Angelita, Cristiane, Juliana, Lecilda, Luis Felipe, Maria de Lurdes, Nathalia, Olimpio, Renato, Tiago e Uberlandio. Estes são os nomes do “time” da saudade em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. São 11 famílias que nunca mais puderam ver — nem ao menos enterrar — seus entes queridos. Essas vítimas não foram localizadas após a tragédia que completa exatos dois anos hoje, quando mais de 600 pessoas foram arrastadas por uma avalanche de rejeitos de minérios e lama causada pelo rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, de propriedade da Vale. A torcida é para que não haja um apito final nas buscas enquanto todos não tiverem a dignidade da despedida. Em nota, a Vale informou que mantém o apoio ao Corpo de Bombeiros nas buscas.
As vítimas, chamadas de “joias” pelos bombeiros, totalizam 665, segundo levantamento da Vale. Foram localizadas 395 pessoas com vida. Os corpos identificados pelo Instituto Médico-Legal (IML) chegam a 259, sendo 123 funcionários da mineradora e 136 terceirizados ou moradores da comunidade. Até hoje, não foram localizados oito operários da Vale e outras três pessoas – entre terceirizados e moradores da comunidade. O Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais trabalha nas buscas desde o dia do rompimento. Nenhum corpo é identificado desde 28 de dezembro de 2019.
A falta do encontro e identificação desses corpos é o vazio que pulsa no coração dos familiares das 11 vítimas. É assim, por exemplo, com Josiana Rezende, irmã de Juliana Resende, que luta incansavelmente por justiça e para que todos sejam encontrados. “A Ju era significado de amor, de perseverança, de luz na nossa casa. Ela realmente iluminava. Era muito amiga, generosa, bondosa, e todos a viam dessa forma. O coração perdeu um pedaço. Esse pedaço não vai ser preenchido. É exatamente isso pra mim. Falta um pedaço no meu coração”, lamenta a irmã.
Cobrança por justiça
Josiana, conhecida como “Jojô”, é vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão (Avabrum). Sua irmã deixou dois gêmeos órfãos de pai e mãe, já que a tragédia também levou o marido de Juliana, Dennis Augusto, ambos funcionários da Vale. Apesar do sofrimento, Jojô participa ativamente das reuniões com o Corpo de Bombeiros e profissionais do IML, cobrando das autoridades o andamento das buscas.
Para Josiana, que também está sempre disposta a ajudar nos eventos em homenagens às vítimas que ocorrem todo dia 25, a esperança não acaba enquanto o ciclo não for fechado. “Essa ausência dela em todos os momentos é muito complicada. No que se agarrar? Hoje nos filhos dela. É a motivação de manter as buscas, de seguir em frente. Meu pai fala que no meio disso tudo eles têm dado um colorido na nossa vida. O tempo passa muito rápido. A gente só percebe quando vê que os meninos já estão fazendo 3 anos e até hoje nessa situação de espera”, diz.
A vida, hoje, é reviver o rompimento da barragem. Seja numa forma de reparação, de honrar as “joias”, de cobrar por justiça ou de dar alento às 11 famílias. O pedido é para que haja um lugar digno em memória de Juliana. “No dia de Finados, é muito difícil não ter onde ir. Minha mãe vai todo ano limpar o túmulo da minha avó, e isso ela não tem para fazer da filha dela”, conta. Mesmo sabendo que Juliana não volta mais para casa, o desejo sob lágrimas é de dizer mais uma vez: “Eu te amo”. “Eu queria poder abraçar ela de novo, ouvir a voz, sentir o cheirinho, conversar, ouvir a risada, ver ela brincando com os meninos dela. Mas o fundamental é eu dizer o quanto eu a amo. Não que eu não dissesse, mas seria a oportunidade de falar o que eu sinto por ela”, ressalta Josiana.
“A gente esconde a dor e vai pra luta”
Após dois anos do rompimento, Brumadinho mudou. O clima interiorano, tranquilo e amigável, deu lugar, em 2019, a um cenário de guerra. Hoje, pelas ruas de Brumadinho, o que ficou foi saudade. “Esse crime arrancou da gente muito mais que um familiar. Não dá pra contar em quantos velórios a gente foi. Às vezes, quando eu vou na rua, sinto tanta falta de algumas pessoas. Tenho muita saudade do Rogério, que era um atleticano fanático. No dia em que o Cruzeiro foi rebaixado, ele foi a primeira pessoa que eu lembrei. Ele não está aqui para ver isso. A gente sempre sente falta das pessoas, isso dói muito porque eles partiram juntos e deixaram um monte de coração despedaçado pela ausência deles”, relembra a professora Natália de Oliveira.
Natália perdeu a irmã, Lecilda de Oliveira, analista de operações da Vale. Com a fala no presente, Natália conta que “Lecilda é alegria em pessoa”. O último sorriso se foi há exatamente dois anos. “Ela é um presente e era presente na vida de todos. Eu nunca tinha imaginado um dia da minha vida sem a ‘Le’. Ela fazia exames periódicos, comia só o politicamente correto, fazia exames, caminhava, toda saudável, cheia de vida, cheia de sonhos. Estava tudo tão bem. A perda dela doeu demais. Nunca conversei com ela pensando que seria a última vez”, desabafa.
Também integrante da Avabrum, a professora descobriu que a força surge da necessidade. “A gente esconde a dor e vai pra luta”. “A gente sabe que hoje estás buscando os ossos, não existe mais essa Lecilda da foto. Ela acabou, de certa maneira. Mas a gente quer colocar ela em um lugar digno. O meu sonho é que neste ano seja feita uma força-tarefa e todas as ‘joias’ sejam encontradas pra gente poder descansar”, almeja Natália.
Durante estes dois anos, Natália enfrentou outros problemas em casa e ainda assim convive com a dor e o cansaço da espera. O marido sofreu infarto e ficou internado por causa da COVID-19. “Saber que o amor seu morreu, sabe que não vai voltar, ela nunca mais vai me ligar. Nestes dois anos, aconteceram tantas coisas na minha vida, coisas que eu teria ela para dividir e me apoiar, eu não tenho mais. Foi me tirado. O dia 25 para o mundo não significa nada, mas para nós é como se o dia 25 de janeiro de 2019 fosse hoje, ainda estamos presos lá.”
“Dinheiro nenhum paga a vida do meu filho”
Lúcia Mendes, de 34 anos, é mãe de Tiago Tadeu Mendes da Silva, mecânico industrial da Vale. “Um menino trabalhador, muito honesto, muito direito, pai de família”, descreve a mãe, enfermeira. Tiago trabalhava em Sarzedo e havia sido transferido para Córrego do Feijão 20 dias antes da tragédia. Recém-formado, ele estava feliz com a proposta de ser engenheiro na empresa. A alegria que foi soterrada pela lama faz falta para os filhos. Quando Tiago morreu, uma estava com 4 anos e o bebê com apenas 7 meses. “A menina é a que mais sofre porque conviveu com ele. Ela fala comigo: ‘Vovó, você está triste por causa do papai, não precisa ficar, a montanha matou ele, mas ele foi pro céu’. É muito difícil ouvir isso”, conta Lúcia, que era muito próxima do filho. “Ele me faz falta em tudo. Continuei trabalhando para não ficar em casa e entrar numa depressão profunda.”
A vida da mãe que perdeu um filho nunca mais conseguiu ser a mesma. “A cicatriz nunca vai sair. O que eu mais sofro é porque eu não pude enterrar meu filho. Nem o corpo dele a Vale me devolveu. As buscas não podem terminar. Temos que encontrar nossas 'joias'. A gente quer eles. Qual mãe vai aceitar enterrar um filho debaixo da lama? A gente não aceita”, diz indignada.
Passados dois anos da tragédia, permanece a dor, não amenizada com as indenizações pagas pela mineradora. “Dinheiro nenhum do mundo paga a vida do meu filho. Daria tudo, queria morar numa casinha de papelão no meio da rua, mas eu queria ele. Não é dinheiro, a punição da Vale não é indenizar. O negócio é prender os assassinos”, desabafa a professora Natália. “Tem que ser encontrada as 11 ‘joias’, não existe família alguma suportar ser o cemitério aquele minério maldito. É nosso direito. Não existe dor maior no mundo pensar que o cemitério do seu filho é naquela maldição”, lamenta.
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