Dados coletados pelo Instituto Centro de Vida (ICV) e pelo Centro Cultural Casa das Pretas apontam que mais de duas mil famílias pantaneiras, indígenas e quilombolas sofrem com as queimadas que devastaram o Pantanal desde julho. Este ano, o bioma contabilizou, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 21.752 focos de incêndio até o começo do mês de novembro, o maior número desde o início do monitoramento no bioma em 1998.
As queimadas ganharam força no mês de julho e tiveram seu auge em setembro, quando o mês notificou 8.106 focos. E não apenas a fauna e a flora foram atingidas pela tragédia, mas também as comunidades tradicionais do bioma.
O Movimento SOS Filhas do Cerrado e do Pantanal nasceu para tentar amenizar os danos causados aos povos tradicionais. A campanha arrecada e entrega suprimentos alimentícios, higiênicos, água potável, sementes e ferramentas para as comunidades mais fragilizadas. Desde 25 de setembro já foram entregues 1.047 cestas básicas, 1.360 litros de água mineral, 275 máscaras e quase 140 litros de álcool em gel.
Ao total há identificadas 687 famílias quilombolas, 1.456 famílias indígenas e 221 famílias pantaneiras que tiveram seus meios de vida afetados pelos incêndios florestais. Paty Wolf, coordenadora de uma das unidades da Casa das Pretas, explica como o Movimento SOS Filhas do Cerrado e do Pantanal surgiu.
“A Casa das Pretas é um Centro Cultural de Manifestação artística ligado às matrizes africanas. E era esse o projeto: levar eventos culturais para essas pessoas. Mas quando começamos a conhecer os relatos, percebemos que essas comunidades estavam precisando de algo ainda mais básico: a sobrevivência”.
O Movimento concentra forças para ajudar as famílias a recuperar as roças pedidas e também realizar o reflorestamento do ambiente. “Tentamos ao menos minimizar os impactos que essa população vem sofrendo. Mas precisamos de políticas públicas, de atenção do governo, porque mesmo que as chuvas tenham começado, elas também apresentam um aspecto negativo: as cinzas são levadas para os rios e tornam a água contaminada, além de matar os peixes”.
A coordenadora do Programa de Direitos Socioambientais do ICV, Deroni Mendes, explica que a campanha começou como uma articulação de mulheres que queriam a visibilidade da arte periférica, mas que diante das situações das comunidades elegeu como prioridade “amenizar a fome e a sede” das pessoas.
“Essas pessoas já estavam vulneráveis, já são fragilizadas porque não possuem acesso às políticas públicas. Com a pandemia, isso se agravou e as queimadas pioraram a situação. Essas pessoas usam o solo para sua subsistência e mesmo as plantações que não foram atingidas pelo fogo não tiveram uma boa produção devido à seca”, explica.
Deroni ressalta que as comunidades não possuem água para beber e que a ação do governo é voltada para tentar evitar novos incêndios no ano que vem, no entanto, “sem nada feito para auxiliar os povos que precisam de ajuda hoje”, pontua. Questionado, o Ministério do Meio Ambiente não ofereceu nenhum dado ou informação sobre as ações realizadas no bioma para ajudar as pessoas atingidas pelo fogo até a publicação desta reportagem.
Apelo às autoridades
Eliane Xunakalo, assessora técnica da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT), diz que o governo demorou para agir, pois as comunidades avisaram sobre o perigo das secas e a fragilidade que havia no ambiente. “A gente vive um momento de luto, raramente vamos achar um indígena cantar ou dançar, o momento é de recolhimento”.
A indígena ressalta que “acabou o incêndio, mas o Pantanal ainda precisa de ajuda”. É nesse ponto que Eliane se emociona. “A campanha nasceu para tentar oferecer o básico que é o alimento e a água, não tem saneamento, não tem recursos, não tem educação para esses povos. Eu só queria que as autoridades olhassem para o Pantanal e o cerrado como suas casas e entendessem que é necessário a sustentabilidade. Não precisa parar de produzir, mas ao menos produzir de forma que não fira a natureza”.
Eliane conta que visitou a tribo Guapó e revela a dificuldade de logística para chegar até a comunidade e entregar os alimentos. “Ninguém da tribo foi exposto à covid-19, então tomamos todos os cuidados para não levar a doença para eles. E conseguir chegar ao local não é uma tarefa fácil nem mesmo barata, são quatro horas de viagem, caso estejamos em um barco pequeno. Mas se for um barco maior, o Barco Hotel que chamamos, o tempo é de 16 horas para descer até o povoado; e 23 horas para voltar, pois na volta estamos contra a correnteza”, explica.
A assessora técnica da FEPOIMT se emociona ao falar sobre o momento de chegada dela ao povoado. “Eu via as dificuldades deles. São um povo forte, resiliente. Preocupados com a natureza, dividindo o pouco que têm com os bichos. Eles encontraram uma anta queimada, filhote ainda, pois a mãe morreu no incêndio, e a alimentavam com a comida que tinham também para eles próprios comerem. É uma força que eles têm para defender a terra”.
Eliane diz que essa foi a maior tragédia ambiental do bioma. “Foram incêndios, não foram queimadas, foram incêndios porque o ser humano causou isso”. Ela também defende os indígenas das acusações sobre as queimadas: “Não fomos nós, indígenas, que causamos isso, nós sabemos manejar o fogo, sabemos manejar a seca. Fazemos isso antes de haver outros povos no Brasil. Não é justo sermos acusados se somos nós que estamos cuidando da terra!”
Um lugar de vida humana
Claudia Pinho, coordenadora da Rede de Comunidade Tradicional Pantaneira, explica que falta a sociedade perceber que não foram somente os animais os afetados pelas chamas. “No Pantanal tem gente também, e essa gente tem história e origem”. Para Claudia, as pessoas se esqueceram de ajudar os grupos de pessoas tão fragilizadas e afetadas pelos incêndios.
“Temos uma diversidade tão grande, comunidades tradicionais que foram afetadas cada qual a seu modo. As pessoas perderam as roças, alguns viviam de peixe e isca e, também, perderam esse sustento. Além da perda de apiário, também, a produção de mel está comprometida. Ou seja, tantos setores foram afetados”.
Gilda Portella, 51 anos, é moradora de Cuiabá e voluntária do Movimento SOS Filhas do Cerrado e Pantanal. Ela participa das ações na comunidade quilombola e diz que falta visibilidade para a comunidade. A ONG desenvolve vários projetos com os moradores. “Fazemos concursos de desenhos, textos e poesia e damos um kit escolar para o ganhador, uma forma de incentivar o estudo para as crianças”.
Ausência de políticas públicas
Gilda já atua como voluntária há dois anos e agora conta que trabalha para recuperar sementes de outros povos que sejam do bioma e possam ser utilizadas para reflorestar o local. Uma das dificuldades citadas por ela é a não documentação da terra, além da ausência de políticas públicas.
A voluntária diz que o único poço que abastecia as famílias secou e que agora utilizam carro pipa para levar água à comunidade. “Mas isso é uma solução temporária, o que seria efetivo mesmo era conseguir um novo poço artesiano para essas pessoas. Eles são povos guardiões de saberes, têm conhecimento ancestral e estão se desfazendo devido à falta de ação dos governos”.
Fome
Gilda esteve na comunidade na última semana e descreve o momento como singular. “É uma grande alegria, mas dói também. Alegria porque você está ajudando e vê a emoção dessas pessoas, os olhos marejados, a voz embargada e a forma como agradecem. Mas é triste porque estão passando fome, precisando do básico, da água, da comida”.
Ela não esconde a emoção ao descrever a ação realizada como uma “correntinha do amor, de solidariedade e generosidade”, e finaliza seu relato com a filosofia africana ubuntu: “Só estamos inteiros quando todos estiverem, a gente só é quando todos forem. Essa é a filosofia deles. E o que mais me admira é que não estou indo apenas para ajudar, saio de lá mais leve, não é apenas solidariedade, é união”.
*Estagiário sob a supervisão de Andreia Castro