Entre os arquétipos femininos da Antiguidade aclamados pela cultura pop nos últimos anos estão Cleópatra, as Amazonas e Afrodite.
Mas Salomé, uma heroína adorada até o início do século 20, caiu em relativo esquecimento. Uma injustiça que deve ser reparada!
Os Evangelhos nos contam sobre o assassinato de João Batista no final de um famoso banquete por volta do ano 29 em que se diz que Salomé dançou. O objetivo da festa era comemorar o aniversário de Herodes Antipas, o tio-avô da jovem e tetrarca, ou seja, governador de alguns territórios no sul do Oriente Médio em nome dos romanos.
A dança de Salomé ocorreu numa das fortalezas de Antipas, em Maqueronte, que o escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), em 'Herodíade', um dos "Três contos" publicados em 1877, muito acertadamente situa a leste do Mar Morto.
Antipas havia prendido e encarcerado João Batista, um pregador popular cujas violentas tiradas contra a ordem estabelecida poderiam ter incitado uma revolta.
João Batista também foi considerado culpado de insultos contra Herodíade, esposa de Antipas.
Herodíade não se cansava de exigir que o insolente profeta fosse morto.
Mas Antipas não estava certo disso, porque sabia que João Batista era um homem justo e santo, como podemos ler no Evangelho segundo São Marcos.
O aniversário de Antipas ofereceu a Herodíade o momento propício para atingir o que queria. A esposa do tetrarca compareceu à festa acompanhada da filha Salomé, fruto de um casamento anterior.
Durante o banquete, a filha de Herodíade começou a dançar e agradou a Herodes e seus convidados. O tetrarca, como um gesto de gratidão, lhe fez uma promessa: "Tudo o que você me pedir, eu darei a você, mesmo metade do meu reino."
Então, Salomé, sob a influência de sua mãe, reivindicou "em um prato, a cabeça de João Batista".
O tetrarca não se atreveu a recusar, para não ficar mal diante de seus convidados. Ele imediatamente enviou um guarda para decapitar João Batista em sua cela. E Salomé recebeu a cabeça, que deu à sua mãe.
A princesa Salomé nasceu no ano 18 e, portanto, tinha apenas 11 ou 12 anos naquela época.
O termo grego pelo qual ela é definida no Evangelho é "korasion", um diminutivo neutro de "korè" (menina). A palavra "korasion" não apenas evoca uma garota, mas também a priva de toda feminilidade.
A dança de Salomé não era, portanto, uma dança erótica, a menos que suponhamos que os evangelistas recorressem à ironia.
Ou seja, a hipótese de que uma mulher sedutora estrelasse aquela dança parece improvável, de acordo com as escrituras.
Na origem do mito da dança de Salomé, talvez não houvesse nada mais do que a performance de uma menina por ocasião do aniversário de seu tio-avô.
Salomé, uma menina transformada em uma mulher 'sem-vergonha'
Salomé sofre uma metamorfose como figura erótica três séculos após a escrita dos Evangelhos, no Sermão 16 (Pela decapitação de São João Batista) de Santo Agostinho.
Aqui, Salomé mostra os seios no decurso de uma dança frenética: "Às vezes inclina-se de lado e mostra seu flanco perante os espectadores; às vezes, na presença destes homens, mostra os seios".
Dessa forma, Salomé se tornou uma adolescente sem-vergonha e fatal. Como outras figuras semelhantes nas sociedades patriarcais, ela personifica o perigo feminino contra o qual os homens devem se proteger.
A famosa dança pode muito bem ter ocorrido. No entanto, como aponta o historiador americano Harold W. Hoehner, os Evangelhos não atribuem nenhuma conotação erótica à performance de Salomé.
Santo Agostinho tornou-se assim um promotor do destino excepcional de Salomé, cuja condenação logo se tornou uma fantasia. A dança da menina foi um grande sucesso desde a Idade Média.
No tímpano do pórtico de São João, na catedral de Rouen, que Flaubert conhecia bem, a acrobática Salomé se contorce com a cabeça baixa e as pernas levantadas.
No século 15, o pintor italiano Benozzo Gozzoli retrata uma adolescente orgulhosa que não hesita em atrair Antipas com os olhos.
Atordoado, o tetrarca tem a mão direita imobilizada sobre o coração, enquanto, com a outra, agarra uma faca de cozinha erguida sobre a mesa do banquete, um símbolo fálico discreto que sugere sua excitação.
Salomé também é retratada, repleta de confiança, por Lucas Cranach, o Velho (1531): ela não parece impressionada com a cabeça ensanguentada que carrega no prato, como o troféu de sua vitória, enquanto Antipas faz um gesto de desgosto.
Cranach destaca a oposição entre a beleza orgulhosa de Salomé e o tetrarca, retratado como uma grande figura com um olhar pesado. O artista também brinca com o contraste entre a elegância da jovem virgem e o rosto do profeta decapitado, mesclando erotismo e crueldade em uma obra que pode ser qualificada como sádica.
Ameaça feminina em dobro
Em 1877, quando publicou "Herodíade", Flaubert lembrou o contorcionista no tímpano da Catedral de Rouen. Ele também se inspirou em suas próprias experiências, especialmente na companhia dos dançarinos Kuchuk Hanem e Azizeh, que conheceu no Egito.
A personagem de Salomé expressa tanto a atração quanto o terror causado pelo poder de sedução. A queda do santo simboliza a castração do homem alienado pelo desejo.
Um desejo que enfeitiça e impede qualquer julgamento, despertado pela simples visão de partes do corpo feminino: "Aproximou-se um braço nu, um braço jovem e encantador."
O físico da jovem está fragmentado. Seus vários enredos ou características ajudam a despertar o desejo do espectador: "Os arcos de seus olhos, a calcedônia de suas orelhas, a brancura de sua pele".
As roupas também são detalhadas, destacando a carne que a torna ainda mais atraente: "Um véu azulado que cobre o peito e a cabeça", "sapatinhos de beija-flor".
Flaubert expressa uma espécie de fetichismo pelos sedutores adornos femininos orientais. Esta imagem foi posteriormente utilizada no cinema, na dança de Brigid Bazlen encarnando Salomé no filme "O Rei dos Reis" (1961), de Nicholas Ray.
Embora o título da história se refira apenas a Herodes, a obra é construída sobre uma duplicação da ameaça feminina por meio das figuras intimamente relacionadas da mãe, verdadeira mestre de cerimônias, e sua filha, não menos formidável, como executora da vontade materna.
É assim que Antipas cai nas redes dessas duas mulheres fatais: a manipuladora e a feiticeira.
Idolatria em baixa
Depois de Flaubert, Salomé ainda povoou o imaginário ocidental por algumas décadas. Em 1891, o escritor irlandês Oscar Wilde inventou o tema da dança dos sete véus para sua obra Salomé, posteriormente trazida para a música pelo compositor e maestro alemão Richard Strauss (1905). A figura de Salomé atingiu então o seu apogeu artístico.
Mais tarde, foi encarnada no cinema por algumas atrizes sulfurosas como Rita Hayworth ("Salomé", de William Dieterle, 1953) ou Brigid Bazlen ("O Rei dos Reis", de Nicholas Ray, 1961). E em 1988, Imogen Millais-Scott desempenhou perfeitamente o papel de uma lolita atrevida em "Salomé" de Ken Russell.
Mas na segunda metade do século 20, o fascínio do público pela dançarina bíblica desaparece em favor de novos ícones femininos ou feministas mais contemporâneas e positivas.
Salomé não é mais um ídolo de nosso tempo.
*Christian-Georges Schwentzel é professor de História Antiga na Universidade de Lorraine (França)
Este artigo foi publicado originalmente no site The Conversation. Clique aqui para ler o artigo original em espanhol.
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