Caso Henry Borel, atentado a creche Aquarela, criança encontrada no lixo. A impressão que dá é que todo dia toma conta do noticiário uma tragédia com alguma criança. E não é só impressão, os dados mostram um aumento da violência contra os pequenos durante a pandemia. O Disque 100, serviço de denúncias do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, registrou 95.247 denúncias em 2020 contra 86.800 em 2019. Este é o maior patamar desde 2013. No caso do Distrito Federal, houve um aumento de 236,13% nas denúncias em 2020, segundo a Secretaria de Justiça (Sejus). A maior parte delas relacionada a negligência.
A média é de quase 11 denúncias por hora. Porém, o número pode ser muito maior devido a baixa notificação. A maior parte das agressões acontecem no ambiente familiar, o que dificulta que sejam identificados. Segundo levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), 60% das agressões acontecem dentro de casa. “Sempre teve um número alto de subnotificação e com essa hiperconvivência essa situação de violência fica ainda mais agravada”, destaca a coordenadora de Desenvolvimento Institucional do Itaú Social, Milena Duarte.
Este foi o caso de Henry Borel, que morreu dentro do apartamento onde morava com a mãe e o padrasto, em março deste ano. A suspeita é que o namorado da mãe, o vereador afastado Dr. Jairinho, tenha torturado a criança até a morte. Este também é o caso do menino Gael, que morreu em maio também em casa. A investigação aponta que a mãe o teria matado.
Os dois também têm outro ponto em comum: eles tinham menos de seis anos. Um levantamento feito pela Fundação para a Infância e Adolescência (FIA-RJ) apontou que as vítimas mais atingidas pela violência são exatamente as crianças menores de 6 anos. Nos últimos 10 anos, cerca de 2 mil crianças com menos de 4 anos morreram vítimas de agressão no Brasil, segundo a SBP. No período de janeiro de 2010 a agosto de 2020, 103,149 mil crianças e adolescentes de até 19 anos de idade morreram vítimas de agressões no Brasil.
Relembre alguns casos deste ano
Os tipos de violência
De acordo com a SBP, a maior parte dos registros de maus-tratos são de violência física, seguido de violência psicológica e de tortura. Mas um outro tipo de violência acaba fugindo dos registros: a sexual. Segundo dados da FIA-RJ esta é a maior violência que atinge os pequenos. E o mais preocupante: a maior parte dos agressores são os próprios pais ou pessoas próximas. Segundo levantamento do Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), a violência sexual acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito, e é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias.
Porém, os registros tiveram queda em 2020. No período de maior confinamento, em abril, houve uma redução que chegou a 19%, segundo a ONDH. “Historicamente, os registros de estupro de vulnerável vem aumentando ano a ano. O que não significa um aumento da violência e sim mostra que está tendo mais notificação. Mas na pandemia você tem uma queda. Isso porque as crianças estão em casa e é em espaços públicos, como a escola, que essas violências são identificadas", destaca Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que trabalha no enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes.
Por isso é tão importante ficar atento aos sinais que a criança pode apresentar. Segundo Milena Duarte são eles que irão demonstrar se a criança está sofrendo algum tipo de violência. “As crianças dão alguns sinais. Ela muda o comportamento, demonstra tristeza, choro, falta de concentração”, explica.
No contexto de pandemia, o papel da escola para identificar estes casos fica ainda mais evidente. “Nesse contexto fica ainda mais delicado, porque a escola e as organizações perdem esse vínculo com essas famílias”, destaca Milena. “A escola tem um papel fundamental de prevenir e proporcionar conhecimento para que essas crianças possam estar protegidas. A escola é quem consegue chegar a mais crianças”, completa.
Este papel é tão importante que o Instituto Liberta fez uma parceria com a Secretaria de Educação de São Paulo com atividades on-line em que as crianças participavam de brincadeiras e uma inteligência artificial identificava quais crianças estavam mais tristes. Com isso, o robô perguntava se a criança queria falar com um adulto. E em uma conversa pelo chat foi possível identificar 200 casos de violência, sendo 53 de violência sexual em nove meses.
Luciana Temer destaca que uma grande dificuldade no combate a violência infantil é a resistência da sociedade em acreditar no papel da educação. “A escola precisa estar preparada para falar sobre violência com os alunos. Existe um mito de que a discussão sobre sexualidade não deve ser feita na escola, que questões sobre sexo devem ser discutidas em família. Agora, como você entrega o porquinho para o lobo tomar conta? Essa violência é muito intrafamiliar. Não é uma exceção. É um problema gravíssimo. É um tema da família também, mas todo mundo deve proteger essa criança”, afirma.
No combate a essas violências, outro importante papel é o desempenhado pelos conselhos tutelares. “Nesse contexto de pandemia ele tornou a prática dos conselheiros ainda mais complexa, aliado a isso a gente percebeu que os conselheiros, assim como a rede de proteção, sofreram de forma mais intensa com a queda dos registros”, destaca o professor Humberto Miranda, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Ele foi um dos pesquisadores por trás do estudo Violências sexuais contra crianças e adolescentes em tempos de pandemia por Covid-19, desenvolvido em parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Ele também pontua o impacto negativo que teve a falta de aulas presenciais neste período. “Diminuiu os registros, mas isso não quer dizer que a violência tenha diminuído nesse contexto de isolamento social. Com as escolas não estando funcionando, compromete a visibilidade do problema. Já é uma cultura de registro precarizada que ainda ficou mais grave”, ressalta.
Segundo ele, o estudo constatou a necessidade de um maior investimento nos conselhos tutelares e nas escolas. “Falta de investimento e de informação é um problema. As plataformas de registro não são articuladas em rede. É por meio dos registros que as políticas são articuladas. É preciso uma formação continuada da rede de proteção”, afirma.
O pesquisador também destaca que percebeu que muitos conselheiros ainda estão tomados por preconceitos, o que compromete o trabalho. “É muito comum a rede de proteção falar que foi culpa da menina. Isso é muito sério. A questão da violência sexual não é uma questão de fé, é uma questão que deve ser debatida a luz da política pública”, diz.
Violência urbana
Há um ano, João Pedro Matos Pinto, um garoto de 14 anos, foi morto dentro de casa em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, durante uma operação contra tráfico de drogas das polícias Civil e Federal. Após João Pedro ser baleado, a polícia o levou de helicóptero e a família ficou sem saber onde a criança estava até a manhã do outro dia, quando encontraram ele no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo.
Desde a morte de João de Pedro, outras 11 crianças morreram vítimas de balas perdidas no Rio de Janeiro, segundo a ONG Rio de Paz. O caso mais recente foi o do menino Kaio Guilherme da Silva Baraúna, de 8 anos, que morreu em 24 de abril depois de ser atingido por um tiro na cabeça em Bangu, Zona Oeste do Rio. Ele estava numa festa de criança quando foi baleado.
O Rio de Paz acompanha desde 2007 histórias de crianças e adolescentes mortos por armas de fogo no estado do Rio. Desde então, já foram contabilizadas 82 mortes. Em 2020, foram 12 crianças mortas, média de uma por mês. Este ano, já são 4 vítimas: Kaio Guilherme, 8 anos, Ray Pinto Farias, de 14 anos, Ana Clara Gomes. 5 anos, e . Alice. 5 anos.
"Sempre que um menino ou uma menina morre de forma tão banal e hedionda pensamos que tudo vai mudar, mas nada muda. Perguntas são feitas sobre essas mortes. Respostas objetivas são dadas, mas as medidas não são implementadas e os crimes continuam. Essas tragédias deixariam de acontecer se armas não chegassem às mãos de criminosos. Como arma e munição chegam ao Rio? O que os governos federal e estadual têm feito para que essas pragas não entrem no Rio? Quais são os principais fomentadores da cultura da guerra e do uso de arma de fogo no Brasil?", questiona Antonio Carlos Costa, presidente do Rio de Paz.
E esse cenário não se restringe ao Rio de Janeiro, de acordo com relatório do Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), entre 2015 e 2020, morreram 581 jovens de até 19 anos por policiais militares e civis em São Paulo. No mesmo período, morreram 504 jovens vítimas de homicídios, latrocínios (roubos seguidos de morte) e lesões corporais seguidas de morte. Ou seja, a polícia de São Paulo matou mais jovens do que somados todos os outros tipos de mortes violentas.
No caso do DF, há quase um ano, em Águas Claras, uma menina de 10 anos levou um tiro de raspão enquanto brincava na quadra de esportes do condomínio. Este ano uma outra criança, de apenas dois anos, foi atingida por uma bala perdida na cabeça durante uma troca de tiros no Varjão.
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