O Brasil tornou-se o paraíso da impunidade para crimes ambientais, sobretudo na Amazônia, onde o desmatamento explodiu nos últimos dois anos. Quando aplicadas, as multas pagas somam menos de 3%. O índice é historicamente baixo no país, mas atingiu o piso durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. Também na atual gestão, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) decretou a obrigatoriedade de uma etapa anterior aos processos administrativos, uma audiência de conciliação. A justificativa do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é dar agilidade às autuações. No entanto, desde que entrou em vigor, em outubro de 2019, apenas cinco audiências foram realizadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e nenhuma pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Em 11 de maio, o Ministério da Defesa enviou militares das Forças Armadas em Garantia da Lei e da Ordem (GLO), na Operação Verde Brasil 2, para comandar ações preventivas e repressivas contra crimes ambientais na região da Amazônia Legal. Bolsonaro chegou a publicar numa rede social, em setembro, que os militares teriam aplicado “quase R$ 222 milhões em multas durante ações de fiscalização contra delitos ambientais”.
No entanto, os autos de infração não foram lavrados por militares. Pelo contrário, desde que eles estão na Amazônia, o número de penalidades despencou drasticamente, como aponta o Observatório do Clima (OC). “É uma redução de 36,6%, em relação ao mesmo período de 2019, e de 63,4%, em relação a maio-setembro de 2018. Se for considerado o valor das multas, o número ficou estável em relação a 2019 e caiu 42% na comparação com 2018”, informa o OC.
Na Justiça
Para Rafael Daudt, professor de direito ambiental da PUC-Rio, as multas aplicadas acabam inscritas em dívida ativa, e a cobrança é judicial. “O devedor entra com embargos e, para pagar, tem de entrar com execução judicial. Por isso, a ideia de uma etapa de conciliação é boa, mas só cinco audiências foram feitas. Os instrumentos existem, mas não estão sendo aplicados. A melhor estratégia é ter consensualidade, para possibilitar o pagamento antecipado, só que isso tem de funcionar”, alerta. Segundo ele, não adianta aplicar uma multa e ficar esperando ser paga. “A possibilidade de conversão em serviços ambientais é muito melhor”, opina.
Na opinião de Rômulo Batista, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace, historicamente, as multas ambientais têm baixo índice de pagamento. “A nossa legislação considera de menor importância os crimes ambientais. Se 5% eram pagas, agora, são menos de 3%. Isso dá a certeza da impunidade”, destaca. Segundo ele, até outubro, há um número 60% menor de multas aplicadas. “E os gastos com a GLO são maiores; o efetivo, também. Mas, não adianta lavrar multas se não são pagas. O decreto para criar a audiência de conciliação foi uma mudança infralegal para facilitar os crimes ambientais. É mais um boi para passar a boiada”, diz, referindo-se à frase do ministro Salles (leia Memória).
Ex-presidente do Ibama até 2018, Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, lembra que a dificuldade de pagamento ocorre há anos. “O percentual de pagamento, considerando o valor das multas somadas, sempre foi abaixo de 5%. Considerando os processos, era entre 15% e 20%”, frisa. Os valores são fixados pela legislação. “Quando o valor é alto, o autuado prefere usar todos os recursos administrativos, judicializa e demora anos para pagar. A multa é só o documento inicial. No meio, há defesa, possibilidade de recursos. A dívida com a União é só no final”, explica. Suely Araújo ressalta que o Ibama costumava aplicar, em média, R$ 3 bilhões de multa por ano, o que representava cerca de 15 mil processos de autuação.
Com uma equipe de julgamento enxuta, o Ibama foi acumulando um passivo. A média era julgar 18 mil processos por ano. Mesmo assim, não dava vazão. “Em 2018, o passivo estava em 100 mil processos. Por isso, criamos a conversão de multas em serviços ambientais. Isso foi em 2017. Com desconto de 60% do valor, caso o autuado ficasse responsável por cotas de programas ambientais por edital”, relata Suely Araújo.
O primeiro edital envolveu 14 projetos no Rio São Francisco e 20 no Médio Baixo Parnaíba. “Os responsáveis foram selecionados, mas o governo paralisou porque entendia que não deveria passar os recursos para ONGs, sendo que, entre elas, estava a Fundação Banco do Brasil. Deixamos tudo pronto, houve até manifestação de interesse de R$ 1,1 bilhão em investimentos, sendo que o orçamento do Ibama é de R$ 400 milhões, mas está tudo paralisado”, assinala. A única conversão de multas que andou foi em Santa Catarina, porque foi objeto de acordo judicial e saiu da competência do órgão.
Suely Araújo sustenta que as medidas objetivaram limpar o passivo, que, até 2018, era de R$ 38 bilhões de multas não pagas. “Também ajudaria o país a cumprir os compromissos com Acordo de Paris, na questão climática”, afirma. Além da paralisação na conversão, ocorrida no governo Michel Temer, a gestão Bolsonaro conseguiu piorar a situação, com o Decreto nº 9.760/2019, das audiências preliminares. “Essa etapa de conciliação travou tudo. O decreto não foi feito para agilizar nada, como diz o governo. Foi feito para tudo andar mais devagar.”
Auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) concluiu que, de janeiro a agosto deste ano, os julgamentos de autos de infração do Ibama caíram quase 90% em comparação com o mesmo período do ano passado. O alerta da CGU começou em 2019: o processo de análise das multas do Ibama é muito lento e ineficiente, um problema grave, que prejudica o combate a crimes ambientais. E um novo relatório, em setembro de 2020, mostra que, mesmo depois das recomendações da CGU, a situação piorou. O número de processos de infrações ambientais concluídos pelo Ibama despencou. De 2013 a 2017, foram, em média, 21 mil julgamentos por ano. Em 2019, foram 18 mil. E, em 2020, de janeiro a agosto, apenas 1,6 mil julgamentos foram realizados, redução de 88%. A CGU aponta as audiências de conciliação como uma das causas para a lentidão.