Se, há um mês, a cobrança era para dar início à campanha nacional de imunização contra a covid-19, agora, o país assiste à morosidade do governo em fazer com que as poucas doses disponíveis no país cheguem, de fato, aos grupos mais vulneráveis. Para além da escassez de unidades, a falta de um plano de operacionalização central efetivo levou cada um dos entes federativos a interpretar as prioridades de maneira distinta, o que acaba gerando um descompasso no ritmo de entrega. Enquanto alguns estados zeraram seus estoques e precisaram paralisar os próximos passos, outros não chegaram a conseguir aplicar nem 20% das vacinas.
No total, desde o início da imunização, em 18 de janeiro, cerca de 3,58 milhões de brasileiros receberam a primeira aplicação, uma média de 170 mil vacinados por dia. Os dados são do Painel Covid-19 — Estatísticas do Coronavírus, plataforma criada pelo analista de sistemas e matemático Giscard Stephanou a partir de dados oficiais das secretarias de estado e do Ministério da Saúde. Dos nove milhões de doses distribuídas, foram aplicadas menos de 40%, imunizando parcialmente cerca de 1,7% da população.
É fato que parte do estoque relativo à CoronaVac está reservada para garantir a segunda dose, agendada para ocorrer até 28 dias após a primeira aplicação. Ainda assim — ao considerar que os dois milhões de doses da Covishield, conhecida popularmente como a vacina de Oxford/AstraZeneca, já foram liberados — o percentual de doses aplicadas em relação às distribuídas deveria estar em 61%, patamar que o país teria capacidade de atingir, pela experiência com o Programa Nacional de Imunização (PNI), em uma semana. É o que argumenta o médico sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Brasília Cláudio Maierovitch. “Era melhor que já tivesse acabado, porque aí já teríamos mais gente vacinada”.
Em ritmo normal de campanhas nacionais, como a vacinação contra a gripe, o país é capaz de imunizar entre 1 milhão e 1,5 milhão de pessoas em um único dia. Em 2019, por exemplo, o Dia D levou 5,5 milhões aos postos de saúde. Para o diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José Davi Urbaez, é possível observar com clareza que o Brasil não está vacinando no ritmo em que é capaz, mas o ponto de partida do problema é a falta de oferta. “A quantidade de imunógeno é pequena e isso tem levado a essas campanhas meio mornas”. Conforme o especialista, a situação em que o Brasil se vê no momento é reflexo de uma “política de sabotagem sistemática de tudo que representa controle da pandemia”.
Por mais que a oferta esteja aquém da necessidade do momento, Maierovitch reforça que a falta de planejamento do governo federal culmina no atual momento. “Foi criado um clima de imprevisibilidade que poderia ter sido diferente. Todos os gestores estaduais e municipais estão muito cautelosos a ponto de terem dificuldade de se organizar, desacelerando o já prejudicado ritmo da vacinação, emitindo orientações distintas entre si”.
Com isso, a condução da campanha ganhou diferentes contornos entre as unidades da federação. Enquanto o Distrito Federal vacinou idosos acima dos 80 anos e preferiu deixar de fora, no primeiro momento, parte dos profissionais da saúde que não estão envolvidos diretamente no combate à covid-19, em São Paulo, os idosos acima de 90 anos ainda não começaram a receber a injeção, enquanto houve campanha em comunidades quilombolas.
Para o epidemiologista e professor em saúde coletiva da Universidade de Brasília (UnB) Jonas Brant, esse descompasso entre os entes federativos é mais um demonstrativo de que a coordenação das etapas não foi centralizada da maneira como deveria, com planejamento sobre quais grupos iriam ser prioritários e quantas doses seriam recebidas em cada etapa para que as equipes pudessem se organizar. “Esse trabalho está sendo feito às avessas e por local, o que acaba criando uma barreira nessa etapa, em termos de definição. Porque é necessário ver quantas doses e qual o tamanho da população, primeiro, para então definir o grupo e chamar para vacinar”.
Estados
Algumas localidades conseguiram dar mais fluidez ao ritmo de vacinação e esperam chegar à próxima remessa de 2,8 milhões de doses, enviada no sábado pelo ministério, para dar seguimento à campanha. É o caso de DF, Bahia, Alagoas e Rio Grande do Norte, que usaram mais de 50% das vacinas, considerando ser necessário armazenar parte da entrega para a segunda dose. Por outro lado, Roraima, Acre e Tocantins têm menos de 20% do repasse aplicado. O Amazonas, apesar de ter recebido uma remessa exclusiva de 900 mil doses a mais do que os outros entes, em razão da gravidade da pandemia no local, não conseguiu dar saída com rapidez e aplicou 25% das vacinas enviadas. Os dados são do Painel Covid-19 — Estatísticas do Coronavírus.
“As diferenças regionais dificultam ainda mais o entendimento da população e a comunicação vira um desafio. As informações chegam parceladas, com mudanças de estratégias em tempo real. Isso gera uma sensação ruim, de pânico, o que leva as pessoas a gerarem grandes filas no primeiro momento por medo de acabar a vacina”, explica Brant.
Diante do problema já imposto, Maierovitch frisa a necessidade de organização das estratégias que, para não gerar ainda mais atrasos no processo de vacinação, requer agilidade. “Mas o governo mal emite sinais. Quando não engata a marcha a ré, deixa o freio de mão puxado e a coisa não anda”, critica. Uma das discussões a curto prazo que já deveria ter sido travada é a liberação de parte da reserva para aplicação da segunda dose da CoronaVac, já que a insegurança em relação às novas ofertas está controlada com a chegada do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), que garante a continuidade da produção.
Em fevereiro, o Brasil só terá ofertas da CoronaVac para continuar a campanha. O Instituto Butantan tem o compromisso de entregar 9,3 milhões de doses até o fim do mês, fechando o período com 18 milhões de unidades da vacina chinesa e dois milhões da AstraZeneca. Mantendo a política de estocar as segundas doses da vacina chinesa, o montante é suficiente para imunizar 11 milhões de pessoas ao fim do primeiro bimestre de 2021, o que é insuficiente até mesmo para concluir a primeira etapa do grupo prioritário, que inclui profissionais de saúde, idosos, indígenas e quilombolas. Para cumprir a fase inicial de vacinação, seria necessário o montante de 30 milhões de doses.
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