O assassinato da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, morta a facadas em frente das três filhas, na tarde da véspera do Natal, no bairro da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, provocou o repúdio de mulheres do Brasil e do mundo. Viviane era juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Sua colega, a desembargadora do TJRJ Regina Lucia Passos, diretora de Assistência e Previdência da Associação de Magistrados do Rio de Janeiro (Amaerj) e vice-presidente do Instituto dos Magistrados do Brasil (IMB), encabeça o movimento que resultou em um manifesto que, até o fechamento desta edição, contava com mais de 300 assinaturas.
Regina defende que a execução penal dos assassinos deve ser aprimorada no país. “A lei que criou o feminicídio considera o crime hediondo. Foi um avanço. Desde 2015, consta no Código Penal, mas (a lei) merece ser aperfeiçoada. Não só na sua penalização, mas, também, no trato e execução dessa pena”, sustenta.
Como surgiu a ideia do manifesto?
O manifesto é um desabafo. Um desabafo enquanto juízas pela perda do nosso par, que exerce a mesma função que nós. É mãe, irmã, filha, como nós. A iniciativa é geral. Começou com Maria Aglaé Tedesco Vilardo, mas posso falar em nome deste movimento, porque estou coletando e unificando as listas. As adesões estão vindo de todos os lugares. Também fora do Brasil. Espontaneamente. Está crescendo muito. O caso Viviane não pode ficar sem resposta. O crime foi aterrorizante, em frente às filhas. A violência também foi para essas meninas. Que o manifesto sirva de farol para que outras Vivianes não padeçam desse mal. Todas as mulheres importam. Na véspera do Natal, o crime foi com a Viviane, mas já houve outro caso ontem (sexta-feira).
Como a senhora avalia os feminicídios no Brasil?
Não foi o primeiro e não será o último, porque é uma verdadeira pandemia, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Entendemos que é uma grave violação aos direitos humanos, sobretudo quando essa pessoa, essa mulher que tem a vida retirada do contexto social, representa um baluarte, como é o caso de uma magistrada, uma promotora, uma agente da lei. Os crimes já são horrendos e devem ser coibidos. Principalmente, quando atingem agentes da lei.
Por que é mais grave quando a vítima é uma juíza ou agente da lei?
Não é mais grave. Outros crimes ocorreram depois da morte de Viviane. Mas, quando é com um agente da lei, passa um recado para a sociedade e para esses algozes, os autoritários, os assassinos em potencial, que eles podem fazer qualquer coisa. Se fazem até com uma juíza, que está ali para coibi-los, imagina o que não vão fazer com a mulher mais vulnerável. Para as mulheres, é muito ruim. As vítimas recebem esse recado também: “Se acontece com a juíza, o que vai acontecer comigo?” Se inibem de levar adiante suas denúncias e suas queixas. E não é isso que a gente quer. Porque, justamente, a lei do feminicídio foi uma luta diante de tamanha pandemia mundial, um crime que passou a ser considerado hediondo.
Por que os crimes continuam ocorrendo, até em maior número, depois da lei?
Desde 2015, o feminicídio consta no Código Penal, mas merece ser aperfeiçoado não só na sua penalização, mas também no trato e execução dessa pena. Não adianta prender o assassino. Sim, porque é preciso tratá-lo com o nome adequado. Não é o ex-companheiro, não é o ciumento. É o assassino. Ele não pode imaginar que ao tirar a vida de uma pessoa por qualquer razão — principalmente daquela que ele está imbuído de ser o proprietário, por conta do patriarcado que traz essa cultura dominante — que vai passar no máximo 10 anos encarcerado com todos os benefícios. Precisamos de uma mudança da cultura, para que as leis sejam efetivamente cumpridas.
A violência contra mulher é mais frequente entre as vulneráveis. Choca mais quando atinge uma juíza?
A violência atinge a todas. Jovens, velhas, ricas, pobres, não respeita credo, raça. No fundo, a violência de gênero, dentro desse contexto cultural, é tolerada pela própria pessoa — que eu nem gosto de chamar de vítima, porque quanto mais chamar de vítima, mais se vitimiza —, ela não consegue perceber muito bem, não sabe o limite. Nós, mulheres, não somos treinadas para certas coisas. Viviane não foi a primeira magistrada.
O que é preciso ser feito para reduzir esses crimes?
Não podemos mais ter esse patriarcado dentro de casa. Temos que fazer um trabalho muito grande de enfrentamento com a sociedade, e com o poder público, para combater que a violência aconteça. A mulher corre riscos no ambiente privado. O feminicídio é uma verdadeira pandemia. Os relatórios são mundiais. Os números estão crescendo. Segundo a Andes (Associação Nacional de Desembargadores), uma mulher foi morta a cada nove horas no Brasil durante a pandemia da covid: 497 perderam sua vida entre março e agosto. Festas como Natal, que mexem muito com o emocional e ligações familiares, agravam os casos. Para você ter uma ideia, vi no grupo de juízes que no plantão de hoje (sábado), houve 13 casos das 11h da manhã até agora (15h), 11 foram de violência doméstica.
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A cada dia, uma tragédia
O corpo da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, de 45 anos, do Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ), foi cremado na manhã de ontem, no bairro do Caju, na região central do Rio de Janeiro. Segundo laudo divulgado pelo Instituto Médico Legal (IML), a magistrada foi morta com 16 facadas nas véspera de Natal, na última quinta-feira. O engenheiro Paulo José Arronenzi, 52 — ex-marido de Viviane — foi o autor dos golpes. Ainda de acordo com o laudo, a vítima tinha perfurações no rosto, barriga e pescoço. Arronenzi está detido em prisão preventiva — após audiência de custódia na última sexta-feira.
Outro crime bárbaro de feminicídio ocorreu em Pernambuco. Anna Paula Porfírio dos Santos, também de 45 anos, foi assassinada pelo marido após a ceia de Natal, na madrugada de sexta-feira, na casa em que moravam. O corpo foi velado e sepultado, ontem, no cemitério de Santo Amaro, no centro do Recife. A cerimônia reuniu amigos e familiares da cabeleireira. Anna Paula tinha quatro filhos.
Ademir Tavares de Oliveira, sargento reformado da PM, atirou, segundo a polícia, na face e no tórax da vítima, no quarto do casal. Momentos antes, os dois haviam participado de uma ceia de Natal no andar debaixo da casa, com outros familiares. De acordo com a perícia, os parentes chegaram a ouvir o barulho dos tiros, mas não conseguiram socorrer Anna Paula, que morreu no local.
Segunda chance
Mesmo com medidas restritivas, muitas mulheres são assassinadas por seus ex-companheiros. Isso ocorre porque a proteção é apenas jurídica e muitos homens nem sequer as respeitam. Karina Duarte, delegada- chefe adjunta da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher da Ceilândia (Deam 2), explica que a violência doméstica é complexa. “Por envolver sentimentos e projetos de vida e filhos em comum, as mulheres que têm medidas restritivas acabam aceitando dar uma segunda chance, uma reaproximação”, conta. Segundo ela, a mulher carrega o peso de achar que vai destruir a família. “Para evitar um mal maior, é preciso um distanciamento absoluto”, pontua.
Do ponto de vista do homem, Karina ressalta que muitos estão em situação de desequilíbrio psicológico. “Mesmo tendo uma medida restritiva, é apenas jurídica, não significa um policial na porta da mulher para evitar que o agressor se aproxime. É importante porque permite uma prisão preventiva e que o agressor não saia com facilidade, mas o desequilíbrio é tal que eles não respeitam e tampouco percebem o quanto têm a perder”, afirma.
Por isso, Neuza Maria Batista, fundadora do projeto Renasce, que assiste mulheres vítimas de violência doméstica, defende o monitoramento dos agressores. “A medida dá uma segurança maior para a mulher, mas, ao mesmo tempo, desperta raiva no homem. Eles ficam ainda mais revoltados. Isso potencializa a vontade de se vingar”, destaca. “O homem precisa ser monitorado. As redes de apoio a mulheres precisam estar integradas”, diz.
Neuza ressalta a importância da rede de apoio porque, senão, já no boletim de ocorrência, a mulher desiste de denunciar. “As oitivas são cansativas. As perguntas desacreditam a vítima e isso impede de correr o fluxo da denúncia”, diz. “A mulher não acredita nas redes de apoio e no Estado. A lei é maravilhosa, mas até ela ser efetiva, a mulher já morreu. Precisamos de um programa de prevenção efetivo”. Segundo ela, apenas entre as mulheres que frequentam o núcleo do projeto Renascer, seis foram assassinadas este ano. (SK)