens brasileiros.
No Governo Federal, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos chegou a lançar, com apoio do Ministério da Saúde, uma campanha no início de 2020 que abordava o tema e tentava retardar a idade da primeira transa.
Numa série de coletivas e notas à imprensa, representantes dos ministérios prometiam que o objetivo era colocar a abstinência como um método complementar, e que a distribuição de camisinhas e outros contraceptivos não seria prejudicada ou ignorada.
À época, a abordagem foi muito criticada por especialistas em políticas públicas. O tema, porém, acabou ficando em segundo plano com a chegada e o agravamento da covid-19 ao país.
Um sério problema de saúde pública
As estatísticas sobre casos de gestação durante a adolescência no Brasil revelam uma realidade assustadora e pouco divulgada.
Segundo um relatório feito pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), a taxa anual de gravidez precoce no mundo é de 44 nascimentos a cada mil adolescentes de 15 a 19 anos.
No Brasil, esse índice sobe para 62 nascimentos a cada mil adolescentes.
O Brasil, inclusive, faz parte do grupo de sete nações que respondem por metade de todas as gestações precoces registradas no planeta (os outros são Bangladesh, República Democrática do Congo, Etiópia, Índia, Nigéria e Estados Unidos).
Olhando para a situação interna, de cada seis crianças que nascem em solo brasileiro, uma é filha de mãe adolescente.
Para piorar, um terço das meninas brasileiras que tem um bebê ficam grávidas novamente após 12 meses, enquanto o tempo mínimo recomendado entre uma gestação e outra é de 18 meses.
Outro dado que chama a atenção: 65% dos partos de adolescentes brasileiras não foram planejados.
Vale ressaltar que a maioria desses dados leva em conta a faixa etária que vai dos 15 aos 19 anos — quando a gravidez ocorre antes disso (dos 10 aos 14 anos), esses casos são geralmente considerados "estupros presumidos".
E mesmo nessas idades ainda mais precoces a situação também é assustadora: um artigo de especialistas da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e de outras quatro instituições revela que o Brasil registrou, entre 2006 e 2015, mais de 278 mil nascimentos de bebês cujas mães haviam acabado de sair da infância e entrado na adolescência.
Embora a taxa de gestações entre garotas de 10 a 14 anos tenha caído ano após ano em boa parte do país, houve um crescimento de mais de 20% dos partos nesta faixa etária entre residentes da região Norte.
Em seu parecer, a Febrasgo ainda aponta que essas estatísticas brasileiras tão altas e díspares estão relacionadas a "uma série de fatores que interagem entre si".
Entre eles, a entidade destaca o início precoce da vida sexual, a pobreza, a baixa escolaridade, ter a maternidade como a única opção de vida, relações familiares conflituosas, falta de diálogo, o não uso (ou o uso inadequado) de métodos contraceptivos, a violência sexual, o casamento precoce, a falta de informação, a ausência de educação sexual nas escolas, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e a pressão dos colegas.
"Estamos falando, portanto, de um problema multifatorial, que vai interferir significativamente na vida da adolescente dali em diante", assinala o ginecologista Agnaldo Lopes, presidente da Febrasgo.
Futuro em xeque
É de se esperar, portanto, que um cenário tão complicado como esse tenha as mais diversas repercussões para a adolescente, o bebê, a família e toda a sociedade.
O relatório da Febrasgo destaca que gestações em idades tão tenras estão associadas com maior risco de parto prematuro, recém-nascido com baixo peso, o aparecimento de transtornos mentais (como depressão) na adolescente e até morte por complicações na hora de fazer um aborto inseguro ou durante o parto.
A necessidade de cuidar do filho também está diretamente relacionada com o abandono escolar e a perda de oportunidades de empregos, o que, segundo o texto da Febrasgo, "perpetua o ciclo da pobreza".
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que seis em cada dez adolescentes grávidas no país não trabalham e nem estudam.
E isso repercute na vida delas e também na economia como um todo: um estudo assinado pelo Banco Mundial revela que o Brasil teria um incremento de 3,5 bilhões de dólares (R$18 bilhões) em produtividade anual se essas meninas tivessem a gestação só após os 20 anos.
Como combater
Mas, diante de tal problema, como é possível resolvê-lo?
E a ciência já tem bons caminhos a oferecer: a ginecologista Carolina Sales Vieira, chefe do Serviço de Anticoncepção da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), explica que as abordagens mais bem-sucedidas combinam uma série de estratégias.
"E isso inclui projetos de transferência de renda, não incentivar o casamento precoce, melhorar a educação sexual nas escolas, aprimorar o acesso aos métodos anticoncepcionais…", enumera a médica.
A especialista também defende a necessidade de dar perspectivas futuras para as meninas brasileiras, especialmente das camadas mais pobres.
"Se elas não têm razão para estudar, se não possuem algum objetivo de carreira, por que atrasariam uma gestação para outro momento da vida?", questiona.
E, ao contrário do que se pensa, falar mais sobre saúde sexual nas escolas não estimula os jovens a transarem de forma desenfreada.
"As aulas precisam falar sobre o autocuidado, os problemas de ser mãe precocemente, o que fazer se estiver em risco de abuso e, claro, como se proteger durante a relação para não apenas evitar um filho, mas também uma infecção sexualmente transmissível (IST)", exemplifica Vieira.
E essas aulas não devem focar apenas no sexo feminino, segundo a especialista. Os meninos também precisam saber de suas responsabilidades e entender todos os aspectos da reprodução, do prazer e todos os aspectos relacionados ao tema.
O problema está justamente na falta de informações: quando os jovens não conhecem o próprio corpo, o que acontece durante o sexo e como se resguardar adequadamente, eles acabam se colocando em situações de risco.
Segundo a ginecologista, tratar da sexualidade de forma aberta e sem tabus, respeitando os limites de cada faixa etária, está relacionado, inclusive, a um início sexual mais tardio, pois os jovens se sentem mais empoderados para tomar uma decisão consciente e sabem reconhecer melhor possíveis abusos.
Focar só em abstinência também não ajuda em nada, aponta a médica.
"Os estudos nos mostram que os jovens acabam tendo relação sexual do mesmo jeito e ainda ficam mais vulneráveis à gravidez e às ISTs", resume Vieira.
"Não basta dizer para não ter relação sexual. É preciso instruir os jovens a escolher o momento oportuno, em que as coisas são feitas de forma consciente e segura", entende Lopes.
"Fora que essa abordagem do 'escolhi esperar' não reconhece o papel da violência sexual na gravidez durante a adolescência: uma gestação dos 10 aos 14 anos muitas vezes é fruto de um estupro presumido. Será que essas meninas só engravidam porque não falaram 'eu escolhi esperar'?", aponta a especialista.
"Muitas vezes, a questão não é querer fazer sexo. Elas são obrigadas", completa.
Para que espermatozoide e óvulo não se encontrem
Somado à educação sexual e o combate às mais variadas formas de violência, especialistas argumentam ser necessário ampliar o acesso aos métodos contraceptivos no sistema público de saúde brasileiro.
Segundo eles, não se trata apenas dos preservativos, mas de alternativas de longa duração que prescindem da memória e da ação direta dos adolescentes na hora do sexo, como é o caso dos dispositivos intrauterinos (conhecidos pela sigla DIU), dos implantes hormonais e das injeções mensais ou trimestrais.
Embora não atuem contra as ISTs como Aids, sífilis e gonorreia, as pesquisas mostram que essas ferramentas têm uma alta eficácia na prevenção da gravidez.
Nesse sentido, uma das experiências mais bem-sucedidas de redução nos casos de gestação na adolescência aconteceu no Reino Unido. Seis anos após a implementação de um programa amplo, que envolveu os métodos contraceptivos e a educação sexual, foi registrada uma queda de 42% na taxa de meninas grávidas por lá.
Em comparação, o Brasil não realizou nenhuma mudança significativa nas políticas públicas de sexualidade entre os mais jovens. O resultado foi uma queda de apenas 13,5% nos números de adolescentes que esperavam um filho entre 2006 e 2015.
Seguindo as evidências, portanto, pensar que a abstinência será a solução para todos os problemas soa, no mínimo, estranho, na opinião de especialistas.
"Na verdade, quando a gente não usa as evidências científicas disponíveis para criar políticas de saúde pública realmente efetivas, corremos o risco de gastar dinheiro e não alcançar o resultado desejado, a não ser atender os anseios de uma base eleitoral ou perpetuar candidatos no poder", critica Vieira.
"Quando nós temos a evidência de que algo funciona e seguimos por outro caminho com motivações religiosas ou morais, estamos correndo o risco de desperdiçar dinheiro público, que é um de nossos grandes males junto da corrupção", completa a ginecologista.
Respostas, versões e posicionamentos
A BBC News Brasil procurou diversas entidades, representantes políticos e instâncias governamentais que foram citados ao longo desta reportagem.
A Prefeitura de São Paulo respondeu por meio de uma nota de esclarecimento, enviada pela assessoria de imprensa.
Nela, os responsáveis pela capital paulista informam que o parecer da Secretaria Municipal de Saúde, que deu uma sinalização positiva ao projeto da "Semana Escolhi Esperar", "é técnico, portanto não autoriza nenhuma ilação político-ideológica".
A proposta segue em discussão na Câmara Municipal da cidade.
"A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) ressalta que as ações de prevenção da gravidez na adolescência desenvolvidas pela rede municipal são baseadas na autonomia do adolescente, preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e também no direito à informação e acesso a métodos contraceptivos, inclusive para redução da incidência de segunda gravidez na adolescência", continua a nota, que informa uma queda de 9,2% na taxa de gestações entre paulistanas de 10 a 20 anos ao longo do ano passado.
Procurados pela BBC News Brasil, nem o vereador Rinaldi Digilio, autor do projeto, nem o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, se manifestaram.
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