SAÚDE

Covid-19: entenda os riscos de flexibilizar medidas de isolamento antes da hora

Apesar da ligeira queda nos números da covid, o aumento da circulação de pessoas em 20 estados e no DF representa perigo, segundo especialistas. Estagnação ou até reversão de tendência na pandemia são ameaças reais, com UTIs ainda em níveis críticos de ocupação

Bruna Lima
Maria Eduarda Cardim
postado em 19/04/2021 06:00
Brasil registrou 1.657 mortes em 24h, totalizando 373.335 vidas perdidas pela doença. Com mais 42.980 casos, são 13.943.071 de infectados -  (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
Brasil registrou 1.657 mortes em 24h, totalizando 373.335 vidas perdidas pela doença. Com mais 42.980 casos, são 13.943.071 de infectados - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

Sem a realização de um lockdown efetivo e por tempo suficiente para garantir uma queda brusca de novas infecções na maioria das cidades e estados do Brasil, o país pena para ver as notificações diárias da covid-19 diminuírem. Com restrições insuficientes associadas à flexibilização precipitada das atividades, regiões do país que indicavam desaceleração de notificações observam uma estabilização na queda. Análises por monitoramento de dados apontam possíveis reversões de quedas importantes em 21 unidades federativas e temem que o país estacione em um alto patamar de registro diário de casos e mortes. O Brasil marcou, ontem, mais 1.657 mortes e 42.980 infecções pela covid-19. Com isso, o país totaliza 373.335 óbitos e 13.943.071 de casos da doença.

Coordenador da Rede Análise Covid-19, o pesquisador Isaac Schrarstzhaupt alerta que a estabilização, e até mesmo retorno de incrementações em alto patamar, é preocupante porque o país ainda tem muitos casos ativos e os sistemas de saúde continuam com níveis críticos de ocupação. “Deixamos a curva subir a níveis estratosféricos. Fazendo uma analogia com a subida de um foguete, mesmo que usemos todos os recursos para abatê-lo e fazê-lo voltar para a Terra, a aterrissagem vai demorar muito mais desta vez. Quanto mais deixamos a infecção subir, mais paciência precisamos ter para retomar as atividades normais”, expõe.

Analisando dados de mobilidade fornecidos pelo Google e pelo Facebook, que mostram o deslocamento de pessoas por meio da localização dos celulares, e correlacionando com outros indicadores como taxa de ocupação de leitos e novos casos, Schrarstzhaupt faz previsões acerca da pandemia. No levantamento mais recente, o pesquisador verificou possível reversão de queda em 21 das 27 unidades federativas; na análise da semana anterior, eram apenas 11 nessa situação.

“Tudo indica que essa queda na média móvel da taxa de crescimento não se sustentará, em razão da mobilidade que aumenta na maioria das regiões brasileiras”. Para fazer a análise, Schrarstzhaupt compara a média móvel de taxa de crescimento atual às médias de 30 e 10 dias anteriores. Por fim, calcula a diferença entre as variações. “Se a variação dos últimos 10 dias é mais positiva do que a dos últimos 30 dias, isso indica uma possível mudança pró aumento de casos ou pró desaceleração de queda (reversão de tendência)”, explica.

Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) haviam expressado a preocupação no último boletim extraordinário do Observatório Covid-19, divulgado na semana passada. Segundo o documento, é possível observar uma estabilização na incidência de novos casos, mas a estabilidade é acompanhada da permanência de índices altos de positividade dos testes e pela alta taxa de ocupação de leitos de unidades de terapia intensiva (UTIs) na maioria dos estados.

“Esse padrão pode representar a desaceleração da pandemia, com a formação de um novo patamar, como o ocorrido em meados de 2020, porém com números bem mais elevados de casos graves e óbitos”, dizem os pesquisadores. O perigo de estacionar em um alto patamar é que basta uma nova explosão de casos, para ver números exorbitantes.

O aumento de mobilidade visto nos estados e municípios que flexibilizam as restrições em meio a um cenário ainda de caos contribui para que esses números voltem a crescer. “Aumentar a mobilidade em um patamar tão alto transformará a recém-conquistada desaceleração, na melhor das hipóteses, em um platô de muitos óbitos. Como temos muitos casos, é altamente possível, ainda, voltar a subir rapidamente. Por isso, precisamos continuar reduzindo a mobilização”, alerta Schrarstzhaupt.

O pesquisador cita, como exemplo, alguns estados que aumentaram a mobilidade de maneira precipitada e, agora, veem uma estabilização perigosa de casos e mortes em alto patamar. O Distrito Federal é um deles. A unidade federativa começou a ter um aumento de casos considerável a partir do início de fevereiro e só no fim do mês foram decretadas restrições. “Houve vários ciclos de contágio que ocorrem mesmo durante o período de isolamento. Mas é possível correlacionar isso a uma dificuldade de decisão, que promoveu fechamentos importantes, mas aberturas quando os hospitais menos tinham capacidade de receber pacientes”.

Taxas críticas

Quando o governador do DF, Ibaneis Rocha, anunciou a abertura das atividades não essenciais, os hospitais públicos tinham 97,5% dos leitos de UTIs para pacientes da covid-19 ocupados e a rede privada operava com 99% de lotação. “Vemos que a discussão está relativizada quando uma medida admite abrir (serviços) com 80%, 85% de ocupação e 100 pessoas na fila de espera por UTI. Como assim? Com pessoas precisando de leito, não se pode flexibilizar de maneira alguma”, critica Schrarstzhaupt.

Em São Paulo, a abertura dos atividades também ocorreu ainda com a alta de internações hospitalares e pode gerar um cenário perigoso de estabilidade altíssima de casos. “No Sudeste, o mesmo ocorre com Minas Gerais e Espírito Santo. Percebemos estabilização em patamares altos, indicando um futuro complicado, e as mortes mal começaram a cair. No Sul, RS, PR e SC vinham quase conquistando uma queda, mas a velocidade desacelerou e, agora, mostram uma estabilização. Além do Sudeste, o Norte, Nordeste, Centro-Oeste estão todos com casos lá em cima e no início de uma desaceleração na velocidade”, detalha o pesquisador, alertando que, quando aparece um indicador de aumento de velocidade de uma doença altamente transmissível, é necessário “correr para frear”.

Sem direcionamento

Na visão de especialistas, a ausência da adoção de um lockdown contundente ocorre por falta de um direcionamento único e apoio do governo, que critica a medida. “As respostas locais variaram em forma, intensidade, duração e horários de início e fim, até certo ponto associadas a alinhamentos políticos”, diz um estudo publicado na revista científica Science.

Segundo os pesquisadores, a falta de coordenação nacional entre os diferentes níveis de governo é um dos pontos que explicam o fracasso do combate ao vírus no Brasil. Entidades de saúde que compõem o Conselho Nacional de Saúde (CNS) recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a medida mais restritiva de circulação seja exigida ao governo federal ainda este mês.

Enquanto isso, o chefe do Executivo voltou a criticar a adoção de um lockdown nacional nos últimos dias. “Será que o pessoal não consegue entender que está errado essa política do 'fecha tudo', do lockdown?”

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Palavra de especialista

Combinação de fatores

A previsão de um novo aumento de casos da covid-19 a partir de uma maior mobilidade têm como base um contexto, a partir de análise de dados, da ciência, e como isso se correlaciona. Então, há toda a análise política, do alinhamento entre os governadores e o presidente. Nem o estudo da revista Science nem nenhum estudo mostra uma relação causal. E a causalidade é totalmente diferente de associação e correlação. A grande mensagem é que não há uma única narrativa que explique como a pandemia se espalhou em cada estado. Na verdade, é uma combinação de fatores.

Não se pode ignorar as desigualdades, tanto de renda, como de acesso aos serviços de saúde, a leitos, médicos. Também temos que levar em consideração que existe uma rede de comunicação interurbana. As cidades reabrem de forma diferente, uma mais rápida, outra mais lenta. Só que essa mobilidade diferente já ajuda o vírus a se disseminar pelo território. Há problemas na vigilância, na notificação. E, ainda, trazemos a questão do alinhamento político no contexto das respostas e com base na literatura. Nenhum deles é desassociado.

Atualmente, chegou-se a um ponto em que não dá para esperar que haja uma reação coordenada por parte do governo federal. Estamos vendo coalizões importantes acontecendo. A Frente Nacional dos Prefeitos, que representa mais de 60% da população brasileira, consórcios com mais de dois mil municípios, diferentes organizações e instituições fazendo toda uma ação para tentar promover diálogo e avançar em uma agenda de resposta, ainda que sem o apoio federal. No entanto, é importante levar em conta que o Brasil é muito grande e há a necessidade da ação integrada. É reconhecer que o Brasil é um país marcado por desigualdades e, no momento que as ações passam a ser locais, municípios com menos recursos não têm a capacidade para dar uma resposta como tem que ser dada.

Márcia Castro, doutora em Demografia e professora associada da Harvard University Center for the Environment.

Isolado como péssimo exemplo mundial

Condutas como a do presidente Jair Bolsonaro, que inflamam a polarização do combate à pandemia, colaboram para a descoordenação e foram provadas como sendo prejudiciais na guerra contra a covid-19. Um estudo publicado na revista Science (Leia Palavra de especialista) afirmou que sem uma mudança de postura, o país será uma “ameaça à segurança da saúde global” ao concluir que a “combinação perigosa de inação e irregularidades” da resposta federal piorou a situação do Brasil em relação à doença.

Especialistas acreditam que a imagem do país já está associada a um mau exemplo de combate à crise sanitária. “O Brasil passa a ser o exemplo negativo das coisas, aquele que faz as coisas erradas, e isso, obviamente, dilapida um pouco a imagem legal que o Brasil tinha na década passada”, acredita o pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional (FGV NPII), Leonardo Paz, que cita o episódio ocorrido no parlamento francês na última semana.

O primeiro-ministro da França, Jean Castex, provocou risos nos presentes ao citar a prescrição no Brasil da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19. Ao anunciar a suspensão dos voos entre os países, Castex aproveitou para ironizar o deputado de oposição Patrick Hetzel, que questionava se o governo francês não iria fechar as fronteiras para proteger a população francesa da variante P.1, originada no estado do Amazonas.

Ao responder, o primeiro-ministro disse que Hetzel distorcia a realidade ao dar a impressão de que o governo não fazia nada e lembrou que foi justamente o deputado quem aconselhou o presidente da França a prescrever a hidroxicloroquina contra a doença. “Tem uma coisa que não fizemos: seguir suas recomendações. O senhor escreveu ao presidente da República em 2020 para aconselhar a ele que prescrevesse hidroxicloroquina. Ora, o Brasil é o país que mais a prescreveu”, afirmou Castex.

Relevância

“O alvo não era o Brasil, mas o Brasil foi a piada para ele poder espetar o opositor da direita do governo francês”, indica Leonardo. Além de virar piada e exemplo do que não fazer, o Brasil vai perdendo, aos poucos, a relevância que tinha no cenário mundial. O país ficou de fora do roteiro da primeira viagem à América do Sul de um diplomata sênior do presidente americano Joe Biden. “O país perde a oportunidade de qualquer tipo de tratativa, negociação, convênio, acordo de cooperação. Ou seja, perde qualquer instrumento de aproximação que poderia ser legal para o país de se acercar aos Estados Unidos e a outros países. Esse é um exemplo muito claro desse tipo de isolamento que o Brasil enfrenta”, avalia.

Além disso, com notificações diárias da covid-19 em um patamar exorbitante, cada vez mais países aumentam as restrições à entrada de brasileiros. “Isso atrapalha as coisas a funcionarem. O brasileiro vai ter que viver de Zoom (aplicativo de videochamada) por enquanto, porque ele não consegue ir para lugar nenhum”, constata o professor, que deixou de ir a dois eventos internacionais por se deparar com barreiras impostas ao país. Segundo um levantamento do site de viagens Skyscanner, há 151 nações com restrições fortes ou moderadas de voos oriundos do Brasil.

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