O governo federal brasileiro já contabiliza no papel mais de 500 milhões de doses de vacinas contra a covid-19, quantidade suficiente para imunizar a população inteira e contar com uma sobra do bem mais disputado no mundo hoje.
Mas a realidade atual do Brasil é marcada por falta de vacinas, lentidão na aplicação de doses disponíveis, atrasos em entregas previstas dentro e fora do país e consequências da demora do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em comprar imunizantes.
A previsão divulgada pelo Ministério da Saúde já mudou cinco vezes em março, por exemplo, sempre reduzindo o número de doses a serem distribuídas nas próximas semanas e adiando cada vez mais entregas.
O cronograma atual do Ministério da Saúde prevê a entrega de 154 milhões de doses no primeiro semestre de 2021, considerando apenas vacinas aprovadas pela Anvisa: Coronavac, AstraZeneca-Oxford e Pfizer. Isso seria suficiente para vacinar todas as pessoas dos grupos prioritários.
Mas, em razão dos atrasos recorrentes e da alta demanda internacional por vacinas, parte dos especialistas vê com ceticismo esses dados.
"Com o pé no chão, até o meio do ano você vai ter uma vacinação provavelmente de quem tem mais de 60 anos e provavelmente pode avançar um pouco mais na faixa dos 50 anos, incluindo também outros profissionais em risco. É isso que nós vamos ter até o meio do ano. Estamos falando de 40 ou 50 milhões de pessoas. E 100 milhões de doses de vacinas", afirmou Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, em entrevista ao jornal Valor Econômico em 4 de abril de 2021.
A partir das informações mais recentes, a BBC News Brasil traça a seguir três cenários para o período de vacinação previsto para diferentes grupos da população brasileira — além do pode dar errado ou até melhorar no meio do caminho.
É importante ter em mente que tudo pode mudar, como já foi visto nas últimas semanas.
A tendência, até o momento, é que o início da vacinação dos adultos não prioritários deva acontecer pelo menos em meados do segundo semestre de 2021, enquanto a de jovens com menos de 25 anos deve acontecer só em 2022.
A situação dos menores de idade é ainda mais incerta.
Números e obstáculos
Um estudo recente da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) apontou que que Brasil precisa vacinar 2 milhões por dia para controlar pandemia em até um ano. Especialistas apontam que o país teria capacidade para imunizar mais de 1 milhão de pessoas por dia, como fez na pandemia de H1N1 em 2009.
Em março, no entanto, a taxa de vacinação diária tem variado de 22 mil a 500 mil doses.
O governo federal até agora distribuiu 43 milhões de doses para Estados e municípios. Do total, 21,1 milhões já foram aplicadas, sendo 16,4 milhões como primeira dose.
Até atingir o patamar necessário para conter mortes e infecções, há quatro obstáculos importantes para as 563 milhões de doses previstas para este ano pelo então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. São eles:
- 68 milhões de doses são de vacinas ainda não aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): a indiana Covaxin, a russa Sputnik e a belga Janssen.
- Sem a aprovação desses imunizantes, a vacinação brasileira continuará até junho dependente das duas opções atuais: AstraZeneca-Oxford (Fiocruz) e Coronavac (Butantan).
- O governo Bolsonaro recusou sucessivas ofertas da Pfizer para comprar milhões de doses. Quando decidiu adquiri-las, entrou no fim de uma fila de dezenas de países e só deve receber um volume significativo no segundo semestre.
- O ritmo lento da vacinação aponta, segundo pesquisadores da UFJF, que o Brasil só deve ter 70% da população vacinada no fim de 2022, patamar que pode conter consideravelmente o espalhamento da doença.
"Espero ter sido claro e bem transparente sobre um cronograma previsto. Porque é impressionante quando você apresenta um cronograma previsto e as pessoas perguntam: o cronograma está alterando. O cronograma é para ser alterado, quando a farmacêutica não entrega, a linha de produção para, quando acontece qualquer dificuldade na legalização das doses", disse Pazuello a jornalistas.
"Não podemos contar com 100% das entregas."
O Instituto Butantan, por exemplo, informou que só consegue assegurar ao cronograma até abril. Depois dessa data, "a entrega de doses está condicionada à chegada de IFA (matéria-prima da vacina importada) para que o Butantan possa realizar o envase, rotulagem e embalagem das doses".
A Fiocruz apresentou um cronograma bem parecido com o do Ministério da Saúde para entrega mensal da AstraZeneca-Oxford, e se prepara produzir e entregar ao governo 1 milhão de doses por dia.
As duas instituições brasileiras, que somam 350 milhões de doses previstas pelo governo federal, têm enfrentado sucessivos atrasos nas entregas previstas por diversos motivos, principalmente a demora do envio de doses e matéria-prima importados da China e da Índia. Ambas se preparam para produzir integralmente as vacinas e garantir autonomia nacional, mas isso só deve acontecer entre o segundo semestre de 2021 (Fiocruz) e o primeiro semestre de 2022 (Butantan).
Governos estaduais passaram também a agir para ampliar as doses disponíveis no país. Um exemplo envolve as 37 milhões de doses da Sputnik V contratadas pelo consórcio de governadores do Nordeste. Essas vacinas seriam repassadas ao governo federal, que ficará responsável pelo pagamento e pela distribuição proporcional para todos os municípios brasileiros, e não apenas da região Nordeste. Mas essas vacinas, ainda não aprovadas, nem entraram na previsão do Ministério da Saúde.
A União Química, farmacêutica brasileira que fechou um acordo com o governo russo para fabricar e distribuir a vacina Sputnik V no Brasil e na América Latina, começou a produção da vacina no país, em projeto piloto, e diz que poderá produzir 8 milhões de doses por mês após o aval da Anvisa.
Além disso, segundo a empresa, o Instituto Gamaleya, responsável pela vacina russa, enviou um cronograma ao governo brasileiro sobre uma eventual compra de 10 milhões de doses. A previsão aponta a exportação de 400 mil doses ao Brasil uma semana após a assinatura do contrato de compra, 2 milhões um mês após o acordo e outras 7,6 milhões ao longo dos dois meses seguintes.
Grupos prioritários: vacinação estimada até setembro de 2021
O plano de imunização brasileiro contra a covid-19 dividiu a população adulta em prioritários e não prioritários.
O grupo prioritário é subdividido em 29 categorias, entre elas idosos, adultos com comorbidades, profissionais de saúde, pessoas em situação de rua, presos, trabalhadores do setor de educação, agentes de segurança, motoristas de ônibus e caminhoneiros.
Essas pessoas somam 77,3 milhões.
Para vacinar esse grupo inteiro, portanto, seriam necessárias 154 milhões de doses. Considerando as vacinas já aprovadas pela Anvisa, esse montante estaria disponível até junho deste ano, se não houver atrasos na entrega, fabricação ou distribuição.
Por outro lado, o Brasil tem mantido um ritmo de vacinação que corresponde à metade das doses distribuídas. Ou seja, aplicou até agora 21 milhões das 43 milhões enviadas para Estados e municípios. A cada 10 doses aplicadas atualmente, 8 são da Coronavac, criticada e boicotada por meses pelo presidente Jair Bolsonaro, que chegou a cancelar a compra desse imunizante.
A diferença entre o número de doses distribuídas e aplicadas no Brasil se explica em parte à necessidade de reservar uma quantidade como segunda dose, e uma eventual escassez poderia afetar a imunidade dos vacinados. Para tentar acelerar a vacinação, o governo federal recomendou utilizar essas reservas como primeira dose porque fornecedores garantiram as entregas.
Mas essa mudança de orientação federal ainda não surtiu efeito no ritmo de vacinação, e, diante da escassez e de atrasos, é provável que muitos gestores mantenham a política de reservar doses para a segunda aplicação semanas depois da primeira. A eficácia contra a covid só é garantida semanas depois da aplicação da segunda dose.
Se essa proporção de vacinas distribuídas/aplicadas se mantiver ao longo do ano, a imunização dos grupos prioritários pode se estender até setembro de 2021 no Brasil.
Em linhas gerais, a ordem segue três momentos. 1. idosos e profissionais de saúde; 2. adultos com comorbidades; 3. profissionais de categorias profissionais essenciais. A cidade de São Paulo, levou o mês de março inteiro para vacinar apenas idosos de 70 a 79 anos.
O grupo mais numeroso entre os prioritários é o de adultos de 18 a 59 anos com comorbidades (ou doenças pré-existentes), entre elas diabetes, síndrome de Down, fibrose cística, hipertensão, cirrose hepática, cardiopatias e pessoas com obesidade mórbida (IMC acima de 40).
Essa fatia representa quase 18 milhões de pessoas e corre mais riscos de morrer de covid-19 ou desenvolver a forma grave da doença.
Adultos não prioritários: início de vacinação estimado para outubro de 2021
"O ritmo de vacinação no país é insuficiente para vacinar os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no 1º semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022. As consequências são inomináveis", afirmam banqueiros, empresários e economistas em carta aberta com críticas ao governo Bolsonaro e propostas para a pandemia (leia a íntegra dela aqui).
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de habitantes com idades de 18 a 59 anos no país totaliza 125 milhões de pessoas. Cerca de 40 milhões delas estão no grupo prioritário.
Ainda não está claro como transcorreria a vacinação para esse grupo, mas ela deve seguir os mesmos moldes atuais (adotados inclusive em outros países, como o Reino Unido). As pessoas seriam divididas também em faixas etárias e imunizadas em ordem decrescente, com os jovens em torno de 18 anos por último.
Tampouco é possível estimar o ritmo de vacinação no segundo semestre, mas o governo federal afirma que os obstáculos enfrentados pelo país atualmente correspondem apenas ao início do processo de fabricação e distribuição, concentrado em dois fabricantes.
No segundo semestre de 2021, com mais opções e doses disponíveis, além da fabricação 100% nacional da AstraZeneca-Oxford pela Fiocruz, a tendência seria superar com folga a marca de 1 milhão de vacinados por dia.
Vale lembrar que na pandemia de H1N1, em 2009, o Brasil levou quase três meses para vacinar 80 milhões de pessoas.
"Nós temos 37 mil salas de vacinação no Brasil, que podem vacinar até 2,4 milhões de brasileiros todos os dias. Esse é o objetivo", afirmou o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em audiência na Câmara dos Deputados em 31 de março de 2021.
Menores de idade: sem previsão de início da vacinação
Além dos quase 85 milhões de adultos não prioritários, devem ser vacinados também os menores de idade, que somam cerca de 48 milhões, segundo o IBGE.
Atualmente, eles não estão listados entre aqueles que receberão a vacina, dada a falta de estudos de segurança e eficácia dos imunizantes com essa faixa etária e a incidência menor de covid-19 grave entre essas pessoas dessa faixa etária.
Mas há estudos em andamento no país com vacinas para menores de idade, e os resultados têm sido promissores.
A farmacêutica chinesa Sinovac, parceira do Instituto Butantan na fabricação da vacina Coronavac, por exemplo, anunciou que os estudos de fase 1 e fase 2 envolvendo 500 jovens com idade de 3 a 17 anos sinalizaram que o imunizante é seguro e foi capaz de induzir o corpo humano a produzir anticorpos contra o coronavírus. Não houve registro de reações graves. Esses dados preliminares ainda não foram revisados por outros cientistas. A fase 3 dos estudos será responsável por confirmar (ou não) a segurança da vacina e a taxa de eficácia contra a doença.
Dado o ritmo de vacinação do país, é provável que os imunizantes sejam aprovados para essas faixas etárias até chegar a vez deles na fila da vacinação, a princípio no primeiro semestre de 2022.
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