"Hoje estou escrevendo este texto me sentindo muito feliz e preenchida. Sinto que agora tenho um motivo maior para ser a pessoa mais f… de todos os tempos! Sabe aquela menina mulher que as pessoas admiram e têm orgulho? Hoje ela quer ser mais e mais! Tudo por esse serzinho que eu carrego aqui dentro."
Essa foi uma das últimas postagens da jovem Kathlen Romeu, 24, no Instagram, poucos dias antes de ser baleada enquanto caminhava com a avó na Zona Norte do Rio de Janeiro, na última terça-feira (08/06), quando houve trocas de tiros entre policiais e criminosos. Seu corpo iria ser sepultado nesta quarta-feira.
Kathlen estava grávida de 14 semanas de seu primeiro filho. Era formada em design de interiores e sonhava em ser modelo, segundo sua família.
"Perdi minha neta desse jeito mais estúpido", desabafou aos jornalistas, aos prantos, a avó de Kathlen, diante do Instituto Médico Legal no Rio. "Uma garota que trabalha, que estuda, formada."
A avó contou que as duas caminhavam pela rua onde ela morava e nada indicava que haveria um confronto letal. As balas surgiram de repente, disse ela.
"Quando passamos, a rua estava tranquila. Foi tudo muito de repente, a minha neta caiu. (...) Quando olhei era polícia de tudo o que é lado."
Pelo Twitter, a PM afirmou que "policiais militares foram atacados a tiros durante patrulhamento na localidade conhecida como Beco da 14. Após cessarem os disparos, os agentes encontraram uma mulher ferida e a socorreram ao Hospital Salgado Filho, no Méier".
Segundo a plataforma Fogo Cruzado, que monitora dados de violência urbana, outras seis mulheres grávidas morreram no Rio desde 2017 vítimas de balas perdidas.
E Kathlen é a mais recente vítima em um país que mata cada vez mais negros, segundo dados do Atlas da Violência 2020, divulgado em agosto do ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Os homicídios de pessoas negras cresceram 11,5% na década entre 2008 e 2018, no caminho inverso dos homicídios de brancos, amarelos e indígenas, que caíram 12,9% - as categorias são definidas no estudo.
A disparidade racial foi evidenciada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, também do FBSP, que apontou que 74,4% das vítimas de homicídio em 2019 eram negros.
"Quando a gente fala de violência no Brasil, a desigualdade racial e o racismo vêm à tona", diz à BBC News Brasil Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP. "E isso é ainda mais exacerbado em operações policiais."
Quase 80% das mortes resultantes dessas operações são de negros, segundo os dados obtidos pelo Fórum a partir da análise de boletins de ocorrência de todo o país. Como nem todos os boletins têm dados detalhados, é possível que haja subnotificação, explica Bueno.
As balas perdidas trocadas durante essas operações "encontram corpos negros" como o de Kathlen, que são maioria da população nas comunidades mais vulneráveis, prossegue Bueno.
"É disso que estamos falando quando falamos do racismo estrutural. De uma população excluída de uma série de direitos, historicamente", afirma a diretora do FBSP. "Quando o policial troca tiros (nessas comunidades), está assumindo risco de haver danos colaterais. Será que ele assumiria esse risco em Copacabana?"
De modo geral, a taxa de mortalidade de negros e negras brasileiros é quase três vezes maior que a do restante da população, em proporção ao seu tamanho: enquanto morrem 1,5 não negros a cada 100 mil habitantes, morrem 4,2 negros a cada 100 mil habitantes.
"E isso não muda muito de um ano para outro, o perfil das vítimas permanece o mesmo", agrega Bueno.
Embora os dados de 2020 do Anuário de Segurança Pública ainda não tenham sido divulgados, Bueno explica que as tendências e perfis de vítimas continuaram semelhantes no ano da pandemia, apesar da redução parcial da mobilidade e da queda de crimes contra o patrimônio no Brasil.
Desigualdade racial se repete entre mulheres
As mulheres em geral representam uma parcela muito inferior à dos homens no que diz respeito a mortes violentas.
No caso de operações policiais, por exemplo, elas são 0,8% do total de vítimas fatais.
No entanto, as diferenças raciais se repetem, segundo o Anuário de Segurança Pública: entre 2008 e 2018, enquanto o número de mulheres não negras assassinadas no país caiu quase 12%, o de mulheres negras subiu pouco mais de 12%.
"O que a gente tem percebido é que o Brasil reduziu um pouco a violência letal de 2018 para cá. Mas esses bons resultados só se traduziram para uma pequena parcela. A população negra está cada vez mais atingida", aponta Samira Bueno.
A morte de Kathlen provocou comoção e protestos. Moradores da comunidade do Lins de Vasconcelos, onde ela foi morta, interromperam o trânsito na autoestrada Grajaú-Jacarepaguá, para pedir justiça.
Marido de Kathlen e pai do bebê que ela gestava, Marcelo Ramos afirmou em postagem no Instagram que está "completamente sem chão".
"Aqui só vai ficar saudades e as lembranças de você, a pessoa mais radiante e animada que eu conheci na minha vida, vou vencer por você. Que Deus me dê forças. Eu te amo eternamente."
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