Professora, engenheira e atleta olímpica. Atriz, militar e jogador de futebol. Modelo, veterinária e técnico em Informática. Esses eram alguns dos sonhos das 12 crianças mortas no dia 7 de abril de 2011, no crime bárbaro que ficou conhecido como o Massacre de Realengo.
Todas elas, com idades entre 13 e 15 anos, eram estudantes da Escola Municipal Tasso da Silveira, o bairro de Realengo, na Zona Norte do Rio.
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Às 8h15 daquela quinta-feira, um ex-aluno, Wellington Menezes de Oliveira, então com 23 anos, parou diante do portão da escola, se apresentou como palestrante e entrou.
Em comemoração aos seus 40 anos, a Tasso da Silveira estava recebendo ex-alunos para falar sobre suas vidas fora do ambiente escolar. Na mochila, Wellington levava dois revólveres. Pelas duas armas, pagou R$ 1.460.
Dentro do colégio, ele pediu uma cópia de seu histórico escolar na secretaria, cumprimentou uma antiga professora de Literatura com um beijo na testa e subiu para o segundo andar, onde invadiu uma sala da 8ª série.
Ali, cerca de 40 alunos assistiam a uma aula de Português. Wellington começou a atirar. Segundo os sobreviventes, ele mirava na cabeça das meninas e no corpo dos meninos. Todos foram disparados à queima-roupa.
Enquanto recarregava as armas, o assassino invadiu uma segunda sala, em frente à primeira, e recomeçou o massacre.
Muitos alunos, ao ouvirem os tiros, saíram de suas salas e correram, assustados, para o terceiro e o quarto andares. Na fuga, muitos caíram e foram pisoteados.
Alguns professores montaram barricadas na porta de suas salas com mesas e carteiras e mandaram os estudantes para o fundo da classe.
Mesmo ferido no rosto, no ombro e em uma das mãos, Allan Mendes da Silva, de 13 anos, conseguiu escapar e pedir socorro a três PMs que faziam uma blitz a 200 metros dali.
O primeiro a chegar foi o sargento Márcio Alexandre Alves, de 38 anos. O atirador se preparava para subir para o terceiro andar quando ouviu o oficial gritar: "Larga a arma. É a polícia!".
Wellington chegou a apontar a arma em sua direção, mas não disparou. Foi atingido com um tiro de fuzil na barriga. Caído no chão, ele atirou na própria cabeça.
Em carta, o criminoso disse ter sido vítima de bullying na escola. O delegado Felipe Ettore descartou a hipótese de ele fazer parte de grupos extremistas. Para o então titular da Divisão de Homicídios (DH), Wellington agiu sozinho.
O massacre terminou por volta das 8h30, com 12 crianças mortas e outras 12 feridas.
Do luto à luta
Das 12 crianças mortas, 10 eram meninas. A estudante Luiza Paula da Silveira Machado, de 14 anos, foi uma delas.
"De tão terrível, até hoje, não sei o nome que eu dou para o que aconteceu naquela manhã. Quando soube da morte da Lu, foi como se vários prédios tivessem desabado sobre minha cabeça", se recorda Adriana Silveira, de 50 anos, a mãe de Luiza.
Para sobreviver à morte de sua caçula, Adriana fundou a associação Os Anjos de Realengo, que reúne familiares das vítimas da tragédia. Também lançou um livro, Meu Anjo Luiza (2016), e passou a dar palestras sobre prevenção de violência nas escolas para pais e alunos.
"O bullying é um monstro que precisa ser enfrentado. Ele existe, é real e vive dentro de nossas escolas. O Massacre de Realengo não pode cair no esquecimento. Lembrar é reagir. Esquecer é permitir", diz ela.
Em 2015, um memorial com esculturas em bronze de onze das doze crianças mortas foi inaugurado bem ao lado da Tasso da Silveira. A família de uma das vítimas não permitiu que sua imagem fosse reproduzida.
Dos 62 tiros disparados pelo assassino, quatro atingiram Thayane Tavares Monteiro, de 13 anos. E ela só não levou mais porque fingiu que estava morta.
Com o fim dos disparos, Thayane tentou levantar, mas não conseguiu. Uma das balas tinha se alojado em sua coluna. Estava paraplégica.
"Entrei na escola andando e saí de lá com uma lesão na medula. Na época, senti muita raiva. Fiquei revoltada mesmo. Tive que reaprender a viver", avalia.
Depois de passar 68 dias hospitalizada, Thayane voltou à Tasso da Silveira para concluir o ensino fundamental. De lá para cá, descobriu um novo hobbie: a canoagem. Hoje, cursa Direito e sonha, um dia, prestar concurso para juíza.
"Há quatro anos, luto pelo direito de ter um tratamento digno. Tive que gastar parte da indenização que ganhei para custear minha recuperação em São Paulo. É muito bizarro. Nada disso seria necessário se crianças estivessem seguras em sala de aula", desabafa.
Segunda chance
O Massacre de Realengo marcou a vida não somente de quem estudava na Tasso da Silveira ou de quem tinha filhos matriculados lá, mas, também, de quem cobriu a tragédia.
A repórter Daniela Kopsch, que trabalhava na revista Capricho, foi uma das dezenas de jornalistas mandadas ao local. Ao chegar, se deparou com inúmeros profissionais — de médicos a policiais — segurando o choro.
"Naquela manhã, como todo mundo, fui pega de surpresa. Ninguém acreditava que aquilo pudesse ter acontecido. Foi um trauma coletivo", recorda a jornalista, hoje com 34 anos.
Em 2019, Daniela resolveu tornar o que viu, ouviu e apurou no livro de ficção, O Pior Dia de Todos. Duas das muitas sobreviventes, Larissa e Liliane, foram transformadas em personagens, Malu e Natália.
As duas estudantes aproveitaram o momento em que o atirador recarregou as armas para fugirem, de mãos dadas. Encontraram abrigo na casa de uma vizinha, onde se esconderam debaixo da cama.
"Acesso a armas, culto à violência, misoginia e cultura do feminicídio. Esses foram os elementos que tornaram possível o Massacre de Realengo. Apesar de doloroso, não podemos esquecê-lo", avisa Daniela.
Fonte de inspiração para uma das protagonistas do livro, Liliane Santos, hoje com 23 anos, ganhou uma cópia de presente da autora quando participou de um ato ecumênico na Tasso da Silveira em abril de 2019.
"Foi sofrido, sim, relembrar o que aconteceu. Mas, por outro lado, me encheu de esperança para continuar correndo atrás dos meus sonhos", conta.
Atualmente, ela estuda Enfermagem e trabalha em um escritório de Direito. Nas horas vagas, gosta de ler, fazer trabalhos voluntários e viajar.
"Apesar de todos os medos e traumas, quero fazer valer a pena o fato de ter recebido a oportunidade de ainda estar aqui", emociona-se.
Ela e Larissa nunca mais se viram. As duas amigas perderam o contato depois de conclui o ensino fundamental.
Feminicídio em massa
Se depender do jornalista Vagner Fernandes e da cineasta Bianca Lenti, o Massacre de Realengo não será esquecido. Os dois trabalham em projetos para manter viva a memória das doze crianças assassinadas.
Fernandes está escrevendo o livro O Massacre de Realengo: A Tragédia que Abalou o Brasil, previsto para ser publicado no segundo semestre, e Bianca aguarda a liberação dos recursos para a série documental As Meninas de Realengo, com previsão de estreia para 2022.
"O que acontece dentro de um colégio público não é responsabilidade apenas de professores, coordenadores acadêmicos e diretores. Mas, de um Estado que não se compromete e não oferece os instrumentos necessários para que esses profissionais auxiliem os alunos na construção da cidadania", afirma Fernandes.
Quando criança, ele estudou em duas escolas públicas de Realengo, onde ocorreu a tragédia. "Tem sido desafiador ouvir os depoimentos de pais e familiares que, mesmo após dez anos, sofrem e vive um luto cíclico a cada 7 de abril".
Foi lendo o livro de Daniela que Bianca teve a ideia de dirigir uma série sobre o feminicídio em massa que ocorreu naquele dia.
Ao pesquisar sobre a tragédia, a cineasta ficou impactada ao saber que o assassino miravana cabeça das meninas que ele considerava bonitas e de quem se ressentia por ter sido "menosprezado" sexual e afetivamente.
Para ela, o atirador de Realengo é um dos primeiros exemplos de "incels" ("celibatários involuntários") conhecidos no Brasil. O termo faz alusão aos jovens que têm dificuldade de socialização com o sexo oposto e direcionam às mulheres discursos violentos de ódio.
"Hoje, há espaço para quem valoriza, incentiva ou planeja crimes contra mulheres em comunidades virtuais na internet: os chamados 'chans' da deep web", diz Bianca.
"No mais famoso 'chan' do Brasil, um dos temas mais recorrentes é a 'feminização' da sociedade. Os homens estariam sendo relegados a posições socialmente inferiores. Dentro dos 'chans', membros que se dispõem a chegar às vias de fato, cometendo crimes de ódio, são enaltecidos e viram 'sanctus'. Não à toa, o atirador de Realengo é considerado um ídolo pelos usuários desses fóruns de discussão", explica a cineasta.
Realengo, nunca mais!
Quem também teve a vida impactada pelo Massacre de Realengo foi a educadora Claudia Costin. No dia, "um dos mais tristes" de sua vida, a então secretaria de Educação do Rio estava nos Estados Unidos para uma palestra.
Quando soube do episódio, voltou na mesma hora. Do aeroporto, seguiu direto para a escola.
"Conversei com pais, educadores e funcionários. Todos ficaram muito traumatizados. Para ajudar a cicatrizar essa dor, reformamos a escola. Demos um aspecto diferente à instituição".
À época, a Prefeitura do Rio prestou homenagem às vítimas batizando doze creches da cidade com seus nomes.
Passados dez anos, Claudia lamenta que um ex-aluno da Tasso da Silveira (o atirador estudou lá de 1999 a 2002) tenha permanecido desacompanhado dentro da escola.
Tão importante quanto investir na criação de protocolos de segurança, diz, é estimular a formação de docentes e gestores como mediadores de conflitos.
"É importante construir uma convivência pacífica dentro do ambiente escolar. Mas, se houver conflitos, que eles sejam resolvidos na base do diálogo, de maneira saudável e respeitosa. O que não podemos permitir é que outros massacres se repitam no Brasil. Realengo, nunca mais!"
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