Há um ano, o menino Miguel Otávio Santana da Silva, de apenas cinco anos, morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo em Recife. Sem escola por causa da pandemia, ele estava sob os cuidados da patroa de sua mãe, Sarí Corte Real, que permitiu que a criança entrasse sozinha em um elevador, acessando uma área alta do edifício sem estar acompanhada de um adulto.
A mãe de Miguel, Mirtes Renata Santana, naquele momento cumpria a ordem de passear com o cachorro da família na rua. Hoje, a ex-patroa é ré em um processo criminal, denunciada por abandono de menor com resultado de morte.
No aniversário da perda de seu filho, Santana relata à BBC News Brasil sentir "dor e revolta" pela saudade de Miguel e pela demora do desfecho do caso na Justiça. Ela diz esperar que Corte Real seja condenada e presa.
Até o momento, houve apenas uma audiência de instrução criminal para colher o depoimento de testemunhas em dezembro. A pendência para o andamento do caso é o depoimento de outras duas testemunhas de defesa, que moram fora de Recife e devem ser ouvidas em suas cidades.
Uma delas, residente em Tamandaré (PE), não está sendo localizada para depor. Enquanto a outra prestou depoimento em Tracunhaem (PE) em abril, sem a presença dos advogados de Santana, que atuam no caso como assistentes de acusação do Ministério Público.
Segundo Rodrigo Almendra, um desses advogados, a carta precatória para convocação do depoimento dessa testemunha foi expedida erroneamente em sigilo pela Justiça, o que impediu que ele tivesse acesso a data e hora da oitiva. Almendra afirma ter enviado emails e ofícios à vara responsável pelo processo em Recife solicitando a informação, mas não obteve resposta.
"A lei diz expressamente que é direito da assistência de acusação se fazer presente em audiências, porque o assistente pode formular perguntas às testemunhas ou contradizer as testemunhas", diz Almendra.
"A testemunha de Tracunhem mentiu sobre muitos fatos que o Ministério Público (local) não tinha como questioná-la ou contradizê-la", acrescenta.
Após tomar conhecimento da realização do depoimento pela imprensa, o advogado pediu em 3 de maio que a oitiva seja anulada e refeita, mas ainda não houve decisão da Justiça.
Para a mãe de Miguel, que hoje é estudante de Direito, a falha no processo e a demora em refazer o depoimento indicam que o Judiciário está sendo "conivente" com o atraso no desfecho do caso.
"Há uma falta de respeito muito grande, porque eles tão vendo que há erros e tão aceitando essa situação. Isso beneficia Sarí, que é uma mulher branca, rica, da alta sociedade aqui de Recife e de uma família influente de Pernambuco", critica.
"É uma falta de respeito comigo, com meus advogados, com a memória do meu filho", reforça.
Sarí Corte Real é casada com Sérgio Hacker, ex-prefeito de Tamandaré pelo PSB, que não conseguiu se reeleger em outubro. Após a morte de Miguel, foi revelado que Mirtes Santana e sua mãe, Marta Alves, eram lotadas como servidoras da prefeitura, embora trabalhassem como funcionárias domésticas da família. Ambas afirmam que não sabiam disso.
As duas agora cobram dos ex-patrões direitos trabalhistas na Justiça. Já houve duas condenações em favor da indenização da mãe e da avó de Miguel, mas os ex-patrões recorreram.
O advogado Pedro Avelino, que integra a defesa de Corte Real, disse à reportagem que a testemunha não localizada pela Justiça para depor no processo criminal continua morando no endereço indicado. Segundo ele, devido às restrições da pandemia para acesso a processos físicos, ainda não conseguiu ler a certidão com a justificativa do oficial de Justiça para não ter localizado a pessoa.
Avelino também negou lentidão no andamento do caso. "O processo que apura as condições da morte do menino Miguel está, para os níveis brasileiros, correndo com absoluta rapidez. Um ano, e prestes a encerrar e instrução criminal, em tempos de pandemia, só pode ser fruto de muita força de vontade de todas as partes", diz ele à BBC News Brasil.
Já uma nota divulgada pela defesa reafirma a inocência de Corte Real. "Hoje, além de lamentar a morte do menino Miguel e a dor da família, Sarí administra a aflição de responder a um processo midiático e convive com um linchamento social generalizado por parte de pessoas que, sem qualquer intimidade com sua vida pessoal, com a lei ou com o processo, apressam-se em tirar inúmeras conclusões equivocadas".
Procurado pela BBC News Brasil, a assessoria do Tribunal de Justiça de Pernambuco não respondeu às críticas de Santana sobre falhas e demora no processo.
"Um ano sem meu filho está sendo uma eternidade"
A morte de Miguel teve grande repercussão há um ano. Desde então, o medo de que o caso caia no esquecimento mobiliza Santana a continuar ativa na imprensa e em coletivos negros e de direitos humanos. Esse processo, conta, é doloroso e impede que a dor cicatrize.
"Estou tentando sobreviver dentro de toda essa dor que eu venho passando. Um ano sem meu filho está sendo uma eternidade, apesar que eu ainda tenho o resto da minha vida todinha sem ele", diz, emocionada.
Por outro lado, ela conta que tem sido essencial o apoio que vem de movimentos sociais, coletivos e artistas que se mobilizaram no último ano para cobrar Justiça, homenagear a memória de Miguel e lhe dar suporte jurídico e pessoal.
Santana deixou de atuar como doméstica e hoje trabalha para a organização não governamental Curumim em Recife. Com uma bolsa de estudos, ela também cursa Direito e deseja no futuro atuar como promotora ou juíza.
"Decidi estudar para ocupar a minha mente, pra eu poder tentar sobreviver, sabe? Me erguer", conta.
"Aí, eu resolvi fazer Direito. Primeiro, pra entender melhor o andamento do processo do meu filho. E, segundo, pra poder lá na frente ajudar outras mães a não passar pelo que eu venho passando hoje com relação ao Judiciário, que infelizmente é classista e racista", critica.
Um ano após a perda de seu filho, ela conta que hoje é mais consciente sobre o racismo estrutural da sociedade brasileira e como isso afeta a vida de sua família. Para Santana, o fato de seu filho ser negro explica Corte Real não ter tido o cuidado devido com ele.
As imagens da câmera do elevador, indicam que a patroa apertou o botão de um andar alto e deixou que a porta se fechasse com Miguel sozinho lá dentro. O menino estaria insistentemente pedindo pela presença da mãe, que naquele momento caminhava na rua com o cachorro da patroa.
Quando o elevador parou no nono andar, Miguel saiu e acessou uma área comum aberta do edifício. A hipótese investigada é que o menino caiu após avistar sua mãe na rua e se debruçar para tentar chamá-la.
"No caso de Miguel, houve sim a questão do racismo, porque crianças negras são tachadas como crianças fortes, espertas, pessoas que não precisam de ter carinho, segurança", afirma Santana.
"Miguel foi uma criança que foi tachada de forte, de esperta, que ia saber se virar dentro de um equipamento daquele, que não precisava segurança, não precisava de atenção. Isso aconteceu com o Miguel justamente porque ele era negro, filho de uma empregada", ressalta.
Uma série de atos e atividades online está programada para esta semana com objetivo de homenagear Miguel e pressionar a Justiça. As ações fazem parte da Semana Internacional Menino Miguel e contam com apoio da Articulação Negra de Pernambuco, Coalizão Negra por Direitos e outras organizações e movimentos sociais.
Na noite de terça-feira (1/6), a plataforma Change.org realizou projeções em São Paulo e Recife com mensagens cobrando Justiça e reprodução de falas da mãe de Miguel, como: "Ela não trataria assim o filho de uma amiga".
O ato mais importante será uma caminhada em Recife nesta quarta-feira (2/6), a partir das 14 horas, desde o Palácio da Justiça até o edifício de onde Miguel caiu. Santana fará um discurso no local.
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