Os alertas de especialistas, desde o fim do ano passado, não impediram o Brasil de chegar a um patamar alarmante da pandemia, com diversos estados com leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para pacientes com covid-19 à beira do completo esgotamento. Dados das secretarias estaduais mostram taxas de ocupação dos leitos de UTIs do Sistema Único de Saúde (SUS) em 80% ou mais em 18 estados (e acima de 80% em 17 unidades da federação), o que já é considerado crítico pelo comitê Observatório Covid-19, ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A taxa está acima de 90% em oito estados. Médicos apontam: o cenário é de colapso.
Em nota técnica, a Fiocruz afirmou que as taxas observadas no último dia 22 já mostravam “uma clara piora do quadro geral do país referente às taxas de ocupação de leitos de UTI covid-19 para adultos — o que configura-se no pior cenário já observado no país”. Naquela ocasião, 13 unidades federativas estavam com taxa de ocupação acima de 80%. Na análise da fundação, a região Norte se mantém em situação muito preocupante e, em todos os estados do Sul, o quadro piorou.
Alertas não faltaram. Ainda em dezembro, a Fiocruz já falava que “sem cuidados devidamente adequados e sem manutenção do isolamento social” em meio às festividades de fim de ano, a rede de saúde brasileira poderia colapsar. Dentre os fatores que contribuiriam para o agravamento da pandemia, foram citados a “desmobilização de leitos extras dos hospitais de campanha; a ocupação de leitos por outros problemas de saúde que ficaram represados durante o avanço da epidemia de covid-19; a maior circulação de pessoas; as dificuldades de identificação de casos e seus contatos devido à baixa testagem; e o relaxamento dos cuidados de distanciamento social, uso de máscaras e higiene”.
Agora, segundo a Fiocruz, os dados consolidados para o país confirmam a formação de um patamar de intensa transmissão da covid-19, com nenhum estado apresentando tendência de queda significativa nas últimas três semanas epidemiológicas no número de casos e óbitos por Covid-19. “A manutenção de altos índices da doença, bem como a sobrecarga de hospitais, podem ser ainda decorrentes de exposições ocorridas no final de 2020 e em janeiro de 2021, com a ocorrência de festas de fim de ano, festivais clandestinos e intensificação de viagens”, pontua.
Infectologista do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, Jamal Suleiman ressalta que desde novembro do ano passado os especialistas estão chamando atenção para o aumento de casos e sobre o que aconteceria com o sistema de saúde. “Já era absolutamente previsível esse repique simultâneo no país inteiro”, diz. De acordo com ele, as pessoas aglomeraram nas festas de fim de ano, e depois no carnaval, e somou-se a isso a ausência de uma política central de controle da pandemia. “O colapso é o desfecho que a gente previa desde o ano passado”, afirma.
Conforme o infectologista, uma taxa de ocupação acima de 90% “é o colapso”. “O sistema de saúde não pode estar voltado exclusivamente para uma mesma doença”, ressalta. Para o médico, falta uma coordenação nacional, com planejamento. “Essa tragédia é anunciada. O que aconteceu é que a gente saltou do 20º andar sem nenhuma rede embaixo. Todas as narrativas foram no sentido de caracterizar isso como um fenômeno irrelevante com 250 mil pessoas mortes”, relata.
O diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José Davi Urbaez, também afirma que o cenário é de colapso imediato quando a taxa de ocupação está neste nível. De acordo com ele, os hospitais nunca devem ter taxas de ocupação de leitos de UTIs acima de 80%, porque a sobrecarga dos servidores acaba sendo intensa e há, ainda, uma redução na efetividade da internação.
Controle
Em meio à grave situação, governadores começaram a decretar medidas mais restritivas, como o fechamento do comércio. Para Urbaez, as medidas são tardias para uma situação que já era prevista por especialistas, com falta de ações de controle, festas de fim de ano e carnaval. “O Flamengo ganhou e as pessoas comemoraram como se não houvesse pandemia. E o poder público, totalmente omisso”, afirma.
Conforme o infectologista, nada do que está acontecendo é novo ou inesperado. “Quando começou essa história de flexibilização, fechamento de leito, a gente sempre advertiu que o vírus estava em altas taxas de circulação”, pontua. Para ele, tudo o que o país vive é reflexo de uma ausência de dispositivo de controle de pandemia.
“O poder público nunca teve controle de pandemia. O que fez foi correr atrás de leitos para assistir os doentes. Mas controle de pandemia é você reduzir ao mínimo os casos. Para isso, tem que ter testagem, isolamento e planejamento na flexibilização de algumas atividades econômicas. Isso tudo é uma complexa operação que exige trabalho árduo em todas as suas esferas. Aqui, nunca foi feito”, frisa.
Só abrir leitos não será eficaz
Com o sistema de saúde à beira do esgotamento, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, aponta o aumento do número de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTIs) como uma das ações prioritárias da “nova etapa” da pandemia. Especialistas e a Organização Mundial da Saúde (OMS), no entanto, alertam que, sem outras medidas, abrir leitos não é eficaz.
Diretor-geral do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Aith é enfático: abrir leitos e não trabalhar na redução da transmissão é “enxugar gelo”. “Não adianta fazer leitos de UTI. Tem que reduzir o número de infectados. A taxa de transmissão tem que ser menor que 1”, diz.
Aith reforça que a solução está no uso de máscara e nas medidas de distanciamento social. “Se o número de infectados continuar aumentando, os leitos nunca serão suficientes”, afirma.
O diretor pontua que, para cada leito, é preciso profissionais treinados e habilitados. “Falar em leitos é populismo barato; é desviar atenção, dizendo que o problema é UTI”, ressalta.
A epidemiologista Ethel Maciel concorda com Aith: “Para você ter leitos, principalmente os de UTI, você precisa de pessoal qualificado, que saiba operar as máquinas”. A especialista ressalta a necessidade de aumentar a testagem e as medidas de isolamento, com apoio à população (como um auxílio emergencial) e aos pequenos e microempresários, para que possam fechar.
Questionado pelo Correio na última sexta-feira, em entrevista coletiva, o diretor-executivo do Programa de Emergências em Saúde da OMS, Michael Ryan, apontou que aumentar o número de leitos não é suficiente para controlar o cenário de colapso. “O sistema de saúde ficará transbordando se a trajetória dos casos estiver aumentando. Se não pode cobrir hoje, certamente não irá cobrir amanhã, se a pressão sobre o sistema continuar. É sempre bom fortalecer a capacidade da saúde, é sempre bom conseguir abrir mais leitos, mas só isso não é suficiente.”
Transferências
Além de apostar na abertura de novos leitos, a estratégia de Pazuello, frente à lotação de UTIs, é promover a transferência de pacientes entre estados. A proposta é criticada pelo infectologista do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, Jamal Suleiman. “Já é um processo de isolamento grave do paciente em relação a sua família, e ainda é em outro lugar”, explica.
Vários estados receberam, há algumas semanas, pacientes de outras unidades da federação em colapso, como do Amazonas e de Rondônia, mas, segundo o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Carlos Lula, fazer isso neste momento seria mais difícil. “Hoje a gente já teria dificuldade bem maior de fazer esse transporte porque todo mundo está no seu limite.”
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