A atrofia muscular espinhal, mais conhecida como AME, é uma doença genética rara e degenerativa. Por isso, o diagnóstico precoce faz-se essencial, antes mesmo de o paciente apresentar os primeiros sinais. A triagem neonatal, ou seja, aqueles primeiros exames realizados no recém-nascido, o popular Teste do Pezinho, é a melhor forma de diagnosticar a AME. O exame precoce permite o acesso ao tratamento multidisciplinar, o que pode trazer muito mais qualidade de vida e oportunidades para esses bebês e suas famílias.
Para discutir esse e outros desafios impostos pela doença, o Correio promoveu, na última quinta-feira, um bate-papo com especialistas e representante da sociedade civil. Na ocasião, foi apresentado o manual de políticas públicas, um documento organizado pela farmacêutica Biogen, em parceria com o IQVIA, empresa multinacional americana que atende aos setores combinados de tecnologia da informação em saúde e pesquisa clínica, e associações de pacientes com AME. Paralelamente, foi lançado o movimento Juntos pela AME. No site www.juntospelame.com.br, além do manual, é possível ter acesso a outros conteúdos sobre a doença.
“A triagem neonatal é de extrema importância, visto que, precocemente, pode-se estabelecer as terapias apropriadas — que vão desde as medicamentosas até as terapias de suporte multifuncional”, reforçou o pediatra Marcial Francis Galera. Geneticista, ele é professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica. Ele participou do Papo com especialista ao lado da bióloga Vanessa Romanelli, doutora em genética pela Universidade de São Paulo (USP) e comunicadora científica na página do Instagram @ame.pesquisa. O encontro também contou com a presença da diretora do Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal (Iname), Diovana Loriato.
A AME afeta os neurônios motores, levando à fraqueza muscular progressiva. Dificulta atividades como alimentar-se, andar e até respirar. Para chegar ao diagnóstico, é preciso fazer exame genético. Ele pode ocorrer em dois momentos da doença: na fase sintomática, a partir da identificação do atraso nos marcos motores de desenvolvimento do bebê; e na pré-sintomática, quando a patologia é identificada por histórico familiar ou por meio da triagem neonatal.
“É importante sempre se pensar em um diagnóstico precoce para se fazer a intervenção precoce e a orientação adequada das famílias a respeito do risco de recorrência de outros casos”, ressalta Francis. Isso porque, segundo explica o médico, a AME é uma doença de caráter recessivo. “Na prática, para a criança ser afetada, obrigatoriamente, deve ter recebido o traço do pai e da mãe. De tal forma que os próximos filhos desse casal têm sempre um risco de 25% de recorrência desse mesmo quadro clínico.”
Programa de triagem
O Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) existe desde 2001 e, atualmente, inclui seis patologias. Em maio deste ano, foi aprovado o Projeto de Lei nº 14.154/2021, que inclui o rastreamento, de forma escalonada, de outros 14 grupos de doenças, que poderão identificar até 53 tipos diferentes de enfermidades e condições específicas de saúde. A AME foi incluída, mas só deverá entrar no PNTN na quinta e última fase de ampliação do programa.
Apesar da demora, pacientes e familiares comemoram a vitória. “É um marco, uma conquista para a comunidade de AME, porque, quanto mais cedo esse diagnóstico for realizado, maior a chance de um desenvolvimento típico dessa criança, e uma melhor qualidade de vida, não só para ela como para seus familiares”, reforça Vanessa Romaneli.
A bióloga ressalta que o PNTN não se resume somente ao exame de detecção da doença. “É preciso que a doença que está incluída neste programa de triagem tenha toda uma característica de tratamento, para ser possível evitar tanto as complicações quanto a mortalidade desse recém-nascido”. Vanessa reforça que, por isso, é importante estabelecer uma linha de cuidados, tanto de atendimento primário quanto especializado, em que os pacientes serão encaminhados a centros de referência da doença e a profissionais específicos. “Também fazem parte dessa tríade os laboratórios especializados, cadastrados pelo Ministério da Saúde.”
Triagem neonatal
Mãe de Davi, de 9 anos, que tem diagnóstico de AME tipo 1 (veja quadro com os tipos da doença), Diovana Loriato lembra que viveu pessoalmente o sofrimento na busca pelo diagnóstico. “Isso acontece com a atrofia muscular espinhal, mas é uma característica de praticamente todas as doenças raras. Às vezes, levam-se anos. E, por se tratar de uma doença fatal, acontece de, às vezes, na busca por esse diagnóstico, a criança vir a óbito. Afinal, estamos falando da principal causa genética de mortalidade em crianças de até 2 anos de idade”, observa a diretora do Iname. Diovana ressalta outro impacto do diagnóstico tardio: os neurônios perdidos durante a investigação não se regeneram. “Se a gente consegue triar e fechar o diagnóstico nos primeiros dias de vida, as famílias não vão passar por esse sofrimento todo”, conta.
Outra questão ressaltada pela mãe de Davi é que a triagem neonatal permite a redução das desigualdades sociais. “No cenário atual, as famílias que têm mais recurso, melhor acesso à saúde e aos especialistas, conseguem ter um diagnóstico mais cedo e, consequentemente, iniciar o tratamento mais cedo do que aquelas famílias pobres, que têm pouco acesso à saúde.” Diovana destaca ainda outra vantagem: quanto antes se iniciar o tratamento, mais ele será simplificado. O paciente precisará de menos terapia, visitas a especialistas e intervenções invasivas. “A gente está falando de uma economia para o sistema como um todo”, observa a diretora do Iname.
De acordo com informações no manual de políticas públicas, 80% da população depende exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) para assistência à saúde. No âmbito da triagem neonatal, dados do Ministério da Saúde mostram que, desde 2005, mais de 80% da população é coberta pelo PNTN. Entretanto, estima-se que a cobertura de 2019 tenha caído para 77,5% (2,2 milhões) de recém-nascidos triados, uma redução de 7,5% em relação a 2018 (com 2,4 milhões de triados).
A íntegra desta edição do Papo com especialista está disponível no Facebook, Twitter e YouTube do Correio Braziliense.
Os tipos de AME
Tipo 0
Os sinais aparecem ainda durante a gestação, com diminuição de movimentos fetais. Esses bebês costumam apresentar asfixia e fraqueza grave logo ao nascimento e, em geral, não sobrevivem além do primeiro mês.
Tipo 1
Corresponde a cerca de 60% dos casos, com idade de início até 6 meses. Esses pacientes nunca chegam a se sentar e têm um comprometimento respiratório grave, sendo dependentes de suporte ventilatório.
Tipo 2
Representa 29% do total de casos incidentes. Tem início dos sintomas entre os 7 e 18 meses. Esses pacientes se sentam, porém não conseguem andar. Além disso, têm deformidades ortopédicas, principalmente escoliose; apresentam comprometimento respiratório, mas não tão grave quanto no subtipo 1.
Tipos 3 e 4
Os números de casos correspondem a 13% e 5%, respectivamente. Têm início dos sintomas após os 18 anos e na idade adulta. Pacientes do tipo 3 conseguem andar, porém perdem essa capacidade conforme progressão da doença. No subtipo 4, os pacientes apresentam fraqueza nos membros inferiores, com comprometimento motor, nutricional e respiratório.
O manual de políticas públicas A Relevância da Triagem Neonatal para a AME pode ser acessado no www.juntospelaame.com.br.