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A luta de um homem negro pela liberdade entre Caribe, Brasil, África e Europa

João José, um homem negro, nascido livre, feito prisioneiro e depois escravizado, àquela altura teria cruzado o Atlântico duas vezes, de Havana (capital da atual Cuba) a São Tomé (maior ilha de São Tomé e Príncipe, na África), do Rio de Janeiro a Londres, até protocolar seu pedido de liberdade em Lisboa

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Historiadores vêm tentando resgatar a trajetória de pessoas negras escravizadas na época colonial a partir de um amplo leque de documentos da época

Em 1739, João José registrou um requerimento ao Rei Dom João 5º, de Portugal, reivindicando sua liberdade.

Foi a culminação de uma saga: João José, um homem negro, nascido livre, feito prisioneiro e depois escravizado, àquela altura teria cruzado o Atlântico duas vezes, de Havana (capital da atual Cuba) a São Tomé (maior ilha de São Tomé e Príncipe, na África), do Rio de Janeiro a Londres, até protocolar seu pedido de liberdade em Lisboa.

"Diz João José, homem preto que nascendo livre de pais ingênuos na cidade de Sam Christovão de La Habana Indiaz de Espanha, e servindo nas naus de S. Majestade católica foi aprisionado por hum navio inglês, com os quais navegou alguns tempos, até que indo em outra embarcação arribado a Ilha de S. Tomé conquista deste Reino, fugiu o suplicante [...]", diz um trecho da ação judicial, que está no Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal.

"Ingênuos" era a expressão da época para se referir a filhos de escravos que nasceram livres. João José era filhos de pais livres, mas pobres em Havana, principal porto dos colonizadores espanhóis no século 18. Trabalhava como subalterno nas naus do porto, até que foi aprisionado por um navio inglês em alto mar, segundo o documento. Teria trabalhado na nova embarcação por um tempo até aportar na ilha de São Tomé, colônia portuguesa na costa africana.

Lá, José conseguiu fugir, mas, quando foi encontrado pelos portugueses não portava nenhum documento que atestasse sua liberdade (o que era exigido a pessoas negras na época), o que o levou a ser preso novamente. Após passar meses na prisão, ele foi vendido como escravo ao vigário-geral Manoel Luiz Coelho, um posto que é indicado pelo bispo.

Tempos depois, Coelho alforriou José (o que não era incomum de religiosos católicos portugueses) e o levou consigo para o Rio de Janeiro.

José era um homem livre de novo.

Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal.
Documento em que João José reivindica sua liberdade

No Rio, Coelho morreu e José assumiria sua casa. Entretanto, a ideia não agradou o irmão do vigário-geral, o cônego Domingos Luís Coelho — um homem que, nas palavras de José, era "cheio de ambição e de pouco temor de Deus", tomou sua carta de alforria e pediu sua prisão ao governador da ilha de São Tomé, D. José Caetano Souto Maior. O pedido foi atendido e José foi preso com grilhões nos pés e no pescoço, maltratado e mais uma vez vendido como escravo — desta vez, a um capitão francês, que o levou à Europa.

Lá, José fugiu "de porto em porto", passando por Londres até Lisboa, segundo seu relato ao Rei Dom João 5º, a quem pede piedade, liberdade e indenização pelas injúrias passadas.

"Porque ao suplicante se tem feito na Ilha de São Tomé tantas injúrias vendendo-o por duas vezes; e usurpando-lhe o que tinha metendo-o em prisões públicas e privadas [...] recorre a piedade e clemência de Vossa Majestade que não consente estes insultos de seus vassalos para que se digne mandar passar ordem ao governador e Justiça da Ilha de São Tomé porque sendo verdade o referido constando certamente será o suplicante livre [e] lhe façam restituir todos os seus bens, e ressarcir seus danos e injúrias deixando-o usar de sua liberdade que sempre teve [...]", diz o documento.

"Que odisseia", pensou o historiador brasileiro Rodrigo de Aguiar Amaral, ao descobrir o documento, um dos 97 registros da caixa 7 da série sobre São Tomé e Príncipe dos arquivos do Conselho Ultramarino de 1530 a 1833.

"Há muitos casos interessantes nos arquivos. Temos acesso a relatos como este pois, durante suas trajetórias, os autores conheceram alguém com domínio da escrita e das leis e passaram os depoimentos para o papel para mandar para o rei", diz Amaral, que no doutorado passou uma temporada de pesquisa junto à Universidade Técnica de Lisboa.

"O mais extraordinário é que o documento sobreviveu ao tempo."

Trajetórias extraordinárias

A partir de documentos como petições, ações de liberdade, cartas de alforria, interrogatórios, processos criminais, inventários e testamentos, historiadores vêm tentando resgatar a trajetória de pessoas negras escravizadas na época colonial.

"É como montar um quebra-cabeça de muitas peças perdidas", define Amaral, que transcreveu e destacou o caso de João José (um "andarilho cubano", segundo sua expressão) na sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2010, e publicada no livro Cativeiro, desigualdade e brutalidade: uma história das relações sociais entre elite e subalternos no Rio de Janeiro e em São Tomé e Príncipe (c.1750-c.1850) (editora Autografia, 2018).

A busca desses vestígios vem se desenrolando desde a década de 1980, quando historiadores passaram a olhar para os ditos grupos subalternos com outros olhos.

"Escravos, forros, livres pobres, camponeses, mulheres e trabalhadores eram vistos como coisas, não pessoas. Passaram a ser considerados atores sociais, sujeitos históricos", acrescenta o historiador, atualmente professor do Centro Universitário UniCBE, no Rio.

É difícil precisar quão comum ou incomum foram trajetórias transatlânticas como a de João José, marcada por períodos de liberdade, prisões e episódios de escravidão. Mas é certo dizer que era muito presente o medo de ser reescravizado devido à cor da pele, no Brasil e em outras sociedades escravistas - "basta lembrar da história de Solomon Northup", exemplifica o historiador brasileiro Thiago Krause, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e um dos autores de Brazil-Africa Relations in the 21st Century (editora Springer, 2021).

Northup (1808-1863), um afro-americano nascido livre no Estado de Nova York, foi sequestrado por mercadores de escravos e passou doze anos torturado por seus senhores no Estado de Louisiana. Após reconquistar sua liberdade, escreveu e publicou o livro de memórias Doze anos de escravidão, em 1863, que se tornou filme em 2013.

Krause lembra que questões importantes muitas vezes não podem ser respondidas (ou quantificadas) por historiadores devido à ausência de documentos para ancorá-las.

"Nesse contexto, o estudo de trajetórias individuais tem sido uma estratégia recorrente na historiografia. Não se trata de investigar uma pessoa por sua importância intrínseca, mas de, através de um 'causo' como esse, refletir sobre temáticas mais amplas", diz o acadêmico, que recentemente divulgou o link do documento do Arquivo Histórico Ultramarino, no Twitter.

"Esses casos têm, portanto, duas funções: uma heurística, ao usar uma documentação excepcional (como a petição de João José) para explorar questões mais gerais que usualmente não ficam registradas na documentação; a outra de comunicação, pois narrativas pessoais podem ser apreendidas com mais facilidade pelos leitores, pois é mais fácil desenvolver empatia por indivíduos do que por grupos abstratos", pondera.

Não se sabe, por exemplo, as datas exatas em que José viveu em Havana ou passou por São Tomé, Rio e Londres até bater à porta da corte de Lisboa, em 1739. Sabe-se, porém, que Havana era parada importante para as frotas que levavam prata e ouro da América espanhola para a Espanha.

De Havana a São Tomé

Desde o século 16, Havana era um porto estratégico nas Américas. Cuba, a ilha no mar do Caribe, era "a artéria por onde passava o fluxo de riquezas para cruzar o Atlântico rumo à Espanha", define a historiadora americana Elena Schneider, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley e autora de The Occupation of Havana (editora UNC Press, 2018). No porto trabalhavam muitos homens negros, nascidos livres, como militares e marinheiros.

Havana era base naval e o maior estaleiro então. Navios de diversas partes passavam por lá para serem consertados e abastecidos antes de cruzar o oceano, o que tornava a cidade um alvo de ataques de contrabandistas, corsários e piratas, principalmente ingleses. Entre 1739 e 1748 enfrentaram-se frotas e tropas coloniais da Grã-Bretanha e da Espanha no Caribe. Em 1762, os britânicos invadiram e ocuparam Havana.

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Solomon Northup, afro-americano nascido livre em Nova York, foi sequestrado por mercadores de escravos e passou doze anos torturado por seus senhores na Louisiana; é dele a história de '12 Anos de Escravidão'

Tanto Grã-Bretanha quanto Espanha recrutavam milhares de marinheiros de ascendência africana para lutar na linha de frente.

"Nesses conflitos, se fossem capturados por inimigos, marinheiros negros não eram tratados como prisioneiros de guerra. Eram escravizados e, mesmo que portassem documentos, era improvável que fossem reconhecidos ou legitimados como livres", diz Schneider. Um documento de 1745, por exemplo, registra reclamações da Coroa espanhola contra a captura de seus soldados e marinheiros "de color quebrado" de Cuba por navios britânicos e vendidos como escravos.

No século 18, pessoas de ascendência africana eram metade da população de Havana, entre negros ("morenos", em espanhol, na época), mulatos ("pardos", em espanhol), "criollos" (de origem africana, nascidos em Cuba), livres e escravos. "Esse era o mundo onde João José nasceu e viveu."

Devido ao conflito, é possível compreender a presença de britânicos na história de José. Desembarcar em São Tomé, entretanto, lhe traria outro contexto. Dominada pelos portugueses, a ilha se tornou no início do século 16 um produtor importante de açúcar, ancorado no trabalho de africanos escravizados - o que se tornaria um tipo de modelo para as plantações açucareiras que depois se desenvolveriam no litoral da América portuguesa. Em 1757, negros escravos e "forros" (libertos) eram 99% da população de São Tomé: a cada 10 habitantes, 1 era considerado branco, 7 eram escravos negros e os demais eram livres ou recém-libertos, destaca o livro de Rodrigo de Aguiar Amaral, da UniCBE.

"O caso de José indica hierarquia e ilustra estratégias das relações dentro dessa estrutura de escravidão. Ele foi arrematado por um vigário, que lhe concedeu alforria - muitos senhores prometiam, e muitas vezes cumpriam, dar liberdade a seus escravos, como um tipo de negociação, o que fortalecia um vínculo entre eles", analisa Amaral. "Depois de passar pelo Rio e das demais reviravoltas, ele não pediu piedade a qualquer um, mas foi direto ao rei de Portugal, no topo da hierarquia, alguém que poderia ordenar, e ser obedecido, pelos demais: o governador de São Tomé, o ouvidor e, por fim, o irmão do vigário para libertá-lo."

Reuters
Mais de 12 milhões de africanos foram transportados à força de um lado ao outro do Atlântico para trabalhar como escravos nas Américas

Do Rio a Lisboa

No século 18, o Rio de Janeiro vivia dias de crescimento econômico e demográfico, começando a ultrapassar Salvador como principal possessão ultramarina portuguesa. "O aumento do tráfico de africanos escravizados e o desenvolvimento urbano tinham ampliado muito o número de cativos, que provavelmente perfaziam cerca de metade da população", assinala Thiago Krause, da Unirio. Na época, também se ampliava a concessão de alforrias, o que fez aumentar o número de homens livres "de cor" na cidade.

"O Rio tinha poucas conexões com São Tomé e contatos praticamente inexistentes com Cuba, pois o regime dos ventos, a falta de complementaridade econômica e as restrições mercantilistas limitariam sobremaneira esses contatos. Assim, é provável que o caso de João José tenha sido único", acrescenta Krause, coautor de A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna (editora FGV, 2013).

Na época, franceses frequentavam o litoral do Rio de Janeiro, de olho no contrabando. Em 1711, por exemplo, uma esquadra francesa invadiu a baía de Guanabara, destruiu navios portugueses e tomou a cidade como "refém" por meses, só a liberando após receber o pagamento de um resgate em dinheiro, caixas de açúcar e bois.

Levado pelos franceses, José teria passado por diferentes portos europeus até chegar a Lisboa, onde fez, finalmente, seu requerimento à Coroa portuguesa. Livros como Em defesa da liberdade (editora Fino Traço, 2018), de Fernanda Domingos Pinheiro, e Liberata, a lei da ambiguidade (Relume Dumará, 1994), de Keila Grinberg, tratam de ações de liberdade reivindicadas por escravos e libertos nos séculos 18 e 19. Não era incomum, portanto, levar a causa às autoridades da época - e, às vezes, os autores eram bem-sucedidos nas suas demandas.

Histórias como a de José vem despertando interesse de acadêmicos e ativistas, entre outros. "É particularmente interessante porque revela um grau de mobilidade que não se costuma imaginar nesse período", diz a geógrafa Bárbara Garcia, idealizadora do projeto Mossoráyê, que reúne contos da África e Oriente Médio a partir de documentos como esse e os traduz para alunos carentes em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.

"Não só é um exemplo da violência da escravidão, mas reforça que os negros não eram passivos e tentavam mobilizar um arsenal de ferramentas para tentar ganhar algum grau de agência política."

Narrativas de liberdade

Para Elena Schneider, de Berkeley, é importante dar visibilidade a tais trajetórias.

"São milhares de anônimos, escravizados, torturados. Pessoas sistematicamente silenciadas que, quando tiveram a oportunidade de contar sua história de vida, elas contaram. O registro ficou. Devemos escavar esses arquivos para tornar essas histórias conhecidas", diz a historiadora, que atualmente está trabalhando em um projeto intitulado "Freedom Narratives", que busca reconstruir e analisar narrativas de pessoas que foram escravizadas e/ou fugiram ou reivindicaram sua liberdade e seus direitos.

Uma delas é a de Antonio de Soledad, um soldado negro que, depois de lutar por Havana e receber medalhas como um herói de guerra, passou a ser maltratado na ilha, que caminhava para um acirramento do tráfico negreiro com o boom do açúcar no início do século 19. Soledad escreveu uma carta de protesto, assinada junto a outros soldados negros, e a encaminhou para a Coroa espanhola, em 1789.

Outra é a de Antonio de Flores, um carpinteiro mulato, que também lutou para defender Havana, era livre e viu seus filhos impedidos de estudar, pois não era permitido para crianças "de cor". Em 1759, Flores escreveu à Espanha para pedir que eles pudessem ingressar na universidade para poderem buscar as profissões que quisessem no futuro. O pedido foi negado.

Não se sabe, porém, o desfecho do caso de José, nem sequer se viveu seus últimos dias em Lisboa ou se voltou a Havana. Rodrigo de Aguiar Amaral considera que, se seu pedido não foi atendido pelas vias legais, o destino mais provável de José seria fugir e/ou tentar assassinar seu senhor, não necessariamente nessa ordem. "Atos de rebeldia e violência desse tipo eram o extremo, o último recurso."

Já Thiago Krause pondera que, considerando que não era incomum a Coroa aceitar esse tipo de petição extrajudicial, talvez José tenha obtido sua liberdade. "A imaginação é essencial para o historiador."


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