Na última quinta-feira (18/02), o aluno-cabo Leandro Simões, de 33 anos, trabalhava junto com a sua equipe do Corpo de Bombeiros quando resgatou um bebê de quatro meses em meio a uma enchente em Tarauacá, no Acre.
"A criança estava com muita febre e teve uma convulsão pouco antes de ser resgatada", diz Simões.
Posteriormente, segundo ele, exames confirmaram que a criança estava com dengue. Foi mais um caso da doença em meio a tantos outros registrados nas últimas semanas no Acre.
O Estado vive um duro período de surto de dengue, casos de covid-19 em alta e enchentes que já afetaram cerca de 130 mil pessoas, segundo o governo local. Além disso, também enfrenta uma crise migratória.
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"Tudo o que tem acontecido traz preocupações. São questões humanitárias", diz o promotor de Justiça Marco Aurélio Ribeiro, coordenador do Grupo Especial de Apoio e Atuação para Prevenção e Resposta a situações de emergência ou estado de calamidade devido à ocorrência de Desastres (GRPD) do Acre.
Na semana passada, o Estado decretou situação de emergência nas regiões duramente afetadas pelas enchentes. Nesta segunda-feira (22/02), o governo do Acre aumentou o alerta e decretou estado de calamidade pública em dez cidades atingidas pelas cheias dos rios.
Nos últimos dias, muitas famílias tiveram de ser levadas para alojamentos improvisados em escolas. A medida tomada às pressas pode colaborar para o agravamento da situação da covid-19, porque especialistas apontam que nesses locais é mais complicado seguir medidas de distanciamento social.
Enquanto os leitos de covid-19 estão sobrecarregados no Estado, a busca por atendimentos a casos de dengue também aumentou.
As cheias dos rios
As enchentes atingem dez municípios do Estado, incluindo a capital, Rio Branco. Nos últimos dias, o nível de água em alguns rios começou a diminuir. Apesar disso, autoridades ainda demonstram muita preocupação.
Desde a semana passada, cenas como resgates em barcos em ruas alagadas e entrega de mantimentos a moradores em regiões isoladas pelas águas se tornaram comuns em diversas regiões do Estado. Milhares de casas ficaram sem energia elétrica.
Na semana passada, o nível do Rio Acre chegou a 15,77 metros na capital, 2 metros acima do nível de transbordamento. Ao menos uma dezena de bairros foi atingida.
Neste mês, alguns municípios do Estado, como Cruzeiro do Sul e Rodrigues Alves, chegaram a registrar as piores marcas durante enchentes ao longo das últimas décadas.
Uma das cidades mais atingidas atualmente pelas cheias no Acre é Tarauacá, a cerca de 400 quilômetros de Rio Branco. Autoridades apontam que a enchente atingiu 90% do município. O nível do Rio Tarauacá chegou a abaixar nos últimos dias, mas logo subiu outra vez.
"É o período mais difícil que já passei na corporação até hoje. A enchente bateu recorde de número de pessoas atingidas, que agora estão fora de suas casas e tiveram perdas materiais", afirma Simões, que está há seis anos no Corpo de Bombeiros de Tarauacá.
Na última sexta-feira (19/02), o Corpo de Bombeiros registrou que o nível da água na cidade estava a 11,15 metros — o limite de transbordamento é 9,5 metros. "A água nunca havia chegado a um nível nas ruas e casas como o atual. É a maior enchente dos últimos tempos", diz o tenente Corrêa, coordenador de batalhões da região.
Em 2014, segundo os registros, o nível da água na cidade durante as chuvas atingiu 11,93 metros. "Mas o impacto da enchente atual é bem maior. A medida anterior (para avaliar o nível do rio) era questionável", diz o tenente à BBC News Brasil. "A enchente de 2021 é considerada a maior do período de 1995 pra cá."
Em meio ao atual período, os bombeiros precisaram resgatar diversos moradores de Tarauacá. Na semana passada, o aluno-cabo Simões ajudou a levar uma idosa de 81 anos, que não conseguia andar, a uma embarcação para que pudesse ser encaminhada a um abrigo. Ele também levou água potável para alguns moradores que estavam isolados em áreas alagadas e não queriam deixar suas residências.
Um momento que marcou o aluno-cabo nos últimos dias, e foi fotografado e muito compartilhado em grupos da região, foi quando ele resgatou um bebê em seus braços. "A mãe da criança era uma adolescente que estava em um local de difícil acesso. O nível da água havia subido muito. A casa da família já havia sido tomada pela água e eles estavam na casa de um amigo", diz o integrante do Corpo de Bombeiros.
Simões relata que a criança havia tido uma convulsão antes do resgate e estava com febre muito alta. "O bebê tinha sintomas de dengue", diz. Logo que foi resgatado em um barco, o garoto recebeu atendimento médico. "Se o menino não fosse retirado da enchente naquele momento e recebesse o aparato médico necessário, talvez ele não resistisse", afirma à BBC News Brasil.
O aluno-cabo afirma que ficou comovido com o resgate do bebê e tantos outros que fez nos últimos dias.
Segundo Simões, o bebê passa bem, recebeu alta hospitalar e está com a mãe em um alojamento para vítimas das enchentes. Assim como eles, milhares de pessoas tiveram de deixar suas casas em razão dos alagamentos recentes no Estado: alguns conseguiram abrigo com parentes ou amigos, enquanto outros precisaram recorrer a abrigos montados pelo poder público.
O governo do Acre afirma que desde o início das enchentes tem organizado abrigos em escolas e tendas para acolher as famílias retiradas das famílias das áreas atingidas. Além disso, o Executivo argumenta que tem distribuído alimentos, produtos de higiene e água potável aos moradores afetados pela situação, além de fazer monitoramento do sistema elétrico das regiões.
Por meio do decreto de calamidade pública, o Estado reconheceu a necessidade de ajuda financeira do governo federal para enfrentar a situação, como por meio de auxílio para prestar assistência humanitária às pessoas atingidas pelo transbordamento dos rios.
Covid-19 e dengue
Para o governo do Acre, a atual situação representa o período mais crítico da história da saúde pública do Estado.
De acordo com o Ministério da Saúde, o Acre, que tem cerca de 894 mil habitantes, já registrou 54,9 mil casos de covid-19 e 968 mortes em decorrência do coronavírus.
Atualmente, conforme o Ministério Público do Estado, há casos de pacientes com o coronavírus que aguardam por um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Na semana passada, o governo do Acre reconheceu a possibilidade de a rede pública hospitalar entrar em colapso.
Há 150 leitos clínicos e 80 de UTI na região da capital, para onde muitos pacientes são encaminhados. Nas outras regiões do Estado, há mais 122 leitos clínicos e 26 de UTI.
"A taxa de ocupação dos leitos de UTI está sempre acima de 90% na região da capital, funcionando no limite. Nas últimas duas semanas, sempre há solicitações pendentes. Recentemente, havia 14 pessoas esperando por uma vaga de UTI, depois o número caiu para 9. É muito dinâmico, mas sempre está no limite", afirma o promotor de Justiça Gláucio Ney Shiroma, que atua na defesa da saúde na Promotoria do Acre.
Já os leitos clínicos para pacientes com a covid-19 na região de Rio Branco, segundo o promotor, estiveram com ocupação entre 80% e 90% nas últimas semanas. No interior do Estado, segundo o membro do Ministério Público, os números de ocupação são semelhantes.
"É um retrato da rede de saúde quase no limite. É um cenário muito preocupante", aponta Shiroma à BBC News Brasil.
A situação preocupa ainda mais diante do cenário de abrigos improvisados em escolas que reúnem milhares de desabrigados na cidade — segundo a Defesa Civil, há cerca de 2.100 famílias desabrigadas em todo o Estado até o momento.
"Os números de desabrigados podem aumentar, se a situação não melhorar. Os locais em que esses desabrigados estão sendo colocados (nas escolas) não possuem o distanciamento adequado. Embora possa haver a preocupação para manter o distanciamento, é muito complicado garantir isso (em um local com diversas pessoas vivendo em condições atípicas)", declara Shiroma.
"Em 2015, por exemplo, houve uma cheia que levou 15 mil pessoas a terem de se abrigar no parque de exposições (em Rio Branco). Se isso acontecer hoje, durante a pandemia, vai ser um cenário de tragédia", explica Glaucio, em razão dos riscos de propagação da covid-19.
Ainda no cenário da saúde pública, a dengue tem causado bastante preocupação no Acre. Segundo o governo do Estado, neste ano foram registrados quase 1.500 casos confirmados da doença e outros 8.600 suspeitos. E isso aumenta a pressão sobre o sistema de saúde estadual.
O governo do Acre estima que os casos de dengue correspondem a 80% dos casos que chegam às Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) no período recente.
A BBC News Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre as medidas que têm sido tomadas para auxiliar o Acre, mas não obteve respostas até a conclusão desta reportagem. O governo do Acre não respondeu aos questionamentos sobre a atual situação dos leitos no Estado.
Crise migratória
Em meio às atuais dificuldades relacionadas às enchentes e à saúde pública, o Acre também enfrenta uma crise migratória na cidade de Assis Brasil, na fronteira com o Peru. Na região, aproximadamente 400 imigrantes, na maioria haitianos, tentam atravessar a fronteira, que está fechada desde março passado em razão da pandemia.
O objetivo de muitos desses imigrantes, frustrados com a falta de empregos no Brasil, é migrar para os Estados Unidos. Para isso, precisam fazer o caminho inverso da rota que há uma década serviu de entrada para milhares deles no Brasil.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, os haitianos que estão na fronteira planejam fazer um roteiro de meses em direção aos EUA, por meio de um trajeto perigoso que costuma durar meses e atravessa toda a América Central e o México.
Entre os imigrantes, que estão acampados na fronteira desde 13 de fevereiro, há mulheres grávidas, homens e muitas crianças. Segundo o governo federal, a maioria vivia em São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro.
O governo do Acre alertou que a situação pode causar um possível aumento de casos de covid-19 na região, que não tem leitos de UTI nas proximidades.
Em nota, o Ministério da Cidadania afirma que o secretário nacional de Assistência Social (SNAS), Miguel Ângelo Oliveira, está na região de Assis Brasil para avaliar a situação e orientar os gestores públicos. "O objetivo é definir a alocação dos recursos que o estado e os municípios já possuem e, caso necessário, solicitar verba emergencial", diz comunicado da pasta.
De acordo com a Prefeitura de Assis Brasil, 150 imigrantes da região estão em abrigos, com o apoio do Ministério da Cidadania. Outros 100 permanecem acampados na fronteira.
"É uma situação que nos traz preocupações. Há muitas pessoas, inclusive crianças, envolvidas", diz o promotor de Justiça Marco Aurélio Ribeiro, que acompanha a situação.
Pedido de socorro
A situação, dizem autoridades, pode ficar ainda pior se não houver medidas para acolhimento das famílias vítimas dos alagamentos. Nas redes, muitos moradores da região ou apoiadores de uma campanha "SOS Acre" cobram ajuda intensa do governo federal para o Estado.
O presidente Jair Bolsonaro afirmou que planeja ir ao Acre nesta quarta-feira (24/02) para apoiar a população.
O governo federal afirma que tem acompanhado de perto a situação no Acre. Em nota, argumenta que montará uma coordenação para articular a atuação dos órgãos federais na região para ações como o apoio por meio de recursos para as populações das áreas atingidas pelas enchentes.
Nos próximos dias, a situação no Estado pode piorar. Isso porque a previsão é de mais chuvas intensas. Segundo o Ministério da Cidadania, a Defesa Civil do Acre considera que o volume de chuvas previsto para os próximos dias é alto: cerca de 100 milímetros, com possibilidade de algumas localidades registrarem até 150 milímetros.
Diante da previsão, autoridades da região permanecem em alerta. "Pelo histórico pluvial de anos anteriores, até meados de março deve haver mais chuvas", diz o promotor de Justiça Marco Aurélio Ribeiro. A situação pode fazer com que mais pessoas tenham de deixar suas casas.
"Tudo o que poderia acontecer de ruim para agravar a situação (no Estado) está acontecendo. É uma cadeia de eventos nefastos."
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