Após ficar sem oxigênio hospitalar em uma unidade pública de saúde de Manaus (AM), na manhã de quinta-feira (14/01), a idosa Maria Auxiliadora da Cruz, de 67 anos, morreu. "Minha sogra não faleceu pela covid. Infelizmente, ela morreu por falta de ar", lamentou a psicóloga Thalita Rocha, em vídeos compartilhados seu perfil no Instagram.
"Infelizmente, minha sogra não aguentou. Mais uma vez, vítima desse sistema imundo", disse a psicóloga no Instagram.
Desde 8 de janeiro, Maria Auxiliadora, que era enfermeira aposentada, estava internada no Serviço de Pronto Atendimento e Policlínica Dr. José Lins, na capital amazonense, em razão de complicações graves da covid-19.
Segundo Thalita, a idosa precisava ser encaminhada para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), porém não havia vaga e teve de ficar no serviço de pronto atendimento.
Nos últimos dias, conforme Thalita, a sogra apresentou melhoras. "Se não fosse a falta de oxigênio, ela podia ter sobrevivido", diz à BBC News Brasil.
Antes do fim da suplementação no hospital, Thalita comemorava a evolução da sogra. Segundo ela, a idosa atingiu, na madrugada de quinta-feira, o maior nível de saturação de oxigênio do sangue desde que contraiu o novo coronavírus: chegou a cerca de 99% — o ideal é entre 95% e 100%.
Mas horas depois o oxigênio hospitalar acabou. Em razão disso, diz a psicóloga, a saturação da idosa caiu para 35%. "Essa queda aconteceu com praticamente todos os pacientes", comenta.
Thalita chegou a comprar um cilindro de oxigênio por R$ 3 mil para ajudar a sogra. "O valor estava muito acima da média", diz, apontando que a intensa busca na região fez com que aumentassem o preço do item. Mas mesmo com a ajuda familiar, Maria não apresentou melhoras. "A saturação dela não voltou a se recuperar como antes", diz. Na noite de quinta, por volta das 22h20, a idosa faleceu.
A história de Thalita e Maria Auxiliadora ilustra a tragédia da falta de oxigênio em unidades públicas e privadas de Manaus. A falta da suplementação alimentar tem preocupado profissionais de saúde da região, que têm lidado com hospitais cada vez mais lotados — nas últimas semanas, o Amazonas, que tem mais de 5.930 mortes pela covid-19, enfrentou duro aumento de casos da doença.
Profissionais de saúde têm relatado que a falta de oxigênio hospitalar em várias unidades de saúde da região de Manaus tem causado diversas mortes por asfixia.
O Governo do Amazonas e o Ministério da Saúde afirmam que têm tomado as medidas necessárias para solucionar o problema. No entanto, ainda há relatos em diversas unidades de saúde da região.
Especialistas criticam o governo do Amazonas e o Ministério da Saúde e afirmam que não houve planejamento adequado para lidar com as dificuldades causadas pela pandemia de covid-19.
A busca por ajuda
De acordo com Thalita, o oxigênio hospitalar acabou por volta das 8h30 na policlínica em que a sogra estava internada. "Foi horrível. Não desejo essa situação para ninguém. Foi uma cena catastrófica. Muitos pacientes idosos começaram a passar mal e ficaram roxos", disse à BBC News Brasil, na quinta-feira.
O oxigênio hospitalar é considerado essencial para o tratamento de pacientes que, como Maria Auxiliadora, desenvolvem quadro grave da covid-19, pois o novo coronavírus costuma afetar duramente os pulmões.
Em seu perfil no Instagram, Thalita compartilhou o caos na unidade de saúde logo que os pacientes ficaram sem a suplementação hospitalar. "Pessoal, peço misericórdia. É uma situação deplorável. Acabou oxigênio em toda a unidade de saúde. Há muita gente morrendo. Quem tiver disponibilidade de oxigênio, por favor traga", disse a psicóloga em uma série de vídeos publicados na manhã de quinta.
Ela relatou à BBC News Brasil que decidiu mostrar a situação nas redes ao notar que não havia previsão para que os pacientes voltassem a receber oxigênio hospitalar.
"Os familiares dos pacientes ficaram desesperados. Fui atrás da diretora do hospital, que é uma senhora muito humilde e querida. Vi o desespero nos olhos dela. Ela falou: não tenho o que fazer, infelizmente. Eu respondi: então todo mundo vai morrer", emocionou-se a psicóloga.
Assim como Thalita, muitos familiares de pacientes compraram cilindros de oxigênio para ajudar os parentes internados. Caso precisassem recarregar o equipamento (cada carga pode durar 12 horas, conforme a intensidade do uso), os parentes teriam de pagar cerca de R$ 500 — especialistas estimam que os valores de muitos produtos relacionados ao oxigênio hospitalar em Manaus mais que dobraram no atual período.
Nem todas as famílias, porém, têm condições para comprar a suplementação. "O problema é que há muitas famílias humildes. Me disseram que alguns vendedores estão cobrando até R$ 5 mil pelo cilindro, mas muitos familiares de pacientes são pessoas que dizem que não têm condições sequer para comprar água", relatou a psicóloga.
Segundo Thalita, diversas pessoas levaram doações de oxigênio ao local após verem o apelo dela e de outras diversas pessoas nas redes. "Como eram muitos pacientes precisando de oxigênio, (a suplementação) durou poucas horas", comenta. A psicóloga conta que a Secretaria de Saúde do Amazonas entregou os cilindros na unidade de saúde somente no período da noite de quinta.
Mortes por falta de oxigênio hospitalar
Após ficar sem oxigênio, Maria Auxiliadora piorou, mesmo com o auxílio do cilindro comprado pela família. Na noite de quinta, pouco após Thalita comemorar que a sogra seria transferida para uma vaga de UTI, a idosa morreu.
Em seu perfil no Instagram, a psicóloga lamentou a perda. "A falta de oxigênio está acabando com muitas famílias", escreveu.
Ela afirma que houve mais mortes na policlínica em decorrência da falta de oxigênio hospitalar. "Mais gente morreu lá, com certeza. Mais de 10 idosos foram a óbito", declara, em entrevista por telefone à BBC News Brasil na tarde desta sexta-feira (15/01).
Em Manaus, há relatos de mortes em decorrência da falta de oxigênio hospitalar em outras unidades de saúde.
"No plantão de ontem (quinta-feira) à noite, os últimos cilindros de oxigênio acabaram. Sete pacientes morreram por asfixia naquele plantão noturno. Vi todos morrerem por não ter o oxigênio suplementar. Uma triste e chocante cena", conta o médico Pierre Souza, especializado em pediatria e cirurgia geral, sobre a situação no Serviço de Pronto Atendimento Joventina Dias, em Manaus.
Souza afirma ter ouvido, na manhã desta sexta-feira, relatos sobre falta de oxigênio suplementar em outras unidades de saúde da região. "É uma realidade em todas as unidades. É uma falta absurda. É triste e revoltante!", declara à BBC News Brasil.
O caos na saúde
O governo do Amazonas afirma que as dificuldades em relação ao oxigênio hospitalar surgiram porque o Estado não tem capacidade suficiente para produzir a suplementação necessária para o atual momento da pandemia.
De acordo com o governo, o Estado atualmente precisa de 76,5 mil metros cúbicos diários para abastecer os hospitais públicos e privados, diante do crescimento de casos da covid-19. No entanto, as três fornecedoras da região têm capacidade de entrega diária somente de 28,2 mil metros cúbicos.
Para buscar os 48,3 mil metros cúbicos diários que faltam para atender os pacientes, o governo do Amazonas criou nesta semana, junto com o Ministério da Saúde, a "Operação Oxigênio", para pegar insumo em Fortaleza e São Paulo e levar a Manaus por meio de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB).
Na quinta, a Secretaria de Saúde do Amazonas determinou a requisição administrativa de "eventual estoque ou produção de oxigênio" de 17 empresas, como montadoras e produtoras de Eletrodomésticos.
Diante do caos na saúde, o governo do Amazonas passou a transferir diversos pacientes para outros Estados. Na quinta-feira, 235 pessoas foram levadas para hospitais de Goiás, Piauí, Maranhão, Brasília, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Na noite de quinta, o governo da Venezuela informou que irá disponibilizar oxigênio para os hospitais do Amazonas. A informação foi dada pelo ministro das Relações Exteriores, Jorge Arreaza, nas redes sociais.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, as autoridades brasileiras demoraram para agir em relação à falta de oxigênio no Amazonas.
O procurador da República Igor da Silva Spindola, do Amazonas, disse em entrevista ao colunista Guilherme Amado, da revista Época, que o Ministério da Saúde foi alertado há, ao menos, quatro dias que faltaria oxigênio nos hospitais de Manaus.
"O Estado não se preparou. E como se não bastasse, a direção de Logística do Ministério da Saúde só se reuniu hoje (quinta-feira) para tratar disso após ser avisada há quatro dias", disse o procurador que atua na área de saúde no Estado, em entrevista ao colunista Guilherme Amado.
O infectologista Bernardino Albuquerque, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), considera que faltou planejamento para a aquisição e entrega desses produtos.
"Se as empresas daqui não tinham condições de entregar uma certa capacidade de oxigênio, obviamente já deveriam ter buscado em outros lugares", criticou, em entrevista à BBC News Brasil.
"A atual situação é de calamidade pública, sem dúvidas. Estamos todos numa grande expectativa sobre o que realmente pode acontecer em Manaus. Isso não vai terminar daqui dois, três, quatro ou cinco dias. Serão semanas nessa situação crítica. Dizem que a vacinação pode melhorar, mas para isso leva tempo, porque vai depender da adesão da população e da eficácia da vacina", acrescenta.
Após a morte da sogra, Thalita fez um apelo nas redes sociais. "Por favor, não saiam de casa. Por favor, cuidem de suas famílias e de quem vocês amam. Precisamos fazer alguma coisa e lutar para que esses governantes façam o que tem que ser feito. Temos que nos ajudar", disse.
A angústia dos familiares da psicóloga em meio ao sistema público de saúde de Manaus continua. Agora, eles aguardam notícias do marido de Maria Auxiliadora, Paulo Jorge Lima, de 66 anos. O idoso, que também teve quadro grave da covid-19, está internado na UTI de um hospital público de Manaus. Segundo Thalita, ele também teve a situação agravada pela falta de oxigênio hospitalar.
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