Na última semana, acompanhamos de perto as notícias sobre a aprovação da primeira vacina contra a covid-19 em alguns países da Europa, a divulgação do plano de imunização contra o coronavírus no Brasil e a chegada das doses da CoronaVac, do laboratório chinês Sinovac, a São Paulo.
Apesar dos avanços importantes, a pandemia está longe de acabar. E há uma etapa muito importante que é pouco mencionada quando pensamos nas vacinas.
Além do produto farmacêutico em si, a aplicação das doses requer uma série de outros insumos e ferramentas. Sem eles, não dá nem para iniciar as campanhas.
Falamos aqui de coisas simples, como seringa, algodão, caixa térmica, saco plástico, luva descartável, e outras mais complexas, como refrigerador, freezer, sistemas informatizados e logística de distribuição e transporte dos lotes.
Por mais que o mundo já tenha experiência com iniciativas de vacinação em larga escala, a pandemia atual vai exigir uma verdadeira operação de guerra.
Se considerarmos a meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) de imunizar 20% da população global no próximo ano, falamos de 1,5 bilhão de pessoas contempladas em 12 meses.
Como a maioria das candidatas mais avançadas precisam de duas doses para surtir efeito, isso significa uma necessidade de 3 bilhões de vacinas e a mesma quantidade de seringas e agulhas. Os números também são gigantescos quando colocamos na ponta do lápis todos os demais equipamentos básicos citados acima.
A parte que nos cabe
No Brasil o desafio será enorme. Afinal, é um país com dimensões continentais, com regiões de difícil acesso e muita desigualdade.
Um ponto favorável é a larga experiência do país com projetos desse tipo. "O Programa Nacional de Imunizações (PNI) existe há 47 anos. Nós possuímos capacidade, organização e estrutura. Estamos acostumados a fazer vacinações em massa e temos ótimos exemplos disso na nossa história, como as campanhas contra a varíola, a poliomielite e a gripe", defende a enfermeira Mayra Moura, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
O tamanho do PNI realmente impressiona. Atualmente, o país possui 38 mil salas de vacinação. Em épocas de campanha, esse número pode ser ampliado para 50 mil.
No total, são 114 mil vacinadores, o que significa uma média de três profissionais trabalhando em cada uma dessas unidades. Tudo é gerido dentro do guarda-chuva do Sistema Único de Saúde, o SUS, e está disponível a todos os cidadãos.
Por outro lado, há uma certa apreensão em setores da indústria que fabricam os insumos, como os responsáveis por refrigeradores e seringas. Eles relatam que não receberam qualquer contato do governo e ainda não sabem o que precisarão produzir para a atender à demanda que virá nos próximos meses.
O grande temor é que os prazos apertados prejudiquem a entrega desses materiais e atrasem o início das campanhas, marcadas provisoriamente para o primeiro trimestre de 2021.
Também há dúvidas sobre a disponibilidade de matéria-prima, pois alguns componentes usados na manufatura são importados. Como todos os países do mundo precisarão comprá-los, há o risco de falta de estoques e aumento de preços.
"O que nos deixa preocupados é que aparentemente o governo federal não tomou algumas medidas que poderiam ter sido antecipadas, e isso pode dificultar o acesso a certos produtos", observa a médica Ana Maria Malik, coordenadora do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGVSaúde), em São Paulo.
Segundo a especialista, podemos viver um cenário parecido ao que ocorreu no início da pandemia, em meados de abril e maio. "Naquele período, havia uma absoluta escassez dos respiradores e de equipamentos de proteção individual, como máscaras e luvas", lembra.
Numa situação normal, a compra dos insumos de vacinação é feita pelos governos estaduais. Eles são responsáveis por adquirir os materiais e encaminhar para os municípios, que fazem a distribuição pelas unidades de saúde. Mas, com a absoluta urgência da pandemia, o Ministério da Saúde já declarou que também vai adquirir os produtos e coordenar as ações.
Mas qual a disponibilidade de alguns desses materiais? E será que o Brasil pode responder a essa demanda? A BBC News Brasil ouviu algumas entidades representativas do setor para entender a capacidade de produção interna e como isso pode impactar na vacinação contra a covid-19.
Cadeia de frio
A vacina desenvolvida pelos laboratórios Pfizer e BioNTech foi a primeira a ser aprovada no mundo. A expectativa é que ela comece a ser aplicada nos cidadãos de alguns países Europeus nos próximos dias.
Apesar do fato ter sido muito comemorado, a realidade é que esse imunizante pode trazer uma dificuldade do ponto de vista logístico. Afinal, as doses precisam ser armazenadas a -75° C.
Isso representa uma barreira importante, pois a grande maioria dos centros de distribuição do Brasil são equipados com câmaras frias que chegam no máximo a -20° C. Nas salas de vacinação, os refrigeradores têm uma temperatura que varia entre 2 e 8° C, o que é suficiente para todas as vacinas disponíveis até o presente momento.
Por meio de um comunicado, a Pfizer argumenta que desenvolveu caixas especiais com gelo seco, que garantem essa temperatura baixíssima durante o transporte. A empresa acrescenta que, depois de abertas, as doses podem permanecer em geladeira comum por até cinco dias sem estragar, o que acaba "viabilizando a vacinação, principalmente na situação atual em que se pretende vacinar o maior número de pessoas em curto espaço de tempo".
O governo, porém, se mostra reticente ao imunizante. Na terça-feira da semana passada (1), o secretário de vigilância em saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo Medeiros, sinalizou que o governo daria preferência às candidatas que se adequam à cadeia de frio já disponível no país.
Ao falar das características desejáveis da vacina, disse que o ideal é que "seja fundamentalmente termoestável por longos períodos em temperaturas de 2 a 8 graus".
Mais tarde nesse mesmo dia, num vídeo publicado no YouTube do ministério, Medeiros recuou e declarou que, no atual estágio, nenhum dos concorrentes estava eliminado da disputa.
"É extremamente importante avisarmos a população brasileira que o Ministério da Saúde, através do Programa Nacional de Imunizações, não descarta nenhuma vacina. O que nós queremos é uma vacina que seja registrada na Anvisa e que mostre eficácia e segurança necessárias."
Do ponto de vista da indústria, o país tem capacidade de fornecer a tecnologia necessária para guardar as doses, mesmo que seja a -75° C. "Precisamos destacar que o Brasil é referência mundial em refrigeração e possui um parque industrial e dezenas de milhares de profissionais qualificados para atender a demanda", assegura o engenheiro Ariel Gandelman, membro do Conselho Nacional de Climatização e Refrigeração (CNCR).
Segundo Gandelman, a indústria brasileira pode produzir novos equipamentos e não há risco de falta de matéria-prima, pois a maioria dos componentes são feitos aqui mesmo. A única parte que é importada da China são os fluidos refrigerantes, essenciais para manter as temperaturas baixas nesses equipamentos. Mas, como há uma ampla gama de substâncias que pode ser utilizada para esse fim, parece não haver risco de desabastecimento.
"Nosso setor está à disposição e estamos prontos para fazer esse esforço conjunto, trabalhar imediatamente e atender os prazos", comunica Gandelman. De acordo com a assessoria de imprensa, até agora o CNCR não recebeu nenhum tipo de contato por parte do governo.
Por meio de nota enviada à BBC News Brasil, o Ministério da Saúde informa que tem feito investimentos na estrutura que garante a estabilidade das vacinas. "Em 2020, mais de 42 milhões de reais foram investidos pela União com foco na aquisição de equipamentos, dentre eles câmaras refrigeradas para ampliação da capacidade de armazenamento da rede de frio".
Seringas
Três empresas são responsáveis pela fabricação de seringas no Brasil: BD, Injex e SR. O trio consegue entregar a cada ano 1,5 bilhão de unidades deste insumo, que são utilizados para várias vacinas e também em medicações injetáveis.
A questão é que cada imunizante tem a sua especificação. "Há vacinas que já vêm prontas para aplicar, enquanto outras chegam aos postos em ampolas e precisam ser preparadas na hora", explica Moura, da SBIm.
As variações não param por aí: a agulha pode ser fina, grossa, comprida, curta… "Dependendo da idade, do peso e da quantidade de músculo da pessoa que vai tomar aquela dose, precisamos usar um tipo ou outro", completa a especialista.
Enquanto não se sabe quais vacinas serão compradas pelo Brasil, não dá pra começar a fabricar as seringas. "Precisamos ter essas informações da quantidade e das especificações técnicas, pois isso impacta o ciclo produtivo das empresas", constata Fernando Silveira Filho, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde (Abimed).
Por meio de nota, o Ministério da Saúde atesta que esse planejamento está sendo feito, mas isso depende de os imunizantes se saírem bem nos testes clínicos, serem aprovados pela Anvisa e chegarem ao Brasil.
O comunicado também revela que a pasta "iniciou o processo de aquisição de mais de 300 milhões de seringas e agulhas no mercado nacional e 40 milhões no mercado internacional, com o intuito de apoiar os estados e municípios no desenvolvimento inicial das ações de vacinação. Para a aquisição interna, já foi realizada pesquisa de preços e emissão de nota técnica para elaboração do edital de compra, que será lançado em breve".
O principal medo aqui está no tempo. "Numa situação normal, entre a ordem de compra, a fabricação e a entrega, há um prazo que varia entre 60 e 90 dias. Essa tem sido nossa preocupação há algum tempo", diz Silveira Filho.
Na prática, isso pode significar que, caso o edital do ministério tenha seu processo finalizado ainda em dezembro, a entrega completa das seringas só aconteceria em fevereiro ou março, o que coloca em risco o início da campanha de vacinação contra a covid-19 marcado para o primeiro trimestre de 2021.
"Estamos muito felizes que o governo esteja dando sinais de uma preocupação clara com essa questão e abra licitações, mas é importante que não fique somente nisso. Precisamos de planejamento", destaca o presidente da Abimed.
Há ainda questões não respondidas sobre a disponibilidade da matéria-prima para confecção das seringas, como plástico que compõe o tubo e o aço que permite fazer a agulha.
Em resposta às perguntas enviadas pela reportagem, a Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast) disse não ser possível mensurar o quanto da produção desse material no país vai para os setores da saúde, ou mais especificamente para as seringas.
A entidade chama a atenção para o fato da indústria precisar importar componentes. "As seringas são feitas de PP, produto que temos dificuldade de abastecimento e limitações de acesso ao mercado externo em função da alta tarifa de importação. Há no Brasil um imposto sobre importações de resinas dos mais altos do mundo (14% no país, contra uma média de 6,5% nos países da OCDE)", esclarece a associação, por meio de nota.
Em relação ao aço, apenas uma empresa no país têm acesso à matéria-prima que pode ser utilizada nas agulhas (o aço comum não serve para esse fim). Esse composto também é trazido do exterior. O mesmo acontece com o tipo de papel especial que serve de embalagem para as seringas.
"Esse é um fator complicador, pois as empresas precisam programar novas compras para iniciar a produção", admite Silveira Filho.
Algodão e gaze
Eles são essenciais para higienizar e desinfetar a pele onde será aplicada a vacina. Além disso, podem servir para estancar algum eventual sangramento. A disponibilidade para uma futura campanha contra a covid-19 parece não ser problema.
"Sob a ótica da indústria, não existe qualquer risco de faltar o produto, mesmo com aumento da demanda", garante Fernando Valente Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).
Por ano, o Brasil produz cerca de 67 mil toneladas de algodão, gaze e outros materiais têxteis com fins medicinais. Esse montante abastece bem o mercado interno. "Não há grande volume de exportações ou importações destes itens", observa Pimentel.
Mesmo se a demanda aumentar por conta da campanha contra a covid-19, o ciclo de produção do algodão medicinal é relativamente rápido. "Mas é importante que o poder público e as empresas privadas comecem a se estruturar, para que nós possamos nos programar também", sinaliza o presidente da Abit.
Repercussões nos cofres públicos
Essa falta de contato e a eventual demora no planejamento e na aquisição de insumos têm os mais diversos impactos. Além de um possível atraso da própria campanha de vacinação, o que afeta a saúde de toda a população, a economia pode acabar abalada.
Afinal, com mais países competindo por um número limitado de matérias-primas e equipamentos, o preço tende a subir. Caso exista a necessidade de importação, o dólar alto e uma relação diplomática atribulada com a China, o principal exportador de muitos dos insumos essenciais, são ingredientes que complicam ainda mais essa história.
E olha que o Brasil já vinha mal das pernas antes mesmo de a pandemia aparecer. "Essa crise sanitária agravou ainda mais o cenário e aprofundou nossas dificuldades. Um dos efeitos foi a elevação do desemprego, que levou a uma queda na arrecadação de tributos por parte do governo", analisa o economista Gilberto Libânio, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Com menos dinheiro nos cofres, o poder público se viu diante de outra dificuldade: a necessidade de investir recursos no auxílio emergencial e na compra de equipamentos para enfrentar a covid-19. "Não há como pensar em equilíbrio fiscal numa situação dessas. Será preciso resolver o problema da saúde pública para que a economia reaja", pontua Libânio.
Por mais que as medidas de distanciamento físico, limitar a circulação de pessoas, fazer testes de rastreamento e usar máscaras sejam importantes, elas apenas controlam o número de novos casos da doença. O vírus continua à solta, e basta relaxar um pouco para que ele volte com tudo.
A solução definitiva está na vacina. Só quando uma parcela considerável da população estiver imunizada é que as atividades poderão retornar com normalidade. Isso só reforça a importância de se organizar, ter os insumos e preparar as campanhas, para que elas aconteçam assim que possível.
Por isso que a professora Ana Maria Malik, da FGVSaúde defende que o governo federal concentre a negociação dos insumos neste momento. "Como as quantidades compradas seriam maiores, para todo o país, o nosso poder de negociação e competição no cenário internacional também aumentaria", acredita.
Outro desdobramento negativo de uma compra "picada" entre os Estados, como acontece normalmente, pode ser a ampliação da desigualdade. Há o risco de locais como São Paulo, que têm mais capital e poder de barganha, garantirem seus estoques de seringas, enquanto outros lugares ficam sem sua parte. "Não faz sentido que alguns mais ricos ganhem acesso antes dos mais pobres. A distribuição deve ser igualitária", defende Malik.
Cenário global
O Brasil não é o único a enfrentar essa dificuldade. Mesmo em nações desenvolvidas, como os Estados Unidos, a disponibilidade dos insumos para vacinação é tema de amplo debate.
Em maio de 2020, a imprensa americana deu muito destaque ao tópico, quando o diretor da Autoridade em Pesquisa e Desenvolvimento de Biomedicina Avançada relatou que o país necessitaria de 650 a 850 milhões de seringas e só tinha um estoque de 15 milhões de unidades.
No Reino Unido, nos últimos dias grupos de cientistas receberam avisos sobre a possível falta de materiais para pesquisa, que estão sendo priorizados para os esforços de vacinação.
O brasileiro Ricardo Parolin Schnekenberg, que faz doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra, relatou no Twitter que recebeu um comunicado falando sobre uma escassez de gelo seco. O material foi redirecionado para o transporte das vacinas de Pfizer/BioNtech, que começam a ser distribuídas e aplicadas por lá.
No contexto global, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) anunciou em outubro que iria comprar e reservar 1 bilhão de seringas ao longo de 2021. A entidade também divulgou a aquisição de 5 milhões de caixas térmicas para transporte de vacinas e um mapeamento completo da cadeia de frio disponível nos países subdesenvolvidos.
Perguntas sem respostas
Enquanto as definições não saem no Brasil, é preciso pensar também como fica o acesso e a disponibilidade de insumos para as vacinas que nos protegem contra outras doenças.
Além dos imunizantes regulares, que todo mundo precisa tomar em algum momento da vida, há surtos de sarampo espalhados pelo país. A febre amarela também foi uma verdadeira dor de cabeça há alguns anos e merece ser acompanhada de perto. E o mesmo vale para poliomielite, caxumba e outros quadros infecciosos.
"É possível que em 2021 a vacinação contra a covid-19 se sobreponha ou ocorra em paralelo a outras iniciativas, como a imunização contra a gripe, que geralmente começa em abril. Isso vai ser um desafio", antevê Moura, da SBIm. Só no ano passado, a campanha de proteção contra o vírus influenza englobou 80 milhões de doses no país.
Teremos seringas suficientes? Há espaço nas câmaras de refrigeração? E a logística de entrega das centenas de milhões de doses? Tudo indica que 2021 será uma verdadeira prova de fogo para o nosso experiente Plano Nacional de Imunizações.
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