Em terra de leis próprias, vidas terminam soterradas junto à expectativa de uma investigação consistente. Pai e filha morreram debaixo dos escombros do prédio onde moravam, no Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio de Janeiro, e outras quatro pessoas foram socorridas com vida, entre elas a mãe da criança morta. Em uma área comandada pela milícia, a ação do Estado é limitada, inclusive, para fiscalizar construções irregulares — como, é o caso, segundo a prefeitura, do imóvel de quatro andares que cedeu na madrugada de quinta-feira (3/6).
Os mortos são Natan Gomes, de 30 anos, e sua filha Maitê, de 2 anos. Eles são marido e filha de Kiara Abreu, última vítima resgatada com vida e levada para o Hospital Miguel Couto, na Zona Sul do Rio. O homem responsável pela construção do imóvel é Genivan Gomes Macedo, pai de Natan. Ele prestou depoimento na Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco). Segundo informações iniciais, Genivan teria construído o prédio há 20 anos para servir de moradia à família.
Em meio à tragédia anunciada e que se repete — a exemplo do desabamento que matou, em 2019, 24 pessoas no bairro vizinho Muzema (leia abaixo) —, para especialistas, a certeza é de que o caso escancara as consequências da ausência do poder público e gera mais perguntas que constatações, incluindo qual seria a relação dos milicianos com agentes públicos e políticos que tem permitido a expansão desses grupos criminosos.
“O que se observa é um resultado óbvio da falta de controle do Estado a nível municipal, estadual e federal. Ao longo do tempo essa ausência tem crescido e não há qualquer tipo de fiscalização a despeito do que alega o prefeito”, alegou o cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, coordenador do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Cebrad/Uerj).
O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), visitou o Rio das Pedras, onde afirmou que as construções irregulares fazem parte de “uma realidade da cidade”. Ele disse não temer a reação dos milicianos ao prometer melhorias habitacionais, foco nas fiscalizações dos prédios existentes e proibição de novas construções. “Comigo, milícia não vai mais construir porcaria nenhuma nessa cidade”.
O que existe, na avaliação do professor da Fundação Getulio Vargas Rafael Alcadipani, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é uma leniência na atuação dentro das comunidades. “Em meio à força das milícias do Rio de Janeiro, o Estado não age com a mão forte e, infelizmente, parece ter pouco interesse nesse enfrentamento, diferentemente das grandes operações que vemos contra o tráfico de drogas, a exemplo do que ocorreu em Jacarezinho (que resultou em pelo menos 29 pessoas mortas em maio deste ano)”.
Alcadipani teme que, da mesma forma em que vidas foram perdidas no desabamento em Muzema, há dois anos, sem que o comando das milícias tenha sido abalado pela intervenção estatal, no caso do Rio das Pedras, a tendência é isso se repetir. “É bastante preocupante como as diferentes instâncias governamentais parecem ignorar as tragédias e, na tentativa de reverter isso, cabe a nós fazer perguntas inconvenientes e cabe ao Ministério Público investigar”, disse, citando a necessidade de respostas sobre o que a polícia tem feito para impedir milicianos em seus quadros, quais as relações desses grupos com o poder político, por que tamanha dificuldade de atuação e se há uma relação entre a milícia e a família Bolsonaro.
Estado paralelo
Monteiro vai além e sinaliza serem “notórias as ligações entre a família Bolsonaro e as milícias no Rio de Janeiro, o que foi apontado, inclusive, na época, pela CPI das Milícias”. Para ele, quanto maior a ascensão política do presidente da República (que por três décadas foi representante municipal e estadual antes de virar mandatário do país) e de seus filhos, mais consolidadas se tornam as facções paramilitares.
Jair Bolsonaro já posou ao lado de várias figuras ligadas à milícia, inclusive com acusados de envolvimento na morte da vereadora Marielle Franco. Exemplo disso é a foto com o professor de artes marciais Josinaldo Lucas Freitas, o Djaca, preso acusado de ocultar as armas que mataram a vereadora e o motorista Anderson Gomes em 2018. Apontado como executor do crime, o ex-sargento do Bope Ronnie Lessa era vizinho de Bolsonaro.
“É evidente que a chegada e expansão ao poder da família Bolsonaro coloca sempre uma espécie de leniência das autoridades com a milícia. Aliás, leniência essa que já existia anteriormente”, disse Monteiro, citando a amizade entre o presidente com o policial militar da reserva Fabrício José de Queiroz..
Prometendo “segurança” ao afastar o controle do tráfico de drogas na área, quem acaba formando um estado paralelo são estes grupos, compostos por agentes da lei, políticos e civis. Se por um lado o tráfico de drogas é afastado das comunidades tomadas pela milícia, por outro o domínio de serviços básicos é notório, com monopólio na oferta de água, gás, internet e TV a cabo piratas e venda de terrenos e imóveis, além de assassinatos por aluguel. “Há uma evidente diferença de tratamento por parte dos órgão de fiscalização e repressão em territórios comandados por milícias e os comandados pelo tráfico”, afirma Monteiro.
Memória
Há dois anos, tragédia na Muzema deixou 24 mortos
Tragédia semelhante aconteceu há pouco mais de dois anos na comunidade da Muzema, a 3,5 quilômetros de distância. A região de Rio das Pedras é conhecida como um dos lugares com maior atuação das milícias cariocas. Os prédios daquela área costumam ser construídos de maneira irregular, como foi o caso dos edifícios que desabaram matando 24 pessoas na Muzema, em 2019. Em 12 de abril daquele ano, dois prédios caíram no Condomínio Figueiras do Itanhangá, deixando centenas de desabrigados. Os prédios eram construções irregulares e ilegais que haviam sido interditados duas vezes, no final de 2018 em fevereiro de 2019.
No dia 24 de abril daquele ano, a prefeitura carioca demoliu o prédio de três andares que desabou, de forma manual, para evitar abalos estruturais nos edifícios do entorno. No dia 30, iniciou a demolição do segundo prédio que caiu no Condomínio Figueiras do Itanhangá, na Estrada de Jacarepaguá, 370. Laudo da Defesa Civil realizado após o incidente apontou que as duas construções tinham risco iminente de colapso e deveriam ser demolidas imediatamente.
Após a tragédia na Muzema, três suspeitos de construção e venda dos apartamentos irregulares foram presos – José Bezerra de Lira, conhecido como Zé do Rolo; Rafael Gomes da Costa; e Renato Siqueira Ribeiro. Acusados pelos crimes de homicídio doloso qualificado, foram soltos no último dia 17 por decisão da 1ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.