A ameaça da variante Delta, considerada mais contagiosa, fez ao menos oito estados mudarem os calendários de vacinação contra a covid-19 e adiantarem a segunda dose dos imunizantes da Pfizer e da AstraZeneca. A decisão parte do pressuposto de que, para conter a cepa, é necessário uma imunização completa. Porém, a estratégia é controversa. Nesta quinta-feira (15/7), o governo do Distrito Federal anunciou que estava voltando atrás na decisão de adiantar a segunda dose e que irá esperar orientações do Ministério da Saúde.
O temor é de de que, com a variante em circulação no país, os números de novos casos e de mortes voltem a aumentar. O Brasil tem registrado uma queda nesses números nas últimas semanas, mas o patamar ainda está muito alto. Aqui ainda é a maior média diária do mundo.
A tão temida variante Delta foi primeiro identificada na Índia, em abril. Por lá, a cepa fez o país bater recordes de casos e mortes. Desde lá, ela já foi registrada em mais de 100 países. Alguns deles, que já estavam com a vacinação bem adiantada, tiveram que recuar e voltar com algumas medidas restritivas devido ao aumento de casos. Esse foi o caso de Israel, que decidiu pela volta do uso de máscara mesmo com 60% da população imunizada com pelo menos uma dose.
No Brasil, com apenas 14,5% da população totalmente vacinada, a variante foi primeiro identificada em um tripulante de um navio indiano atracado em São Luís (MA), em maio. No mesmo mês, ela foi identificada em um morador de Campo dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, que tinha histórico de viagem para a Índia. Já em julho, um morador de São Paulo foi diagnosticado com a cepa. Ele trabalhava de casa e não tinha viajado ao exterior. Nesta quarta-feira (14/7), a prefeitura de São Paulo confirmou que já há transmissão comunitária da variante na cidade. Isso quer dizer que a cepa está circulando livremente.
De acordo com a presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Gulnar Azevedo e Silva, no caso dessa identificação de que a variante circula sem controle é correto adiantar a segunda dose. “As duas doses conferem uma proteção maior. Com uma apenas, a proteção é menor. Então é preciso agilizar a imunização completa. Essa vacinação bloquearia essa cadeia de transmissão”, explica.
De acordo com Guilherme Werneck, epidemiologista e professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a estratégia pode ser boa, afinal, a imunização só está completa com as duas doses. "Tem que considerar várias coisas. O que a gente sabe é que para conter a variante é preciso as duas doses. Uma só não é suficiente. Outro aspecto é que essas vacinas são autorizadas a serem tomadas em um intervalo menor, mas tem que ser de, no mínimo, oito semanas", afirma.
Variante neutralizada
Em julho, um estudo publicado na Nature mostrou que duas doses das vacinas da Pfizer e da AstraZeneca são capazes de neutralizar a variante indiana. A pesquisa ainda apontou que a cepa é resistente a anticorpos que funcionam nas outras linhagens do coronavírus.
Apesar disso, ele explica que se novos estudos mostrarem que é melhor esperar as 12 semanas para completar a imunização, a decisão deve ser revista. "Essas decisões podem ser modificadas caso se tenha evidências de que a eficácia muda", diz. De acordo com ele, é importante observar que em países que estavam com uma alta cobertura da primeira dose não foi suficiente para barrar o avanço da variante. "Estamos com uma cobertura de segunda dose baixa o que nos coloca em uma situação vulnerável", destaca.
De acordo com o professor Mauro Niskier Sanchez, vice-coordenador da Sala de Situação da Universidade de Brasília (UnB), a estratégia só é boa se não for prejudicar a aplicação da primeira dose. “A diminuição do intervalo entre a primeira e a segunda dose pode ser uma boa estratégia se não houver prejuízo para aplicação de primeiras doses em novos grupos populacionais, ou seja, se forem usadas as doses já recebidas e armazenadas como D2”, explica. Ele diz que é por isso que há ainda tanta controvérsia sobre o assunto. “Não é uma questão apenas do efeito da vacina em si, mas também da disponibilidade de doses que têm que ser manejadas de forma adequada ao serem enviadas pelo Ministério da saúde a cada unidade da federação”, completa.
É exatamente por isso que a estratégia não é avaliada como positiva por algumas entidades. Em nota técnica, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) disse que “num cenário em que não houvesse estoque limitado de doses, a estratégia de postergar a segunda dose das vacinas poderia ser reavaliada, no entanto, infelizmente, este não é o caso do Brasil e de muitos outros países neste momento.”
As instituições destacam que, com o adiantamento da segunda dose, a velocidade da primeira irá diminuir, o que é um ponto negativo para tentar baixar a quantidade de novos casos no país e a gravidade das infecções. “Para o atual momento epidemiológico que vivemos e com a quantidade de doses atualmente disponível no país, a estratégia de manter o intervalo entre doses das vacinas Pfizer e AZ/Oxford em 12 semanas, a exemplo do que fizeram Escócia, Inglaterra, Canadá e diversos outros países, parece correta e permite reduzir a carga de morbimortalidade da doença”, diz.
Outro ponto levantado pelas entidades, é que alguns estudos têm mostrado uma melhor eficácia das duas vacinas quando o espaçamento entre as doses é maior. Um estudo feito no Reino Unido mostrou que a eficácia da vacina da Pfizer com um intervalo de 12 semanas após a aplicação da segunda dose foi três vezes maior do que no intervalo de três semanas.
Este entendimento também é seguido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 15 de junho, a OMS disse que usar o prazo de 12 semanas entre as doses das vacinas deve ser utilizada em países que ainda não atingiram altas taxas de cobertura vacinal e que estão com muitos casos ativos.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) também solicitou que o intervalo de 90 dias entre as doses seja mantido. Em nota, a instituição garante que o intervalo é suficiente para manter a eficácia da vacina. “A Fundação esclarece que o intervalo de 12 semanas entre as duas doses recomendado pela Fiocruz e pela AstraZeneca considera dados que demonstram uma proteção significativa já com a primeira dose e a produção de uma resposta imunológica ainda mais robusta quando aplicado o intervalo maior. Adicionalmente, o regime de 12 semanas permite ainda acelerar a campanha de vacinação, garantindo a proteção de um maior número de pessoas”, diz a nota.
A medida também vai em desencontro à recomendação do Ministério da Saúde e da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), que ainda sustentam o intervalo de 12 semanas como a melhor estratégia. Nesta terça-feira (13/7), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que a antecipação da segunda dose “rompe pacto nacional do PNI”.
O epidemiologista Guilherme Werneck destaca que a estratégia só funciona caso haja uma organização e que todos os pontos sejam avaliados. "É importante lembrar que essa ação leva a uma sobrecarga do sistema, porque você vai ter que vacinar muito mais pessoas e tem um número limite de doses que podem ser aplicadas por dia. A vacinação para os grupos mais jovens vai ficar prejudicada. Por isso tem que ter um planejamento bem claro para que não leve a situação de não ter vacina", alerta. Essa situação, inclusive, já foi enfrentada em vários lugares pelo país que paralisam a aplicação da primeira e da segunda dose por falta de imunizantes.
Barrando a variante
De acordo com Gulnar, não basta esse adiamento da segunda dose para barrar o avanço da variante pelo país. “Tem que fazer isso, mas de forma planejada e organizada. E tem que ter vigilância epidemiológica e investigação dos casos”, alerta.
Segundo o professor Mauro, a preocupação é que com o aumento de casos provocados pela variante, o sistema de saúde brasileiro volte a ser muito pressionado, o que provocaria um aumento de mortes. “A variante delta preocupa pois ela é comprovadamente mais transmissível, apesar de não necessariamente causar doença mais grave. Neste caso, se esta variante passa a predominar em uma população como aconteceu no Reino Unido, pode-se observar um aumento significativo nos casos o que vai exigir uma resposta apropriada do sistema de saúde”, destaca.
Por isso, ele alerta sobre a necessidade de todas as medidas para conter a transmissão da cepa sejam tomadas. “Para conter o avanço desta ou de qualquer variante é necessário diminuir a intensidade de circulação do vírus, o que se dá com a aceleração da cobertura vacinal e com a manutenção das medidas não farmacológicas já conhecidas, como distanciamento social e uso de máscara”, afirma.
Guilherme, no entanto, lembra que não tem como a gente saber como a variante irá se comportar no Brasil, já que a gente tem uma outra cepa também muito transmissível: a Gama. Essa variante, que foi a primeira identificada em Manaus, hoje é predominante no país e foi a responsável pelo colapso do sistema de saúde do Amazonas em dezembro. "A gente não sabe se vai ter a mesma dinâmica que está tendo em outros países. A gama que é muito transmissível ficou restrita a América Latina. Não sabemos se essa Delta terá uma vantagem e irá substituir a Gama. Mas temos que estar preocupados", destaca.
Variante Delta pelo mundo
O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou na segunda-feira (12/7) que a variante Delta do coronavírus será predominante no mundo "em breve". Segundo ele, "o mundo está assistindo em tempo real enquanto o vírus da covid-19 continua a mudar e a se tornar mais transmissível".
O número de novos casos de covid-19 avançou em quase metade dos Estados Unidos devido a circulação da variante Delta. Mesmo estados que estão com a vacinação bem adiantada, como Nova York e Califórnia, tiveram aumento no número de novos casos. Pelo menos 51% dos novos casos do país são da cepa. “O que a gente está vendo é que ela se mostra mais transmissível, a preocupação que está aparecendo é que vários países e estados dentro dos Estados Unidos que já tinham uma vacinação alta em comparação com a brasileira estão tendo aumento de casos, como o Arkansas, que já tinha 40% com a segundo dose. Felizmente não se tem um aumento na mesma velocidade da hospitalização e óbitos”, explica Guilherme.
Israel bateu recorde de novas infecções diárias este mês desde março com mais de 500 em único dia. A variante Delta representa 90% dos novos casos. O número de mortes, no entanto, não tem subido na mesma velocidade. Segundo o Ministério da Saúde do país, foi observado que a eficácia da vacina contra a variante é menor. Mas que ela protege contra casos graves da doença. De acordo com o país, o imunizante da Pfizer tem a capacidade de proteger 64% das infecções e de 93% contra casos graves e mortes.
A resposta da Pfizer ao comunicado de Israel é de que talvez seja necessária uma terceira dose do imunizante. Porém, os dados não foram confirmados por estudos, então é muito cedo para saber. De qualquer forma, Israel já começou nesta semana a vacinar os imunocomprometidos com uma terceira dose do imunizante.
Pesquisas recentes mostram que a vacina da AstraZenca protege em 71% na primeira dose e 92% na segunda contra a nova cepa.
O diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e um dos principais consultores médicos do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, garantiu na semana passada a jornalistas que as vacinas protegem contra as variantes. “O mundo está compreensivelmente preocupado com a variante do vírus delta. As vacinas, de fato, são eficazes contra isso”, afirmou.
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