Um incêndio destruiu parte do acervo de um galpão da Cinemateca na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, na noite de ontem. Ao menos três salas do 1º andar — duas de filmes históricos e uma de material impresso e documentos — foram consumidas pelo fogo. Segundo o Corpo dos Bombeiros, as chamas começaram após a manutenção de um ar-condicionado em uma sala da instituição, a mais antiga do tipo na área de cinema na América Latina. Não houve vítimas. O governo federal disse que pediu à Polícia Federal (PF) para apurar o caso.
Nos últimos anos, artistas e funcionários da Cinemateca têm alertado para a precariedade da estrutura, falta de investimentos, e risco de incêndio. Inclusive, um manifesto daqueles que trabalham na instituição, datado de 12 de abril, chamava a atenção para a precariedade das instalações. “A possibilidade de autocombustão das películas em nitrato de celulose, e o consequente risco de incêndio frequentemente recebem atenção da mídia e do público. A instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real”, alertou o documento.
As chamas atingiram três salas de área entre 300m² e 400m² e se espalhou rapidamente por causa das substâncias químicas que compõem as películas e o papel dos documentos. O andar térreo não foi afetado. “Estamos apurando o que foi queimado e o que foi preservado nessas três salas, mas provavelmente não foi preservado nada”, afirmou a capitão Karina Paula. A corporação ainda apurava, ontem, se o local tinha alvará de incêndio.
Conforme a Secretaria de Cultura do governo federal, o sistema de climatização havia passado por manutenção havia um mês. Nas redes sociais, o secretário Mário Frias — que está na Itália onde participa da cúpula do G-20 de ministros da Cultura —, escreveu que a apuração da PF vai indicar se o incêndio foi criminoso. “Tenho compromisso com o acervo ali guardado, por isso mesmo quero entender o que aconteceu”, disse.
“Caso se confirme que o incêndio é fruto da falta de manutenção que nós e todo o setor audiovisual já tínhamos anunciado, vamos perceber que essa é mais uma ação de ataque à cultura e ao patrimônio cultural brasileiro por parte do governo federal”, disse o secretário municipal de Cultura de São Paulo, Alê Yousseff.
A Cinemateca tem a função de preservar e difundir o acervo audiovisual brasileiro. É administrada pela Secretaria Nacional do Audiovisual, parte da Secretaria Especial de Cultura. Há dois anos, o contrato que a Associação Roquette Pinto mantinha com o Ministério da Educação para a gerência da instituição não foi renovado.
Promessas
O governo federal se comprometeu com novo edital para a função, mas a promessa não saiu do papel. Em maio de 2020, ao demitir Regina Duarte do comando Secretaria Especial da Cultura, o presidente Jair Bolsonaro declarou, em vídeo ao lado da atriz, que ela iria para a instituição — ela, porém, jamais assumiu a função. Em agosto, ao visitar as instalações, Frias declarou que a Cinemateca estava “protegida”.
O prédio no número 290 da rua Othão, na Vila Leopoldina, foi doado à Cinemateca em 2009 pela União. Com 6.356m² de área construída, abriga as reservas específicas de guarda de acervos, áreas de processamento de acervos fílmicos e documentais, laboratório de impressão fotográfica digital e demais instalações administrativas, de apoio e serviços da instituição.
Várias manifestações no Twitter acusam o governo de Jair Bolsonaro de promover um desmante deliberado da cultura no Brasil. Foram inúmeras as críticas não apenas à atuação de Mario Frias, mas também a Regina Duarte por não ter assumido o comando da Cinemateca, como ficou acertado depois de ser dispensada da secretaria de Cultura.
Repercussão
Felipe Neto (youtuber e influenciador digital)
“O incêndio da Cinemateca não é tragédia, não é acidente. É um incêndio causado pela inoperância. Em 12 de abril, os trabalhadores da Cinemateca avisaram que pegaria fogo”.
Joice Hasselmann (deputada federal, PSL-SP)
“Cadê o governo @jairbolsonaro, que retirou a fundação que cuidava do acervo para alojar Regina Duarte?! Este governo destrói tudo o que toca!”
Humberto Costa (senador, PT-PE)
“Nada poderia representar mais o descaso do governo Bolsonaro com a cultura brasileira. Que dia triste, que gestão desastrosa”.
Leandra Leal (atriz)
“No mínimo esse incêndio foi resultado de negligência. Estamos perdendo nossa memória”.
Augusto de Arruda Botelho (jurista)
“O incêndio na Cinemateca não é uma fatalidade, um acidente. É o resultado de uma política de sucateamento da cultura brasileira”.
Zélia Duncan (cantora)
“Descaso do governo com a cultura é proporcional ao nível de ignorância que vem de lá. E a Cinemateca arde… o Brasil tá lascado”.
Tico Santa Cruz (músico)
“Uma hora são os dados do CNPq. Outro dia incêndio na Cinemateca Brasileira. Alguém duvida que isso tudo seja um projeto de destruição?”
Dadá Coelho (humorista e roteirista)
“A crônica de uma morte anunciada. A memória do país indo para o ralo”.
Davi Miranda (deputado federal, PSol-RJ)
“O fogo queima a cultura do país abandonado por Bolsonaro!”
Cláudio Couto (cientista político)
“Agora queima a Cinemateca Brasileira. A mesma Cinemateca largada às traças por Bolsonaro, que ele queria dar de presente para Regina Duarte, a palhaça do pum”.
Antonio Tabet (humorista e roteirista)
“Com Regina Duarte, Mário Frias, Jair Bolsonaro e grande elenco”.
Fabiano Contarato (senador, Rede-ES)
“O abandono e o descaso fazem nova vítima: a Cinemateca Brasileira. Nossa história e nossa cultura pegam fogo em uma tragédia anunciada. Uma lástima e uma perda irreparável para o cinema nacional!”
Marcelo Freixo (deputado federal, PSB-RJ)
“O incêndio na Cinemateca não é tragédia anunciada, é projeto de governo”.
Erika Hilton (deputada estadual, SP)
“Cinemateca Brasileira está pegando fogo. Cultura Brasileira abandonada. Nossa história pegando fogo pelo descaso proposital”
Ciro Gomes (ex-ministro)
“Quem pagará por este pavoroso crime contra a memória nacional? É o rastro de destruição deste governo”.
João Barone (músico)
“Já estão queimando a Cinemateca Brasileira, daqui a pouco começam as bibliotecas e livros”.
Andréa Pachá (juíza e escritora)
“Tragédias são inevitáveis. O apagão do CNPq e o incêndio na cinemateca não são tragédias. São crimes. Por descaso. Por omissão. Por irresponsabilidade”.
Dilma Rousseff (ex-presidente da República)
“O triste fim da Cinemateca em São Paulo. Bolsonaro, Regina Duarte, Mario Frias, incêndio”.
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Cineastas lastimam
Ainda sem as dimensões reconhecidas na ação do fogo pelos galpões da Cinemateca Brasileira, a consternação já tomou parte do segmento artístico. Filha de Rogério Sganzerla, um dos nomes de ponta do Cinema Novo, Sinai Sganzerla não sabia do paradeiro e de como o incêndio atingiu a obra do pai.
“Há um ano e meio, funcionários imprescindíveis não recebiam pagamento, e havia uma falta de gestão na entidade. Integrantes da Sociedade Amigos da Cinemateca tratavam muito do completo abandono ao qual tudo foi sujeitado. Estou muito triste”, comentou.
Há três anos, numa ação pessoal, ela tentava o resgate de toda a obra em cinema do autor de O bandido da luz vermelha (1968). Negativos e cópias foram acessadas, até a interrupção da restauração dos filmes de Rogério — quatro obras ficaram sem telecinagem, o ponto inicial para o resgate completo de uma película.
Produtora e organizadora de festivais, a brasiliense Ana Arruda desenvolvia parceria estreita com a Cinemateca, em ações como a formatação do Curta Brasília. “É uma lástima. O descuido, por parte do governo, mostra como o cinema é forte e traz conteúdo perigoso aos olhos de uns. Parece proposital. É nesses momentos que quem tanto observa, em viagens, o cuidado no exterior de museus e afins, deve se conscientizar da relevância das políticas públicas para a cultura. É indispensável valorizar o que é nosso”, observa Ana. Ela percebe, ainda, a natureza da perda de valores culturais impossíveis de serem recuperados.
Cineasta de Brasília e ocasional morador de São Paulo, Gustavo Galvão foi outro artista impactado com o incêndio. “Não há como chorar: sabíamos de tudo, não aconteceu com falta de aviso. Houve o alerta das condições da Cinemateca, que é a quinta maior no mundo. É chocante ver que nada foi feito. Parece premeditado”, observou, acrescentando que depositou na instituição negativos e cópias de todos os filmes que produziu na expectativa de ver tudo resguardado.
“Independentemente do teor artístico, há muito material filmado que traz um valor com registro de história singular e que está sob risco constante de acidentes como este”, lastimou.