No início deste mês, a desembargadora Marilia de Castro Neves foi absolvida do crime de calúnia pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ela ficou conhecida nacionalmente por espalhar informações falsas e ofensivas sobre Marielle Franco poucos dias depois de a vereadora do PSOL e seu motorista, Anderson Gomes, serem executados, na região central do Rio.
"A questão é que a tal Marielle não era apenas uma 'lutadora', ela estava engajada com bandidos. Foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu 'compromissos' assumidos com seus apoiadores", escreveu falsamente Neves, que é juíza do Tribunal de Justiça do Rio, em uma rede social.
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Outro trecho falso dizia: "Ela, mais do que qualquer outra pessoa de 'longe da favela' sabe como são cobradas as dívidas pelos grupos entre os quais transacionava (...) Qualquer outra coisa diversa é mimimi da esquerda tentando agregar valor a um cadáver que é tão comum quanto qualquer outro".
Revoltada, a família de Marielle acionou a Justiça. A desembargadora se justificou dizendo que apenas "reproduziu, sem checar a veracidade, informações que circulavam na internet", "no afã de rebater insinuações, também sem provas, na rede social de um colega aposentado, de que os autores seriam policiais militares ou soldados do Exército".
Errou duplamente, uma vez que dois ex-policiais militares estão presos desde março de 2019 acusados de assassinar Marielle e Anderson, à espera de um júri popular. A investigação até hoje não chegou aos mandantes do crime.
Agora, por unanimidade, o STJ concluiu que as retratações publicadas por ela na internet e em uma carta foram suficientes como pedido de perdão.
Três anos depois da morte de Marielle, as investidas para destruir sua imagem, muitas vezes a chamando de "defensora de bandidos" e a associando ao crime organizado, não param.
"Até hoje, a gente é marcada nas redes sociais quando as pessoas veem essas fakes news. Não é fácil ver as mentiras sobre minha irmã", diz Anielle Franco, que criou o Instituto Marielle Franco para cobrar justiça pela morte da parlamentar e seu motorista e trabalhar por mais justiça social no país.
'Não é fácil ver mentiras sobre minha irmã'
Os insultos à parlamentar do PSOL já estavam circulando horas após o crime, cometido na noite de 14 de março de 2018. No dia seguinte, eram compartilhados aos milhares nas redes sociais milhares textos e imagens os mais cruéis, cheios de desinformação.
Os ataques seguem permeados por um discurso de ódio à esquerda e às pautas mais caras para Marielle, uma vereadora que atuava em defesa dos direitos humanos.
"Até parece que só existe esse homicídio para desvendar", diz uma publicação do gênero na internet. Outra sentencia: "Ela teve o que mereceu".
Ao ganhar projeção, a própria Anielle passou a ser vítima de insultos na internet. Ela conta que é chamada de "oportunista", "irmã daquela feminista", "abortista", "maconheira".
"Esses três anos não passaram rapidamente. Não sou a pessoa mais calma do mundo para lidar com isso", conta Anielle, que é professora de inglês e chegou a ser dispensada de escolas onde trabalhava porque seus donos não queriam ver seus negócios associados ao caso.
Mas, ao mesmo tempo, ela acredita que as dificuldades lhe dão energia e força para continuar lutando.
"É inadmissível que depois de três anos a gente tenha que explicar que Marielle não merecia ter morrido por ser de esquerda", lamenta Anielle, hoje esteio da família.
A mãe de Marielle, Marinete Silva, vê perversidade nas narrativas inventadas contra sua filha.
"Claro que isso mexe com a nossa família. Sou mãe, fico triste com essas histórias mal contadas. Mas eles não vão conseguir. Marielle é um símbolo de resistência, e as fake news são muito pequenas perto dela", afirma Marinete
'Mentem e fica por isso mesmo', diz a filha de Marielle
As mentiras da desembargadora Marilia de Castro Neves foram o caso mais notório, mas que está longe de ser o único em que o autor foi uma pessoa em posição de poder. A campanha de difamação de Marielle, desde que surgiu, é impulsionada também por políticos de direita.
Um deles foi o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), que publicou, dias após o crime: "Conheçam o novo mito da esquerda, Marielle Franco. Engravidou aos 16 anos, ex-esposa do Marcinho VP (alcunha de dois traficantes do Rio), usuária de maconha, defensora de facção rival e eleita pelo Comando Vermelho, exonerou recentemente 6 funcionários, mas quem a matou foi a PM".
Fraga disse, diante da repercussão negativa, que se arrependia de não ter checado a informação antes de compartilhá-la e tirou tudo do ar como "prova" de que reconhecia o erro.
Mas as mentiras viralizaram, e até hoje há gente repetindo que Luyara Santos, a filha única da vereadora, é fruto de um relacionamento com um criminoso.
O fato de autoridades usarem seu prestígio para ofender Marielle gratuitamente machuca a jovem.
"Minha mãe foi tirada da gente da forma mais cruel possível, num feminicídio que representa um ataque à democracia. Mas a desembargadora espalhou fake news e ficou por isso mesmo. Quando as pessoas têm poder, são intocáveis, parece que podem fazer o que quiserem da vida do outro", diz Luyara, de 22 anos, hoje estudante de Educação Física.
Morando com os avós, Marinete e Antônio, ela classifica as mentiras persistentes sobre a mãe como uma tentativa de silencia-la mesmo após sua morte.
"Algumas foram criadas uma, duas horas depois, na noite do assassinato da minha mãe. Pessoas querendo apagar todo o trabalho que ela havia construído. Temos que repetir o óbvio todo dia", desabafa.
Luyara sente tanta revolta quanto tristeza. "Uma mulher preta é assassinada, e isso fica sem punição. E tem gente ferindo a moral dela sem punição também. Isso toca em mim num lugar tão profundo que nem consigo explicar."
Desmentindo as fake news
O volume de injúrias contra Marielle foi tamanho que antes que o crime tivesse completado uma semana sua equipe já havia criado um site para desmenti-las, didaticamente.
Por exemplo, a idade em que ela engravidou de Luyara. Isso se deu entre os 18 e 19 anos de Marielle, e não aos 16. "E, mesmo que Marielle tivesse engravidado aos 16 anos, deveria ser respeitada e acolhida", diz a explicação.
Outro esclarecimento: a vereadora nunca teve qualquer relacionamento com Márcio Amaro de Oliveira nem com Márcio dos Santos Nepomuceno, dois traficantes conhecidos como Marcinho VP.
O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), amigo e padrinho político de Marielle, diz que os ataques à vereadora partem do mesmo movimento político e dos mesmos setores sociais que levaram o atual presidente da República ao poder.
"O assassinato da Marielle foi no ano da ascensão de uma extrema-direita que traz à superfície um Brasil racista, machista, homofóbico, que conviveu com a tortura. O Brasil do linchamento, do justiçamento", diz Freixo.
O deputado considera esses desdobramentos assustadores, mas se diz confiante de que o tempo vai colocar tudo na perspectiva certa.
"A gente viu pessoas rasgando a placa com o nome da Marielle, mas agora quem fez isso está preso, deixou de ser governador. A história se sobrepõe", declara Freixo, referindo-se ao deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e ao governador afastado do Rio, Wilson Witzel (PSC).
A segunda execução de Marielle
Hoje deputada federal, Talíria Petrone (PSOL-RJ) é alvo de ameaças de morte desde que se elegeu para a Câmara Municipal de Niterói, em 2016, mesmo ano em que Marielle se tornou vereadora no Rio.
Ela diz que também é frequentemente algo de agressões racistas e chamada de "macaca" e "escrava".
Petrone compara as mentiras sobre Marielle, sua amiga pessoal, com as que são criadas quando há tiroteios em favelas.
"Quando um jovem negro é vítima numa favela, mesmo uma criança brincando em casa, falam que tinha envolvido no crime para justificar essa morte. Isso é matar esse menino de novo, a mãe dele", diz Petrone.
"Executam a memória da Marielle como executaram seu corpo, com tiro na cara. E assim fazem também com dona Marinete, Luyara, Monica (Benicio, viúva da vereadora, eleita para a Câmara carioca pelo PSOL em 2020)."
A deputada cobra que as pessoas que espalham tais informações falsas sejam responsabilizadas.
"O próprio presidente Jair Bolsonaro tem um papel nessa máquina de ódio, que conta, inclusive, com dinheiro público, com um investimento internacional na produção sistemático de fake news. Isso é um ataque frontal à democracia."
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