Um ano após a detecção do primeiro caso do novo coronavírus, o Brasil vive a pior fase da pandemia da covid-19. Com estados perto do colapso sanitário, o país vê medidas rígidas agora serem impostas pelos governadores, de forma tardia, como apontam especialistas. As restrições voltam a ser de extrema importância, mas o país continua lidando com falas e ações negacionistas por parte do governo federal, como ocorre desde o início da pandemia. Segundo especialistas, essa postura só colabora com a piora de todo o cenário. Enquanto estudos apontam que o isolamento salvou vidas, a estratégia negacionista faz o movimento contrário, a ponto de o Brasil ser classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma ameaça ao mundo.
Nesta semana, por exemplo, Jair Bolsonaro fez um discurso de cerca de 20 minutos em um evento em Goiás, fazendo diversas críticas a medidas restritivas de controle da transmissão do novo coronavírus, como fechamento de comércios. “Nós temos de enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas”, afirmou. As falas foram proferidas um dia após o país ter registrado recorde de mortes por covid-19.
Diretor-geral do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) e professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Aith destaca a ausência de interesse por parte de Bolsonaro, em assumir a função que a União tem dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), “que é de coordenar ações nacionais estratégicas e de emergência.”
“Desde o início, o governo federal, por meio de normas, atos normativos, medidas provisórias, decretos e também pelos vetos do presidente, tem diretrizes muito claras sobre o seu papel no enfrentamento à pandemia, que é de minimizar o que está acontecendo. Então, é uma política negacionista”, avalia.
Aith é um dos pesquisadores responsáveis pela publicação do Boletim Direitos na Pandemia. A décima edição da pesquisa acompanhou a atividade normativa dos entes federativos. “No âmbito federal, mais do que a ausência de um enfoque de direitos, já constatada, o que nossa pesquisa revelou é a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”, diz trecho do documento.
Pós-doutora pela Universidade Johns Hopkins e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a epidemiologista Ethel Maciel não tem dúvidas ao afirmar que a “estratégia negacionista” provocou muitas mortes. “Você falar para as pessoas que elas não precisam usar máscaras, que elas podem se aglomerar, que elas podem tomar um medicamento se elas se infectarem, que elas vão se curar. São mentiras que colocam vidas em risco. Isso é crime. Então, a estratégia negacionista é uma estratégia criminosa”, critica.
Diante das atitudes do presidente Bolsonaro, a epidemiologista protocolou, com mais sete profissionais da saúde, um pedido de impeachment contra Bolsonaro. O documento afirma que o mandatário do país cometeu crimes de responsabilidade na condução da pandemia do novo coronavírus. Entre aqueles que assinaram estão o fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto, e o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão.
Judicialização
Com esta condução de Bolsonaro, que insistiu em minimizar a gravidade da covid-19, o país assistiu ao sistema tripartite se dividir, com necessidade de intervenção judicial para dar autonomia aos estados e municípios. “Se não fossem as ações mais contundentes de alguns dos governos estaduais e municipais, a situação estaria totalmente fora de controle e ainda estaríamos discutindo quais vacinas pensaríamos em comprar. Mesmo assim, não temos vacinas suficientes para uma campanha em grande escala e continuada, sustentada, apesar de termos infraestrutura e expertise”, destaca o professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal de Goiás (UFG) José Alexandre Diniz.
Na avaliação de Diniz, o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro permeia toda a teia de fatores que fazem com que o Sars-Cov-2 perpetue e prolifere. “Temos um governo federal que desmotiva a população a aderir à vacinação e apoia o 'tratamento precoce', contra todas as evidências científicas, e continua tratando a pandemia sempre de forma desleixada e incompetente”.
Politização
Além de induzir parte da sociedade brasileira a minimizar a crise sanitária vivida, a negação dos fatos comprovados pela ciência criou uma politização do combate à pandemia. “Criou-se um ambiente onde você acreditar ou não acreditar na pandemia passa a ser uma opção política. Basta ver a briga do presidente Jair Bolsonaro com o governador de São Paulo, João Doria”, aponta o diretor-geral do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) e professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Aith.
O resultado do descompasso, combinado com os efeitos da politização, trouxe um novo agravamento da pandemia, como revela estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no início do mês. “Se União, estados, Distrito Federal e municípios estivessem trabalhando de forma coesa, com objetivos e estratégias alinhados, o Brasil estaria em outra situação, com ações coordenadas nacionalmente”, comenta o coordenador-geral de pesquisa em questões regionais, urbanas e ambientais do Ipea, Bolívar Pêgo.
Os impactos negativos, no entanto, não podem ser atribuídos exclusivamente à esfera federal, uma vez que “estados e municípios também passaram a ceder diante da pressão de vários segmentos econômicos pela reabertura”, ressalta o técnico do Ipea. A desarticulação interfederativa, de acordo com a análise, fez com que o país se transformasse em “verdadeiro laboratório de testagem das estratégias protocolares”, cujos efeitos trouxeram prejuízos, especialmente para as camadas mais vulneráveis da sociedade.
Diante dos erros e suas consequências, o Brasil obteve o pior desempenho no enfrentamento à covid entre um grupo de 98 países mais afetados pela pandemia no mundo. A análise foi feita pelo centro de debates e estudos, Lowy Institute, da Austrália, baseando-se em indicadores como taxa de contágio, oferta de testes, realização de diagnóstico, total de casos e mortes pela doença e proporção populacional.
De zero a 100, a nota mais baixa foi a brasileira: 4,3. A Nova Zelândia, que obteve a melhor colocação, pontuou 94,4. “Juntos, esses indicadores apontam quão bem ou mal os países administraram a pandemia”, diz o relatório, que compilou dados ao longo de nove meses, a partir do centésimo caso confirmado no país.
"Gripezinha"
A má administração traduzida em números pelo Lowy Institute foi exemplificada de outra maneira pela organização não governamental Human Rights Watch. No relatório anual, que destaca questões raciais, ambientais, socioeconômicas e culturais com o objetivo de revisar os direitos humanos ao redor do mundo, a instituição enumera ações e condutas do líder brasileiro que influenciaram no resultado negativo do enfrentamento ao novo coronavírus.
“O presidente Bolsonaro minimizou a covid-19, a qual chamou de gripezinha; recusou-se a adotar medidas para proteger a si mesmo e as pessoas ao seu redor; disseminou informações equivocadas; e tentou impedir os governos estaduais de imporem medidas de distanciamento social”, descreve o texto.
Além disso, o relatório cita a tentativa de restrição de dados públicos sobre a situação da covid, movimentação que culminou na criação de um consórcio de imprensa para acompanhar a evolução. A ONG relembra que o mandatário “demitiu seu ministro da Saúde por defender as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e seu substituto deixou o cargo no ministério em razão da defesa do presidente de um medicamento sem eficácia comprovada para tratar a covid-19”. (BL, MEC e ST)
Frases ditas por Bolsonaro em meio à crise sanitário:
“Nós temos de enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?" - 4/3/2020
“Começa a aparecer estudos aqui sobre o uso de máscaras que num primeiro momento aqui, uma universidade alemã fala que elas são prejudiciais à crianças. (...) Então, começa a aparecer aqui os efeitos colaterais das máscaras, tá ok” - 25/02/2021
"A vida continua. Temos de enfrentar as adversidades. Não adianta ficar em casa chorando (...) Voltar a trabalhar porque sem a economia não tem Brasil” - 11/2/2021
“Lá na Pfizer, está bem claro lá no contrato: ‘nós (Pfizer) não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Se você virar um um jacaré, é problema de você, pô” - 17/12/2020