A despeito das avaliações recentes que mostram o resultado positivo das medidas mais restritivas para o início de uma fase de declínio de novas internações, o presidente Jair Bolsonaro tem inflamado, nos últimos dias, o discurso de oposição ao lockdown, inclusive incitando apoiadores a adotarem medidas contrárias. Condutas como esta, que colaboram para uma descoordenação da pandemia, foram provadas como prejudiciais ao combate da covid-19. Um estudo publicado na quarta-feira (14/4) na revista Science, concluiu que a "combinação perigosa de inação e irregularidades" da resposta federal colocam o Brasil como um dos piores países em termos de liderança no enfrentamento à doença.
"Embora nenhuma narrativa única explique a diversidade na disseminação, uma falha geral de implementação imediata, coordenada, e respostas equitativas em um contexto de fortes desigualdades locais alimentaram a propagação de doenças", avalia a pesquisa, liderada pela cientista e doutora em demografia Márcia Castro, professora da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard.
A partir dos dados do Ministério da Saúde de fevereiro a outubro de 2020, combinados com outras pesquisas de relevância mundial, o grupo buscou compreender, medir e comparar o padrão de disseminação de casos e óbitos de covid-19 no Brasil em escalas espaciais e temporais.
Foram analisados indicadores de aglomeração, trajetórias, velocidade e intensidade de propagação para o interior, contextualizados às decisões do governo federal e repercussões de decisões políticas para se chegar aos resultados. "A grande mensagem é que não se tem um único motivo, uma única narrativa que explique como a pandemia se espalhou em cada estado", introduz a pesquisadora ao Correio.
Neste rol, está o fato de o Brasil ser um país desigual, tanto em relação à renda, quanto em acesso à saúde. Além disso, a comunicação entre as cidades pelos transportes intermunicipais impactou na disseminação do vírus, sobretudo pelas medidas de restrição e relaxamentos não coordenados entre locais vizinhos. A demora em descobrir que a covid-19 já estava circulando no país também entra nesta narrativa.
Falta de alinhamento
Mas, atrelado a todos esses fatores está a falta de um alinhamento político entre governadores e presidente ao longo de toda a pandemia, polarização que, para Márcia e o grupo de pesquisadores, politizou a pandemia e refletiu na adesão da população às medidas de controle. "Sem uma estratégia nacional coordenada, as respostas locais variaram em forma, intensidade, duração e horários de início e fim, até certo ponto associadas a alinhamentos políticos", diz o artigo.
O grupo observou, por exemplo, a comparação da situação entre Amazonas e Rio de Janeiro. Ambos tiveram escassez de leitos de UTI, mas a interiorização fluminense foi mais rápida e intensa, apesar de ter um sistema de saúde melhor preparado. "No RJ, o caos político com lideranças imersas em acusações de corrupção e destituídas do cargo comprometeu a resposta rápida e eficaz", afirma Márcia.
No cenário federal, como exemplo de falha na condução pelo Planalto, o estudo cita o fato de se incluir "a promoção da cloroquina como tratamento, apesar da falta de evidências". Ainda que, no último mês, o presidente Bolsonaro tenha adotado uma nova postura frente à crise, passando a fazer uso de máscara em público e designando um médico para assumir os trabalhos do Ministério da Saúde, a politização da pandemia ainda reverbera, sobretudo no tocante à adoção de um lockdown nacional.
Lockdown
Nessa quarta (14), a apoiadores, Bolsonaro disse esperar que parte da população tome "providências" e que "está aguardando o povo dar uma sinalização". "Será que o pessoal não consegue entender que está errado essa política do feche tudo, do lockdown?". Por outro lado, gestores locais tomaram partido e trouxeram críticas que, mais uma vez, demonstram desalinhamento.
"Bolsonaro afirmou a apoiadores, malucos como ele, que espera uma sinalização do povo para tomar providências contra lockdown [...] Seu negacionismo é responsável por uma parcela considerável das mais de 380 mil vidas que foram perdidas. Se tivesse compaixão e liderança teria oferecido vacina e não cloroquina aos brasileiros", disse o governador de São Paulo, João Doria, direcionando a resposta ao mandatário.
Caso o país não assuma outra postura, despolitizada, centralizada, focada na ampliação da vacinação e com medidas de vigilância epidemiológica e genômica coordenadas, o estudo publicado na Science alerta: "O fracasso em evitar essa nova rodada de propagação facilitará o surgimento de novos variantes, isolará o Brasil como uma ameaça à segurança da saúde global e levará a uma crise humanitária completamente evitável".
Colaborou Renato Souza
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