Depois de tanto captar a natureza humana por meio de suas lentes, há alguns anos o renomado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado passou a ver a vida de um novo ângulo, observando mais as outras espécies. Seu primeiro trabalho após essa mudança foi lançado em 2013, com o livro Gênesis, quando foi atrás dos lugares mais intocados do planeta. O novo projeto veio em seguida, constituído 100% em solo brasileiro, e será apresentado no país no próximo semestre (por volta de agosto, setembro), em um livro que reúne um conjunto de fotografias feitas durante sete anos de expedições na Amazônia brasileira.
Nesta nova obra, ele conta que captou montanhas, povos indígenas e até rios aéreos. “A Amazônia é o grande paraíso terrestre, um dos lugares mais impressionantes e mais bonitos. Para mim, foi como trabalhar no paraíso durante estes últimos sete anos da minha vida. Foi colossal, foi fantástico”, diz.
Sebastião Salgado conversou com o Correio da Itália, onde estava imprimindo páginas do novo livro. Ele falou, ainda, do Instituto Terra, criado por ele e sua esposa, Lélia Deluiz Wanick Salgado, em 1998, depois que o fotógrafo voltou de um duro trabalho que gerou o livro Êxodos. Dentre os tristes momentos vividos por ele naquela época está o genocídio em Ruanda, quando 800 mil pessoas foram mortas em 100 dias. "O que eu vi em Ruanda foi tão horrível que eu queria abandonar a fotografia", afirma.
Salgado voltou ao Brasil na busca por um descanso na fazenda Bulcão, em Aimorés (MG), que até então era dos pais e que foi repassada a ele. Mas, no local, encontrou uma terra arrasada, fruto de anos de exploração pecuária. “A terra estava muito cansada, muito erodida. Estava doente, quase como eu estava doente”, conta. Tudo mudou com uma ideia de Lélia: transformar aquele espaço em uma floresta. O objetivo inicial era plantar de 2 milhões a 2,5 milhões de árvores. Mas os dois foram muito além disso.
A recuperação da fazenda Bulcão (que virou Reserva Particular do Patrimônio Natural) gerou o Instituto Terra, uma organização sem fins lucrativos que promove a restauração ambiental e o desenvolvimento sustentável no Vale do Rio Doce, abrangendo municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo em uma região de Mata Atlântica. O instituto, sediado na reserva, possui viveiro de espécies nativas do bioma, com capacidade de produzir, por ano, 1,5 milhão de mudas de mais de 100 espécies diferentes.
A organização passou a formar técnicos ambientais, ajudar produtores rurais a recuperar as terras, criou programa voltado a escolas primárias, ensinando sobre preservação, e tem um grande programa de recuperação de nascentes na bacia do Vale (que possui 86,7 mil quilômetros quadrados). Salgado afirmou que o trabalho na região é também um modelo para reconstruir diferentes regiões e biomas.
Para divulgar todo esse trabalho e inspirar mais pessoas a preservarem e recuperarem áreas degradadas, o instituto acaba de lançar a campanha Refloresta, com o objetivo de plantar 1 milhão de mudas por ano no Vale. Ninguém menos que Gilberto Gil escreveu e gravou a música da campanha, que veio acompanhada por um clipe, no qual a natureza floresce da cabeça de Gil, tal como o instituto floresceu da cabeça de Salgado e Lélia.
Em 1994, o senhor presenciou o genocídio em Ruanda, e em seguida, retornou para a fazenda Bulcão. O instituto Terra nasceu quatro anos depois. O que o fez retornar e qual foi o sentimento ao ver aquela terra devastada?
Retornei porque não queria mais fotografar. O que eu vi em Ruanda foi tão horrível que eu queria abandonar a fotografia. Então, voltamos para o Brasil, que foi quando meus pais estavam ficando velhinhos e doaram a terra para a gente e pensamos em trabalhar a terra, viver de uma maneira mais calma. Mas a terra estava muito cansada, muito erodida. Estava doente, quase como eu estava doente. Foi quando a minha mulher, a Lélia, teve a ideia de replantar a floresta. Eu comecei a viajar pelo mundo inteiro para angariar recursos e, quando consegui, nós começamos o Instituto Terra.
Na época, o senhor estava em um quadro depressivo?
Eu estava, sim. Eu vivi um momento dramático, vi coisas tão terríveis, que perdi a fé na sobrevivência da espécie humana. Eu vi barbáries não só na África, na ex-Iugoslávia, essas guerras todas. Na época, eu estava fotografando populações deslocadas, estava fazendo um livro sobre refugiados (Êxodos), e acabei vivendo coisas que me levaram à depressão. Eu comecei a perder a minha saúde, aquilo começou a atacar meu físico também. Foi um momento difícil na minha vida.
E o que representou para o senhor o crescimento da floresta na fazenda Bulcão?
A reconstrução dessa floresta, ver voltar toda a vida, todos os insetos, todos os pássaros, toda a cadeia animal, ver voltar a água, fez com que voltasse à minha vida uma alegria grande. E eu comecei a compreender uma coisa que eu não compreendia até então: que o mundo não é constituído só para a espécie humana, ou da espécie humana. É um mundo de todas as outras espécies. Então, a reconstituição do Instituto Terra me levou a compreender que temos que nos situar dentro da cadeia de todas as espécies animais, pois somos só uma dentro da grande quantidade de espécies animais, vegetais, minerais, e tudo faz um conjunto.
Aí, comecei a ver a vida de um outro ângulo, de uma outra forma. O crescimento dessa floresta, a reconstituição da terra, das águas, de tudo que houve no Instituto Terra levou a reconstituição da minha vida também. Foi dentro do Instituto Terra que comecei a ter uma vontade de fotografar a natureza, as outras espécies. Aí, Lélia e eu concebemos um outro projeto fotográfico que virou um livro chamado Gênesis, que nasceu dentro do Instituto Terra. E, agora, acabei de passar sete anos na Amazônia trabalhando com comunidades indígenas, fotografando a floresta, as montanhas da Amazônia e os rios aéreos.
Como foi ir à Amazônia depois de tudo que o senhor já viu no mundo?
É uma pena que os brasileiros desconheçam a Amazônia. Até um ano atrás, quando teve início uma preocupação com a sobrevivência das comunidades indígenas, por causa da covid, ninguém se interessava nem se preocupava com a Amazônia nem com as comunidades indígenas. Felizmente, hoje, as pessoas no Brasil acordaram para isso e tem uma verdadeira e séria preocupação, mas nós temos que conhecer melhor a Amazônia.
A Amazônia é o grande paraíso terrestre, um dos lugares mais impressionantes e mais bonitos. Um lugar cuja biodiversidade é completamente equilibrada. Essas comunidades indígenas vivem em total equilíbrio com a natureza e são comunidades de cultura incrível, sofisticada, tem um número incrível de línguas e culturas na Amazônia. As origens dessas culturas são de vários povos das Américas que emigraram para lá há mil anos, 2 mil anos. Para mim, trabalhar na Amazônia foi como trabalhar no paraíso durante estes últimos sete anos da minha vida. Foi colossal, foi fantástico.
Vou apresentar nesse trabalho uma característica pouco conhecida da Amazônia, que são as montanhas. A Amazônia brasileira tem cadeias incríveis. O pico mais alto do Brasil (Pico da Neblina) está na Amazônia. Além disso, hoje tem um conceito dos rios aéreos, de que se fala tanto, mas não existem fotografias. Eu consegui fotografar muitos rios aéreos. Esse conceito vai aparecer no trabalho. Eu consegui as chuvas incríveis da Amazônia, que você tem a impressão de que são bombas atômicas que estão explodindo. E coisas assim de um poder, de uma força grande.
Foi por causa do instituto que o senhor sentiu a necessidade de fazer esse trabalho?
A Amazônia apareceu para mim no livro Gênesis, quando eu tive que trabalhar naquela região, porque fui procurar as partes mais puras do planeta, e a Amazônia é uma delas. E trabalhando lá eu fiz uma série de reportagens para o Gênesis, mas resolvi que depois eu voltaria. Porque era tão vasto, tão grande, que eu tinha que compreender melhor, mostrar melhor. Tinha que fazer um trabalho que ajudasse as pessoas a compreender que temos que ajudar a preservar o ecossistema amazônico. E aí, quando começamos a apresentação do Gênesis, em 2013, eu comecei a trabalhar na Amazônia.
Acaba tendo uma relação com o instituto, não é?
Indiretamente, vem do instituto. Mas uma coisa eu compreendi bem, são duas coisas que juntas formam um todo: o que nós fazemos no instituto é reconstituir uma parte do que nós destruímos. E nós temos uma quantidade de terras no Brasil que foram destruídas. Se os brasileiros quiserem viver, vão ter que reconstruir uma parte do que destruíram. É o que nós estamos fazendo no Instituto Terra, que é um piloto, é um modelo para isso. E nós temos um segundo lado dessa moeda, que é a Amazônia, é a parte que nós precisamos proteger senão a gente vai complicar não só para o Brasil, mas para o resto do mundo.
Veja, a agricultura, hoje, no Brasil tem um papel colossal para a economia. O sistema de chuvas que garante a agricultura do Centro-Oeste brasileiro, Centro-Sul brasileiro, São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, depende do ecossistema amazônico nas precipitações. Destruindo a floresta, você vai destruir essa grande economia agrícola brasileira.
Então, hoje existe uma contradição no Brasil, porque existe uma destruição da Amazônia para fazer agricultura, e, com isso, nós vamos destruir ao longo prazo toda a agricultura brasileira. Nós temos que manter um certo equilíbrio, manter a floresta amazônica, porque é a maior reserva de biodiversidade, é a maior concentração de água doce do mundo. Nós temos que preservar isso. E temos que reconstituir parte do que nós destruímos para o país viver equilibrado dentro do seu ecossistema.
E os desafios do futuro? Algum novo projeto em mente?
Não, não. Olha, já estou velhinho, tenho 77 anos. Vou começar a fazer a apresentação do trabalho na Amazônia, o que vai me levar uns três anos. Quando terminar, vou estar com 80 anos. Então, acho que está quase na hora de eu começar a parar de fotografar. Vou começar a trabalhar mais no Instituto Terra, a editar mais as fotos que eu fiz.
Mas esse será o último trabalho do senhor?
Quem sabe? Não sei. Eu sempre falo que é o último, mas sempre aparece mais um.
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