Um projeto criado em 2017 para apoiar mulheres e meninas vítimas de abuso sexual em Uberlândia está passando por uma fase de pioneirismo no Brasil. O Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas) iniciou os primeiros atendimentos de aborto por telemedicina em agosto de 2020 e apesar de enfrentar críticas, o serviço é legalizado e seguro.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por dia, cerca de 180 meninas e mulheres são estupradas no Brasil. Entre as vítimas, por hora, quatro são crianças de até 13 anos.
Em Minas Gerais, apenas uma menor de 14 anos teve a gravidez interrompida em 2020, segundo dados do DataSUS, diante de 554 adolescentes com menos de 14 anos grávidas e de 844 casos de estupro de vulnerável registrados no estado de janeiro a junho do ano passado. Em média, são 4,6 casos de meninas de até 14 anos estupradas por dia no estado.
Além do trauma emocional e físico, algumas vítimas também sofrem com outra grande consequência, a gravidez. Nestes casos, o aborto é permitido no Brasil e realizado apenas em serviços de saúde.
Com a pandemia, o acesso à hospitais e internações ficou mais difícil para procedimentos não relacionados à covid-19, por isso, o Ministério da Saúde aprovou uma portaria em março do ano passado, permitindo o uso da telemedicina, enquanto durar a emergência sanitária no Brasil.
Tendo esse aval, somado à dificuldade de atendimento humanitário às vítimas de estupros, o Hospital de Clínicas de Uberlândia aprovou, por meio do Nuavidas, a interrupção da gravidez por telemedicina em vítimas de estupro.
O acompanhamento das vítimas de abusos sexuais já acontecia desde 2017, quando o serviço foi criado na intenção de oferecer uma ajuda humanizada e sem negligências à quem já sofreu uma agressão. Segundo a coordenadora geral do Nuavidas e médica ginecologista, Helena Paro, os atendimentos não são apenas para as meninas e mulheres que sofrem, também, a consequência da gravidez.
“O Nuavidas é um núcleo de profissionais da Saúde e do Direito que prestam assistência às pessoas em situação de violência sexual. Não só aquelas que engravidam, mas as que não também. A maioria dos atendimentos não é feito com gestantes, é mais com crianças, adolescentes e outras mulheres que não chegam a sofrer a maior consequência da violência, que é a gravidez” explica a médica ginecologista e obstetra.
O aborto no Brasil é permitido em três casos, dois deles foram aprovados em 1940 e outro é mais recente, descriminalizado em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal. Veja:
Quando não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Se a gravidez decorre do estupro;
Se o feto é anencéfalo (malformação fetal, que impede o desenvolvimento de estruturas muito importantes do sistema nervoso central, como o cérebro).
As dificuldades para realização da interrupção legal da gravidez já eram grandes antes da pandemia, mas de acordo com a Folha de São Paulo o coronavírus agravou as dificuldades que os serviços legais enfrentavam no Brasil.
Um levantamento da revista Az Minas em parceria com a Gênero e Número e a ONG Artigo 19 em junho de 2020, mostrou que apenas 55% dos 76 locais de atendimento continuavam funcionando na pandemia.
Ainda segundo uma publicação da Folha, em 2019, menos da metade dos hospitais recuperados no Ministério da Saúde confirmaram que realizam o serviço. De 176 instituições apenas 76 estavam ativas. Ou seja, durante a pandemia pouco mais de 40 locais estavam prestando o serviço regularmente em todo o país.
Observando as dificuldades tanto para prestação de serviço, quanto para utilizar leitos hospitalares em plena crise sanitária, o Nuavidas iniciou um novo projeto, com aprovação da direção do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, da Comissão de Ética da instituição e do Ministério Público Federal em Uberlândia.
O uso da telemedicina foi autorizado pela Lei nº 13.989/2020, em caráter emergencial, e pela portaria nº 467/2020 do Ministério da Saúde e com esse aval, o apoio às vítimas de violência sexual passou a acontecer de forma híbrida, sendo a primeira consulta presencial com assistentes sociais, médicos e psicólogos, respeitando os protocolos de segurança para prevenção da covid-19, e os demais atendimentos remotos.
Durante a consulta presencial, todo o procedimento é explicado à vítima, que precisa assinar alguns termos de compromisso exigidos pela lei, num processo padrão para interrupção da gravidez. Além disso, todos os contatos da equipe médica são disponibilizados e esses ficam disponíveis 24 horas para a mulher, que é acompanhada ao longo da ingestão do medicamento.
O aborto legal farmacológico (com remédio) é feito no Brasil com um medicamento seguro e eficaz, além de fazer parte da lista de medicamentos que apenas hospitais podem comprar. Os comprimidos são entregues à paciente, junto com toda a documentação de orientação enquanto ela está no atendimento presencial do Nuavidas.
Em outros países, como Reino Unido e Estados Unidos o mesmo medicamento é utilizado e o serviço de telemedicina é comum, sendo uma das principais saídas para manter a saúde da mulher durante a pandemia. Inclusive, o remédio é, por diversas vezes, entregue em casa, pelos Correios. Mas esse mecanismo não acontece no Brasil, apesar de ser uma possibilidade.
Com quase um ano de atendimentos remotos, o Nuavidas enfrenta algumas críticas que, para a coordenadora do projeto, fazem parte de pensamentos não científicos. “Vemos que algumas posições são ideológicas e não técnicas, científicas. Que tentam criminalizar os serviços legais. Quando falamos de aborto legal, falamos do procedimento mais seguro da área de obstetrícia. O aborto orientado por profissionais da saúde, é 14 vezes mais seguro que um parto original, que já é um procedimento muito seguro dentro da ginecologia e obstetrícia”, explica a médica.
De acordo com os procedimentos da lei, é preciso realizar um exame físico, ultrassonografia e internação para interrupção da gravidez. Entretanto, os casos de aborto medicamentoso nem sempre exigem a internação, por se tratar de um procedimento e remédio já estudados, com resultados publicados à comunidade internacional.
“A internação não é necessária nos casos de gravidezes mais iniciais, porque o procedimento é extremamente seguro. É o tratamento mais seguro na área da obstetrícia e as evidências científicas já são bastante suficientes para não impormos a exigência de internação para o tratamento de aborto medicamentoso”, explica Helena Paro.
O aborto com o medicamento utilizado no Brasil é recomendado até 63 dias de gestação ou nove semanas, em outros países o limite de tempo é ainda maior. Uma pesquisa publicada na revista BMJ Sex Reproductive Health acompanhou mulheres com menos de 12 semanas de gestação, que realizaram aborto domiciliar por meio de consulta telefônica sem a realização de ultrassom durante a pandemia na Escócia.
O estudo concluiu que o aborto domiciliar, no primeiro trimestre da gestação, por meio da telemedicina e sem a realização do ultrassom é altamente eficaz com índices baixos de complicação, sendo, inclusive, a escolha primordial das mulheres.
Outro estudo envolvendo 4.522 participantes de sete países concluiu que não há diferença relevante na efetividade do procedimento realizado a domicílio ou no hospital. Já no Reino Unido, país onde o aborto é legalizado em amplas circunstâncias, uma pesquisa foi feita com 519 mulheres que buscaram medicamentos para interromper a gravidez e os resultados mostraram que, mesmo com os respaldos legais, as mulheres enfrentam diversas barreiras logísticas ou pessoais para acessar os serviços, resultando na preferência do procedimento realizado em casa.
O aborto medicamentoso tem ampla recomendação internacional, além de ser mais seguro e mais barato para os sistemas de saúde, leva menos sofrimento e risco para as mulheres. No Brasil, a recomendação já existe desde 2018 na Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO).
Desde agosto de 2020, o Nuavidas realizou 17 acompanhamentos por telemedicina e todos tiveram sucesso no procedimento. Com a tristeza da situação em que é colocada após o abuso, as mulheres e meninas que sofrem com tudo isso retomam a vida. Segundo a médica, ela vê um renascimento no olhar das vítimas, não só daquelas atendidas remotamente.
“Vejo o renascimento de meninas e mulheres. Após os atendimentos, a palavra é alívio. Depois do tratamento, elas voltam a sonhar e planejar, todas me trazem essa sensação”, finaliza a coordenadora do Nuavidas.
* Estagiária sob supervisão da subeditora Ellen Cristie.
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