Nenhum direito foi dado às mulheres. Tudo foi conquistado com muita luta e protestos, sobretudo no Brasil. Até mesmo o básico direito de participar da vida política do país seguiu a passos lentos: em 1932, foi instituído o voto feminino, desde que a mulher fosse casada e tivesse a autorização dos maridos –– ou se fosse viúva “com renda própria”. Somente em 1965, com o Código Eleitoral atual, é que a distinção de gênero foi abolida, e homens e mulheres passaram a ser iguais diante das urnas. Apesar de a Organização das Nações Unidas (ONU) ter estabelecido, em 1975, o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher, os avanços rumo à igualdade apresentam ainda várias barreiras.
Na última quinta-feira, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o levantamento Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, que mostra que, embora mais instruídas que os homens, elas ainda têm dificuldades de acessar cargos de chefia e gerência no mercado de trabalho. Apenas 37,4% dos postos de comando existentes, em 2019, eram delas. Isso demonstra, segundo o IBGE, que as mulheres estão ainda mais sub-representadas em cargos gerenciais mais bem remunerados e com mais responsabilidades –– em 2019, receberam 77,7% do rendimento dos homens.
Carga pesada
Mas a discrepância salarial não tem sido capaz de parar o avanço feminino nos vários setores profissionais, mesmo aqueles que são considerados uma seara masculina. Que o diga a caminhoneira Nedisandra Magalhães da Silva, de 45 anos, 22 deles na estrada. De 800 mil condutores de veículos pesados no Brasil, a gaúcha está entre o 0,5% de mulheres que representam a categoria, segundo a Confederação Nacional dos Transportes (CNT).
Graduada em logística e pós-graduada em gestão logística (títulos que conseguiu em cursos à distância e estudando no pouco tempo que tinha entre uma carga e outra), Nedisandra trabalhava na área de contabilidade até se descobrir atrás de um volante de um veículo de grande porte. Além de conduzir caminhões, ela tem uma qualificação a mais e também opera máquinas pesadas, como tratores e retroescavadeiras.
Ela relata que a predominância masculina na profissão fica evidente nas rotinas de trabalho. “O maior problema é a ausência de banheiros femininos nas estradas. Já aconteceu de ter que entrar e fechar a porta principal do toalete e se formar uma fila de homens, do lado de fora, para entrar. A maioria entende, mas sempre tem aqueles olhares”, afirma.
Nos céus do Brasil
A brasiliense Flânia Ximenes também é condutora, mas tem sob a sua responsabilidade um avião. Aos 39 anos, é comandante na Azul Linhas Aéreas. No Brasil, de 28,6 mil pilotos ativos, só 21,5% são mulheres e, na empresa, de 1.889 pilotos, 68 são mulheres, sendo 52 copilotas e 16 comandantes. Flânia relata que, além de estudar e trabalhar para chegar ao posto, teve de desviar dos diversos episódios de machismo e assédio. “Eles olham com descrédito, não querem ver as mulheres nessa posição”, ressalta.
Ela se lembra de um episódio específico, quando ainda era copilota. Ao começar o “check-list” da aeronave, processo que precede o voo, foi desautorizada: “Não quero que você faça nem o check-list, não quero ouvir o tom da sua voz”, escutou do parceiro de cabine de comando. Mas isso não a impediu de cumprir com a sua função naquele momento, tampouco de permanecer na carreira que escolheu. “Tentam te diminuir, te menosprezar, para que você recue e desista. É como se tivéssemos que provar o tempo todo que somos boas”, lamenta.
No último dia 18 de janeiro, ela viveu um dos momentos mais emocionantes da carreira ao transportar as primeiras doses da vacina contra o covid-19, de São Paulo para Curitiba. Uma das comissárias gravou o momento em que Flânia fez o anúncio, cuja reação foi o aplauso dos passageiros –– e o vídeo viralizou nas redes sociais. Uma emoção difícil de mensurada e capaz de derreter o mais duro dos corações.
Também entre as mulheres aviadoras no Brasil está a comandante Paula Petean, 39 anos, uma das 54 pilotas da companhia aérea Gol. Ela conta que se espelhou no pai, que é piloto. A paixão pelo voo veio quando ela resolveu fazer um curso para pilotar um avião da família, por diversão. “Eu descobri que era isso que eu ia fazer pro resto da minha vida”, conta. Paula diz acreditar que sua posição serve de inspiração para outras mulheres. “Muitas comissárias me olham e falam: ‘Nossa é uma boa ideia”, conta.
Papel de protagonista
Cinthia Ribeiro (PSDB), de 44 anos e prefeita de Palmas (TO), é a única mulher a chefiar um Poder Executivo municipal entre as capitais brasileiras. E somente chegou a ele deixando claro que jamais aceitaria o papel de coadjuvante. “Poucas vezes você vê mulheres se candidatando como cabeça de chapa, e isso é muito por causa do patriarcado. O machismo ainda está estruturado em muitos homens. Na campanha, sofri muitos ataques. A maior parte das críticas não era sobre minha capacidade de governar, e, sim, por ser mulher”, relata.
Ela lembra de um episódio no qual um jornalista perguntou 12 vezes, em ocasiões diferentes, se ela se sentia preparada para governar o município. “Até que um dia eu o questionei se ele faria aquilo se eu não fosse mulher”, diz. A prefeita acredita que a mudança cultural que permitirá maior ingresso de mulheres na política passa, necessariamente, pela educação. “Meu filho tem 13 anos, ele faz as coisas em casa, lava as louças e entende que a mãe sai pra trabalhar para prover na casa”, explica.
Na sala de cirurgia
O ramo da medicina é um pouco mais equilibrado quando se considera questões de gênero. No Brasil, 53,4% são homens e 46,6%, mulheres. Mas isso é no geral, porque há especialidades majoritariamente masculinas –– como a neurocirurgia, em que de 2.902 profissionais, 91,2% são homens. A neurocirurgiã Nelci Zanon Collange, de 62 anos, é presidente do Comitê Mundial de Neurocirurgia Pediátrica da Federação Mundial das Sociedades de Neurocirurgia (WFNS) e uma das poucas mulheres no país que escolheram a área.
Ela conta que, quando ingressou na faculdade de medicina, em 1981, era raro ver cirurgiãs. “Não conhecia ninguém que fizesse neurocirurgia, fora meu professor. Ele amava a profissão e foi o primeiro contato que tive. Não pensava em gênero na época, mas não conhecia nenhuma mulher que estivesse nessa área ou em nenhum tipo de cirurgia. Quando falei que queria fazer isso, as pessoas duvidaram, já me disseram que não deixariam uma mulher abrir sua cabeça”, lembra.
Esse não foi o único comentário machista ouvido por Nelci. Por ser mulher e querer ser cirurgiã, também escutou de colegas que seria uma “instrumentalista de luxo” (profissional responsável por fornecer e controlar os materiais utilizados pelos médicos nos procedimentos cirúrgicos).
“Naquela época, em um congresso de neurocirurgia, não se via nenhuma mulher na plateia, era toda formada por homens. Eu me sentava no fundo para não sofrer opressão. Mas vencer um desafio a cada dia só me deu mais certeza do que eu queria”, diz.
Foco na liderança
E se a maioria dos cargos de liderança são ocupados por homens, como assegurou a pesquisa do IBGE divulgada semana passada, a gerente-executiva da TIM Graciela Berlezi, de 42 anos, que lidera toda a área comercial de todas as lojas próprias da empresa no Centro-Oeste e no Norte do Brasil, garantiu seu espaço. Formou-se em administração com o foco em ser executiva de uma multinacional, e aguentou firme até conseguir chegar aonde chegou.
Para alcançar seus objetivos, ela sempre pensou em como ser uma boa líder. “Nunca me senti diminuída, porque sempre tive confiança. Já entrei em salas de reunião só com homens, mas sabia que estava preparada. Eu tinha segurança e firmeza. Sabia que fazia os trabalhos tão bem ou até melhor que eles”, ressalta.
Coordenadora do projeto Mulheres Eleitas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a professora de Ciência Política Mayra Goulart afirma que a desigualdade de gênero existe porque vive-se em uma sociedade na qual as mulheres são preteridas quando se pensa nos cargos de liderança e de destaque. Conforme destaca, as mulheres têm suas possibilidades profissionais limitadas ainda na infância, quando ouvem que algumas áreas não são “coisa de mulher”, como futebol ou matemática. “Você vai ceifando as expectativas das meninas, frustrando as vocações dessas crianças”, pontua.
Ao ocupar cargos majoritariamente preenchidos por homens, essas profissionais, segundo ela, passam a ser inspiração, a representar um caminho possível. Mayra frisa que as famílias precisam dividir as tarefas de maneira equânime, sem deixar o ônus para as mães e permitindo que avancem em suas carreiras. “O Dia da Mulher é um dia de lembrar que temos muito trabalho a ser feito por nós, mulheres. É chegar em casa e dizer para o parceiro ou para o filho: ‘essa louça é sua’. E pensar que tudo que fazemos, fazemos não só por nós, mas por todas”, salienta.
Força feminina
Foi a busca por um emprego para melhorar a renda que levou a paratleta especialista em arremesso de dardo, Shirlene Coelho, de 40 anos, a romper limites e desafios que ela jamais imaginou que teria de enfrentar. Em 2006, na busca por emprego, a brasiliense deixou o currículo em um instituto que realizava testes com atletas. Nascida com paralisia cerebral que afeta os membros do lado esquerdo do corpo, ela sempre gostou de esporte, principalmente futebol, mas não imaginava seguir carreira na área. Algumas semanas após entrar em contato com a instituição, foi chamada para avaliação.
Apesar de não ter ido muito bem nos primeiros testes, o profissional que se tornaria seu treinador insistiu na capacidade dela. Quando iniciou os treinos, o resultado apareceu mais rápido do que imaginava: em três meses ela quebrou o recorde brasileiro do lançamento de dardo em um campeonato regional em Uberlândia. "Meu treinados me inscreveu no disco, no dardo e no peso. O disco seria a prova, o dardo e o peso seria uma brincadeira. A primeira vez que peguei o dardo na vida foi um dia antes de viajar. E quando lancei o dardo, pela primeira vez, bati o recorde brasileiro”, conta.
A partir daí, quebrar limites se tornou rotina na vida de Shirlene. A minha vez em que participou dos Jogos Parapan-Americanos, em 2017, no Rio de Janeiro, a paratleta bateu o recorde mundial. “Foi a primeira vez que integrei a seleção. Lancei o dardo, que pesa 600 gramas, por mais de 27 metros e bati o mundial. Desde então bati mais três recordes, e até hoje o recorde de mais de 37 metros não foi batido”, diz.
Shirlene deu uma pausa na carreira para cuidar dos dois filhos, mas pretende retomar os treinos e participar de campeonatos. “Eu não retomei ainda em razão da pandemia. Mas assim que passar, penso em retornar com as competições”, pontua, frisando que a atividade é majoritariamente exercida por homens. “É um meio muito dominado por homens, tanto que nas convocações das seleções sempre tem mais homens. As pessoas ficavam surpresas, porque essas provas requerem força, mas muita técnica também”, completa.
Poder feminino
Política
Eleições municipais de 2020:
68.042 pedidos de candidatura
84,2% eram homens
15,8% eram mulheres
Eleições gerais de 2018:
1.534 pedidos de candidatura
84,6% eram homens
15,4% eram mulheres
Fonte: Estatísticas Eleitorais/TSE
Aeronautas
78,45% são homens (28.658)
21,55% são mulheres (7.873)
Fonte: Aeronautas Ativos/ANAC
Caminhoneiros
99,5% são homens, em média
0,5% é de mulheres
Fonte: Pesquisa CNT/Perfil dos Caminhoneiros 2019
Médicas
Total de médicos no Brasil, segundo dados de novembro de 2020: 500 mil
53,4% são homens
46,6% são mulheres
Diferença vem diminuindo ano a ano. Em 2015, médicos eram 57,5% do total, e médicas eram 42,5%. Em 1990, os homens eram 69,2% e as mulheres, 30,8%.
Na neurocirurgia no Brasil, 91,2% são homens –– 2.902 médicos e apenas 279 médicas.
Fonte: Demografia Médica no Brasil 2020/FMUSP