Ser forçado a deixar tudo para trás e tentar a vida em outro lugar. Este é o dilema enfrentado pelo número recorde de 82,4 milhões de pessoas, de acordo com dados do relatório Tendências Globais, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), divulgado em junho. Com a pandemia, esses deslocamentos, que já eram perigosos e cheios de incertezas, ficaram ainda mais arriscados. Em 2020, o Brasil recebeu quase 29 mil pedidos de refúgio.
Há cinco anos, Jenniffer Espitia, 34 anos, saiu da Venezuela em busca de uma vida melhor no Brasil. A crise humanitária no país de origem fez com que ela e os familiares se juntassem aos mais de 5 milhões de venezuelanos que deixaram a terra natal para tentar a vida em outro lugar.
Atingidos pela covid-19, essas pessoas, que já estavam em uma situação vulnerável, foram ainda mais prejudicadas. Jenniffer diz que, durante a pandemia, as dificuldades para os venezuelanos no Brasil aumentaram. Em Brasília, ela chegou há pouco mais de um ano, em busca de oportunidades. Abriu um sex shop, mas, diante das adversidades causadas pela crise sanitária, acabou desistindo do negócio.
“Em Brasília há mais oportunidade para a gente arrumar emprego, e menos preconceito”, explica. Aqui, ela conheceu o projeto Renova, da Secretaria de Trabalho, que atualmente emprega 50 imigrantes. “O importante é sempre trabalhar. É isso que a gente quer fazer”, destaca.
Mas quem deixou o país andino a partir de março de 2020 encontrou uma situação ainda mais complicada: fronteiras fechadas. Um dos primeiros atos do governo federal após o início da emergência sanitária no mundo foi o fechamento da fronteira terrestre com a Venezuela. Uma decisão criticada por organizações humanitárias e que só foi revista, com ressalvas, no fim de junho.
A portaria 655, publicada pela Casa Civil em 23 de junho, apesar de não abrir as fronteiras, autoriza a assistência emergencial para acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária.
“Desde o começo, foi discriminatório. O primeiro ato foi fechar a fronteira com a Venezuela, e não os aeroportos, sendo que as pessoas infectadas vinham da Europa ou da China. Aqui já mostra que a pandemia foi usada de forma seletiva para escolher quem pode entrar. E isso foi se repetindo ao longo dos meses. Desde julho de 2020, turistas estão permitidos por via aérea. Agora, para quem cruza as fronteiras para quem cruza por terra estão fechadas. Com a nova portaria, cria-se uma espécie de válvula de escape para permitir que algumas pessoas possam entrar”, destaca Camila Asano, diretora de programas da Conectas.
Isso porque a portaria condiciona a entrada dessas pessoas a “meios disponíveis”, sem especificar que meios seriam esses. Ela ainda denuncia que tratados internacionais foram descumpridos em portarias que impediam a entrada de refugiados e permitia a deportação deles.
Pandemia como subterfúgio
“Essa postura do governo é claramente de seletividade das pessoas migrantes e refugiadas, 'escolhendo' quem pode e quem não pode entrar pelo meio de transporte utilizado para chegar ao país. Trata-se de uma política migratória securitária que usa o subterfúgio da pandemia da covid-19 para selecionar as pessoas migrantes e para tornar deportáveis inclusive aquelas que reúnem os elementos legais para serem consideradas refugiadas no Brasil”, acrescenta Carolina Claro, advogada e professora no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
O impacto das medidas foi sentido nos números. Em meio à pandemia, o Brasil viu a quantidade de solicitações de refúgio despencar. Em 2020, foram 28.899 pedidos de refúgio feitos ao Brasil, segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). O que representa uma queda de 65% em relação às 82.552 solicitações registradas em 2019.
Na última semana, o Conectas Direitos Humanos apresentou uma denúncia ao Conselho de Direitos Humanos da ONU contra o governo brasileiro. Segundo a ONG, o Brasil implementou políticas ilegais e discriminatórias contra imigrantes em meio à pandemia. Uma delas é exatamente o barramento na fronteira. Parecer técnico da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que não há base sanitária para barrar pessoas que vêm da Venezuela.
Já um documento elaborado pela Human Rights Watch alertava, em março de 2020, que as limitações de circulação entre os países não poderiam servir de entrave para barrar a assistência a quem pede asilo. “As proibições a viagens e as restrições à liberdade de circulação não podem ser discriminatórias nem ter o efeito de negar às pessoas o direito de solicitarem refúgio ou de violar a proibição absoluta de serem forçadas a retornar ao local onde enfrentam perseguição ou tortura”, destaca o texto.
Questionada, a Casa Civil informou que os "meios disponíveis" de que trata a portaria são "estruturas montadas para assegurar a recepção, identificação, fiscalização sanitária, imunização, regularização migratória e triagem de todos quem vêm do país vizinho". Essas estruturas fazem parte da Operação Acolhida, que está em funcionamento desde junho de 2018.
Segundo a pasta, desde a publicação da portaria, foram atendidas 7.557 pessoas. Ao todo, 2.323 foram vacinadas contra a febre amarela e com a tríplice viral. Já o Núcleo de Saúde da Acolhida (NSA) atendeu, neste mesmo período, 4.750 pessoas, sendo 2.127 em Pacaraima e 2.623, em Boa Vista.
Crise humanitária
Estima-se que cerca de 20 mil venezuelanos tenham cruzado clandestinamente a fronteira com o Brasil desde março de 2020. Antes da pandemia, o fluxo diário na fronteira chegava a ser de cerca de 300 pessoas por dia. “A pandemia não interferiu no fluxo de pessoas refugiadas e de outros migrantes forçados pelo mundo, no sentido de que quem precisa migrar por motivos de conflitos, fome, graves violações de direitos humanos e perseguição, por exemplo, não deixou de buscar abrigo fora do seu país de origem”, destaca Carolina Claro.
É exatamente da Venezuela que partem a segunda maior parcela de refugiados do mundo. De acordo com o relatório Tendências Globais, da Acnur, quatro milhões de pessoas deixaram o país latino americano para pedir refúgio em outros territórios.
O único lugar com mais refugiados é a Síria, onde 6,7 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar. Uma dessas pessoas é Carolina Quevedo, 47 anos. Ela veio para o Brasil em 2018 e conta que a adaptação no país foi muito difícil, mas que a situação piorou com a pandemia.
“Imagina uma mulher sozinha, sem conhecer ninguém, indo para Brasília? Foi uma loucura, mas tive coragem e topei. Eu tive uma excelente acolhida. Não foi fácil conseguir emprego, mas achei de cuidadora de idosa, babá, doméstica", elenca. "Mas a pandemia chegou e minha estadia agora tem sido terrível”, relata. Carolina está desempregada e só conseguiu o auxílio emergencial até setembro.
O que fez as coisas melhorarem foi o fato de ter conseguido uma vaga no curso on-line de higienista de saúde na Universidade Federal de Uberlândia. “Tive muito medo, recebi ajuda psicológica e ainda estou precisando. Aos poucos me recuperando, mas com a fronteira fechada fica ainda mais difícil para poder trazer a minha família. Até hoje estou sozinha, tentando trazer minha filha e os meus netos. Espero que dê certo”, diz.
A história de Oraima Del Carmem Lozado, 41 anos, é parecida. Ela chegou ao Brasil com a família em 2018. Professora por 10 anos na Venezuela, aqui passou a vender café e limonada. “Foi duro. Às vezes, a gente não tinha o que comer”, lembra. Em 2019, eles vieram para Brasília, onde conseguiram emprego. “Depois chegou a pandemia e eu fiquei desempregada e, em julho, fui chamada para trabalhar de novo. Mas eu peguei coronavírus, fiquei muito cansada e, na condição que eu estava, não tinha como. E agora eu estou mandando currículo. Eu dou graças a Deus, porque Brasília é muito boa. Agradeço muito por ter chegado aqui. Não tem xenofobia”, diz.
Deslocamentos continuaram
De acordo com o relatório da Acnur, as barreiras colocadas pelos países fizeram com que o fluxo migratório tivesse uma redução de 1,5 milhão na maioria das regiões. “O Departamento das Nações Unidas para Assuntos Econômicos e Sociais estima o número total de migrantes internacionais em 281 milhões em 2020. Menos pessoas do que seria esperado em circunstâncias não covid, e refletindo quantas daquelas que buscam proteção internacional em 2020 ficaram presas”, destaca o relatório.
Durante a pandemia, mais de 160 países fecharam suas fronteiras, sendo que 99 deles não fizeram qualquer exceção para pessoas em busca de proteção internacional. A covid-19 também fez com que os deslocamentos aumentassem dentro do próprio país. Foi o que aconteceu em Iêmen, Bangladesh, Etiópia, Iraque e Djibouti. “Essa combinação de conflito, crise sanitária global, perda de renda e insegurança alimentar forçou as pessoas a se deslocarem dentro de seu país”, destaca o porta-voz da Acnur no Brasil, Luiz Fernando Godinho.
Segundo Sergio Marques, da Aldeias Infantis SOS, o fechamento das fronteiras agravou ainda mais uma situação que já não era fácil. “A pandemia trouxe um contexto complexo para os refugiados. Iniciando pelo fechamento das fronteiras e pela paralisação da emissão dos Protocolos de Residência ou Refúgio, documento essencial para que sejam acessadas as políticas públicas com seus serviços e benefícios”, destaca.
A falta dessa documentação impede que o refugiado possa conseguir emprego, ser matriculado em escolas e até ter acesso a benefícios, como o auxílio emergencial. De acordo com Aldeias Infantis, entre 198 refugiados acolhidos pela instituição, 29% perderam a renda diária dos serviços que faziam. Outros 19% dos ficaram desempregados, com a perda do emprego com carteira assinada e, para 12%, pelo menos uma pessoa da família perdeu o emprego com contrato formal, em 2020.
“Essa situação se agrava ainda mais para pessoas imigrantes e refugiadas pela dificuldade de sustento próprio e pela crescente xenofobia baseada em presunções falsas em relação a supostos benefícios no acesso ao mercado de trabalho, por exemplo, já que a pandemia atinge a todos indistintamente, qualquer que seja a nacionalidade”, destaca Carolina.
Camila ainda lembra que, no Brasil, não é preciso estar regularizado para ter acesso à saúde e à educação. Porém, o medo de ser deportado pode fazer com que essas pessoas não procurem os serviços quando necessitam. “Elas estão afastadas da formalidade. Ficam com receio, por mais que tenham direito”, destaca.
Os impactos da pandemia foram tão fortes no Brasil que levaram pelo menos seis mil venezuelanos a voltarem ao país andino. O número foi revelado pelo relatório Situação dos venezuelanos que retornaram e buscam voltar ao país no contexto da Covid-19, elaborado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2020. “Grande parte e parcela significativa dessas pessoas trabalhavam no setor informal. Isso fez com que milhares de famílias de migrantes e refugiados venezuelanos fossem despejadas, deixando-os sem-teto, e milhares de venezuelanos voltaram ao seu país”, destaca o relatório.
O levantamento também destaca que esses imigrantes são “criminalizados” quando voltam ao país e recebem “tratamento desumano”, o que agrava a situação de vulnerabilidade dos repatriados e daqueles que esperam voltar à pátria de origem. “As ações das autoridades prejudicam a dignidade do povo venezuelano que decidiu retornar ao seu país, expondo, mais uma vez, seu caráter ditatorial, ilegítimo e criminoso, que se alimenta de opressão, manipulação e instigação do ódio”, disse David Smolansky, Comissário do Secretário-Geral da OEA para a Crise dos Migrantes e Refugiados da Venezuela.
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