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'Efeito bumerangue' da covid-19 é uma das causas para as 500 mil mortes, diz Nicolelis

Pesquisador alerta que crescimento do número de óbitos pode ser explicado pelo fato de o vírus migrar dos grandes centros, provocando crescimento de casos no interior dos estados e pressionando a rede de atendimento nas capitais. "Se somarmos a primeira e a segunda ondas, nós provavelmente tivemos o maior movimento de pacientes graves do interior para a capital da história do Brasil"

O Brasil atingiu a marca de 500 mil mortes pela covid-19 no último sábado (19/6), mas somente nesta segunda-feira (21), dois dias depois, o presidente da República, Jair Bolsonaro, se manifestou, lamentando as perdas. O mandatário segue defendendo, contudo, medicamentos sem comprovação científica para o combate ao coronavírus. Para o neurocientista Miguel Nicolelis, o número crescente de mortes por covid-19 se deve ao 'efeito bumerangue'. Ele participou hoje do CB.Poder, uma realização do Correio Braziliense em parceria com a TV Brasília.

Publicado em estudo pelo pesquisador, o efeito ocorre porque o vírus, que inicialmente aparece nas capitais, migra para o interior e retorna para as grandes cidades, pressionando a rede de atendimento. Em março, Nicolelis havia previsto, em entrevista ao Correio, que o Brasil bateria em julho a marca das 500 mil mortes. A teoria do 'efeito bumerangue' é explicada em um estudo publicado hoje pelo neurocientista no jornal científico Scientific Reports. Segundo a publicação, nos três primeiros meses da pandemia 85% dos casos da covid-19 no Brasil se espalharam a partir da cidade de São Paulo. Um dos motivos é de que a capital tem um dos maiores aeroportos internacionais do país, assim como um dos maiores polos rodoviários do Brasil.

Porque essa tragédia veio antes do que o senhor esperava e porque chegamos a esse número tão devastador para tantas famílias em nosso país?

Chegamos a esse número trágico por causa de uma série de erros graves, desde o início da pandemia, que foi se acumulando e produziu duas ondas extremamente letais. Toda essa falta de manejo a nível nacional gerou uma série de facilidades para que o vírus se espalhasse por todo o território nacional. A previsão que eu fiz em março era para julho, com o erro da estimativa que era mais ou menos o final de junho, começo de julho, então caiu bem dentro do que os modelos estavam prevendo três meses atrás. Mas é extremamente trágico que nós tenhamos atingido meio milhão de vítimas fatais.

O que traz o estudo publicado na Scientific Reports?

Identificamos os três fatores principais que explicaram o espalhamento geográfico da pandemia nos primeiros seis meses da primeira onda e identificamos quais foram as cidades que foram as grandes espalhadoras de casos, por exemplo São Paulo, que espalhou nas três primeiras semanas de março quase 85% dos casos do Brasil inteiro. Com 17 capitais, nós conseguimos explicar 98% do espalhamento que se deu, principalmente da costa brasileira e de Brasília para o interior do Brasil via as grandes rodovias federais que cruzam o país. Mostramos também que a distribuição desigual de leitos de UTI no Brasil concentrada nas capitais foi responsável talvez pelo maior movimento de pacientes da história do país, se considerarmos a primeira onda e, provavelmente, agora a segunda. O maior número de pessoas da história do Brasil se deslocou do interior dos estados para as capitais em busca de socorro médico e caracterizamos esse fluxo de efeito bumerangue em todas as capitais e mostramos que todos os caminhos possíveis, rodovias, espaço aéreo, até os rios da região norte foram conduítes de pacientes do interior de volta para as capitais em busca de socorro médico.

Saímos da primeira onda? Nunca tivemos um número de mortes baixíssimo ou uma proliferação menor do vírus, como o senhor avalia isso? Como o senhor define essa questão de onda no Brasil?

Existiu o termo mais acadêmico de onda que requer um pico e um vale profundo com uma redução bem grande de casos e mortes que nós nunca experimentamos. Poderíamos usar a palavra degrau ou repique, primeiro, segundo ou terceiro degraus, ou primeiro, segundo ou terceiro repiques. A palavra onda é mais fácil de entender pela flutuação dos picos e dos vales, só que no Brasil os vales nunca foram profundos, eles sempre se estabilizaram em níveis muito altos de casos e mortes. Voltamos para um patamar entre 3 mil óbitos diários e estamos nos aproximando de 100 mil casos diários. Então, vemos um começo dessa subida de um novo degrau no país em várias regiões ao mesmo tempo.

Como será o efeito bumerangue daqui para frente? O que deverá ser feito para evitá-lo?

Esse trabalho que publicamos hoje na Inglaterra foi caracterizado em todo o Brasil, mostrou que o vírus chegou na costa nos aeroportos internacionais dessas grandes capitais, migrou para o interior. Quando chegou no interior gerou casos graves em grandes números, mas essas pessoas não tinham para onde ir, porque a infraestrutura hospitalar leito de UTI no interior brasileiro é muito pequena. Então, esses pacientes tiveram que retornar para as capitais, ou seja, primeiro a ida da capital para o interior e depois do interior para a capital. Se somarmos a primeira e a segunda ondas, nós provavelmente tivemos o maior movimento de pacientes graves do interior para a capital da história do Brasil. É um movimento populacional gigantesco e nós vimos que, infelizmente, a maioria dessas pessoas faleceu nas capitais. Com isso, houve uma sobrecarga dos leitos de UTI existentes nas capitais.

O senhor acha que a infraestrutura que nós temos de saúde foi uma das responsáveis por essa tragédia que vivemos hoje? Se tivéssemos uma estrutura melhor, isso poderia ter sido evitado? Ou teríamos que ter feito mesmo um lockdown sem concessões?

A estrutura do serviço único de saúde brasileiro, na realidade, salvou o Brasil de uma tragédia ainda maior. Infelizmente, o SUS vem sofrendo cortes de verbas nos últimos anos que não ajudaram de forma alguma o combate à pandemia, mas se tivéssemos, de acordo com nossos estudos, feito um lockdown no começo de março do ano passado e criado barreiras sanitárias nas grandes rodovias brasileiras, nós, provavelmente, teríamos evitado a perda de dezena de milhares de vidas. E, com isso, teríamos reduzido a dimensão dessa segunda onda. Tivemos um ano, depois, então, deixamos de fazer o be-á-bá do manejo de espalhamento do vírus e, com isso, sobrecarregamos o sistema de saúde que sofreu dois grandes impactos. Agora, o sistema se prapara, já num estado de colapso, a receber um terceiro grande impacto, uma terceira grande onda que se avizinha no nosso horizonte.

*Estagiário sob a supervisão de Andreia Castro

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Saímos da primeira onda? Nunca tivemos um número de mortes baixíssimo ou uma proliferação menor do vírus, como o senhor avalia isso? Como o senhor define essa questão de onda no Brasil?

Existiu o termo mais acadêmico de onda que requer um pico e um vale profundo com uma redução bem grande de casos e mortes que nós nunca experimentamos. Poderíamos usar a palavra degrau ou repique, primeiro, segundo ou terceiro degraus, ou primeiro, segundo ou terceiro repiques. A palavra onda é mais fácil de entender pela flutuação dos picos e dos vales, só que no Brasil os vales nunca foram profundos, eles sempre se estabilizaram em níveis muito altos de casos e mortes. Voltamos para um patamar entre 3 mil óbitos diários e estamos nos aproximando de 100 mil casos diários. Então, vemos um começo dessa subida de um novo degrau no país em várias regiões ao mesmo tempo.