Quando foi diagnosticado com covid-19, a preocupação de Willian Luiz Victor, 24 anos, era não transmitir o vírus para a família. Ele mora em Nova Holanda, no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Em casa, além dele, moram sete pessoas. Foi graças às orientações e ao acompanhamento que recebeu dos integrantes do projeto Conexão Saúde: de olho na covid! que conseguiu fazer um isolamento seguro.
"Fiquei preocupado com a minha família. Vieram fazer o teste e felizmente, ou infelizmente, só eu que fiquei com covid. Eles testaram negativo", diz. Victor precisou ser acompanhado por três semanas, tanto remotamente por teleconsultas, quanto por agentes de saúde que fizeram visitas presenciais. Ele recebeu uma série de orientações sobre como adaptar a casa e a rotina. Entre elas, está o uso de máscara dentro de casa, a higienização do local e o distanciamento dos demais moradores.
O projeto, em curso há três meses, é uma ação inédita, realizado em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Redes da Maré, SAS Brasil, Dados do Bem, União Rio e Conselho Comunitário de Manguinhos, com financiamento do Todos pela Saúde.
Juntos, eles oferecem aos moradores da Maré desde testes e orientações para combater a pandemia de covid-19, acompanhamento médico remoto, apoio psicológico e visitas presenciais a produtos de limpeza, alimentos e outros itens necessários para que os doentes possam se recuperar sem segurança e não contribuam para a propagação do vírus.
O programa, de acordo com os dados divulgados pela coordenação do projeto, acolheu 225 pacientes moradores de 11 das 16 favelas da Maré.
Além de Victor, Sidério Gomes, 42 anos, morador do Parque União, foi uma dessas pessoas. Ele diz que agora está 80% recuperado, ainda não recuperou totalmente o olfato e o paladar. "Foram na minha casa, me deram uma assistência imensa. Fui consultado, tive receita médica, comprei a medicação, fiz toda a medicação", conta. "Eu não estava indo para rua, as pessoas chegavam para levar coisas para mim, parentes amigos, para me dar assistência. Deixavam no portão, eu descia pegava devagarinho e subia. As pessoas não entravam na minha casa". Sem poder trabalhar, os kits como o de limpeza que recebeu, segundo ele, ajudaram muito.
Foco na realidade local
"A perspectiva do projeto é trabalhar a ideia de tomar as medidas possíveis dentro de um quadro de realidade", explica o coordenador do Conexão Saúde pela Fiocruz, Valcler Rangel. A Maré é composta por 16 comunidades, onde vivem cerca de 140 mil pessoas. Trata-se de um dos maiores complexos populacionais do Brasil. Segundo o Censo Maré, divulgado em 2019, a média de moradores por domicílio é de 2,91 pessoas, chegando a 3,77 no Conjunto Bento Ribeiro Dantas.
Desde o início da pandemia, foram detectados 1.078 casos de covid-19 na Maré com 136 óbitos pela doença confirmados. "O que a gente percebeu é que as mensagens que começaram a ser passadas no início da pandemia, e até hoje, eram inaplicáveis para pessoas de baixa renda: separe um banheiro [para a pessoa doente], use álcool gel a todo momento, use sabonete, passe desinfetante no chão da casa", diz. "É preciso dar condição para a pessoa promover o melhor isolamento possível dentro da realidade".
Isolamento seguro
Um dos grandes diferenciais do projeto, de acordo com a coordenadora do Conexão Saúde pela Redes da Maré, Luna Arouca, é oferecer suporte e possibilitar um isolamento seguro dentro da própria casa, em casos mais leves que não necessitem de suporte hospitalar. Uma das opções cogitadas era que as pessoas infectadas fossem deslocadas para hotéis e outros locais de isolamento. "Por conta da própria dinâmica cultural, as pessoas não iriam aderir a ideia de sair de casa para ir para centro de isolamento, querem ficar junto com os seus", diz.
Ao entrar em contato com os pacientes, Luna explica que são observada também as necessidades de cada uma das pessoas e quais as melhores formas de fazer com que elas passem por esse período de uma forma mais confortável, seja com cestas básicas, produtos de higiene ou outros itens. O Conexão Saúde elaborou uma cartilha com orientações detalhadas para que o isolamento seja feito no domicílio.
"Parece algo batido falar que as pessoas precisam se isolar, mas não é algo batido falar que precisam de estrutura para poder se isolar. Não adianta julgar a pessoa contaminada com medo de perder o emprego, que pega o ônibus para trabalhar. A pessoa sabe que não poderia fazer isso, mas quando põe na balança perder o emprego e deixar de pôr comida em casa, ela vai", diz a diretora do SAS Brasil, Sabine Zink.
O SAS oferece atendimentos remotos articulando uma rede de profissionais de todo o país. Também oferece suporte local com visitas para verificar a situação dos pacientes. O acompanhamento permite que os pacientes tenham mais segurança e sejam encaminhados aos hospitais apenas em caso de necessidade.
Aumento de casos
Sabine diz que assim como os números de mortes e de pessoas contaminadas aumentaram em todo o país, isso também ocorreu na Maré. Segundo ela, houve um aumento de 60% no número de casos nas duas últimas semanas.
"A gente percebe que um dos grandes desafios quando fala de classe social mais baixa é como se isolar se precisa ir trabalhar. A gente vê que uma das vantagens desse projeto é também trazer um nível de consciência de um lado, os médicos e enfermeiras têm esse papel, de explicar por que se isolar, e, de outro lado, tem a assistência social, de levar cesta básica, kit de higiene, máscara para mesmo dentro de casa pessoa consiga estar isolada em segurança dos outro familiares", diz.
Projeto referência
A intenção é que o projeto possa ser replicado em outras comunidades, servindo de referência para a oferta dos serviços nesses locais. "Eu acho que estamos tentando desenvolver esse modelo de vigilância em saúde nesse momento de pandemia, um experimento que estamos fazendo, temos aprendizados que pode ser usado em outras localidades. Esse tripé testagem, monitoramento e isolamento é algo que a gente percebe que funciona", diz, Luna. Mais informações sobre o projeto estão disponíveis na internet.
Segundo Rangel, o Conexão Saúde pode servir como modelo para ações em comunidades. Em agosto, a Assembleia Legislativa (Alerj) aprovou a destinação de R$ 20 milhões para o desenvolvimento e implementação do Plano de Enfrentamento da covid -19 nas Favelas. O plano foi elaborado por um conjunto de entidades da sociedade civil e instituições de ensino superior. A Fiocruz foi definida como instituição receptora do orçamento, que será gerenciado em colaboração com organizações dos próprios territórios contemplados e universidades. Os recursos, de acordo com Rangel ainda não foram liberados.
Procurada pela Agência Brasil, a Alerj, por meio da assessoria de imprensa, diz que o repasse de R$ 20 milhões previsto pela lei 8.792/20 para a Fiocruz será efetuado até a primeira quinzena de janeiro. "O montante, que sairá do Fundo Especial da Assembleia Legislativa do Rio, não pôde ser feito anteriormente em função do período eleitoral, uma vez que não é permitido fazer liberações discricionárias neste período por força da legislação", diz em nota. A Alerj afirma ainda que mantém contato constante com a direção da Fiocruz. O repasse é garantido pela Lei 8.972/20, proposta pela deputada Renata Souza (PSol) e com a coautoria de 35 deputados.