A politização em torno da vacina contra a covid-19 se intensifica de tal forma que estabelece favoritismo mesmo não havendo, ainda, nenhuma candidata com eficácia e segurança comprovadas oficialmente. No mesmo dia em que o governador de São Paulo, João Doria, veio a Brasília para acertar detalhes sobre a Coronavac, produzida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, o presidente Jair Bolsonaro negou que irá comprá-la, fazendo o Ministério da Saúde recuar com o anúncio de aquisição. O embate, porém, não para em uma guerra política, mas tem poder de interferir na intenção de imunização dos brasileiros, sobretudo ao se diferenciar a origem da candidata.
Um estudo feito pelo Centro de Pesquisa em Comunicação Política e Saúde Pública da Universidade de Brasília (CPS/UnB) revela que o número de pessoas que pretende tomar as doses diminui em 16,4% ao se tratar da candidata chinesa e 14,1% em relação à russa. Para a avaliação, 2.771 entrevistados foram separados em cinco grupos: um em que não foram feitas perguntas distinguindo a origem da vacina, e os outros quatro especificando a produção vinda da China, Rússia, Estados Unidos e da Universidade de Oxford, na Inglaterra.
Ao comparar os números com aqueles que não fazem distinção da nacionalidade com os que fazem, observou-se redução na casa de 15% na avaliação das candidatas chinesa e russa, enquanto a americana e a inglesa tiveram metade da rejeição (7,9% e 7,4%, respectivamente). “Esse dado sugere uma desconfiança de parte da população brasileira com a vacina, presente inclusive entre pessoas que estão muito preocupadas com a doença”, diz Wladimir Gramacho, coordenador do estudo e do CPS.
No entanto, ao incorporar à análise levando em consideração quem é apoiador do presidente Jair Bolsonaro, apenas 27% afirmam ter muita chance de se vacinarem se a substância for produzida na China. A quem faz oposição ao governo, essa porcentagem dobra (54%), mesmo com uma vacina produzida na China. Os números indicam, portanto, a influência da política, mesmo que haja confirmação da eficácia e segurança científica dos imunizantes. “O uso da pandemia e da vacina na disputa entre as elites políticas brasileiras tem sido, em si, uma ameaça à saúde pública”, afirma Gramacho, que alerta: “o mais importante é que haja uma recomendação clara e consistente de todas as autoridades a favor da vacinação”. Mesmo com o discurso de Jair Bolsonaro em ressaltar que a imunização não será obrigatória a nenhum cidadão, 78,1% dos entrevistados ouvidos pelo estudo da Universidade de Brasília (UnB) disseram ter alguma ou muita chance de se vacinar.
A insistência do governo federal quanto à obrigatoriedade da vacinação pode trazer consequências ao enfrentamento da covid, como destaca o especialista em gestão de Saúde e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Walter Cintra. “A obrigatoriedade de vacinação contra o covid-19 é uma possibilidade prevista na lei sancionada pelo próprio presidente no começo do ano. Logo, não há razão para se trazer essa discussão à baila neste momento, exceto por proselitismo político em um embate entre o presidente e governador de São Paulo, mais preocupados com suas agendas eleitorais do que com o interesse público”, critica.
Enfatizar o viés político em um momento em que a saúde está em jogo é considerada uma tática irresponsável e dolosa pelo especialista. “Manifestações de um dirigente político contra o programa de vacinação brasileiro, na minha opinião, deveriam ser consideradas crime de responsabilidade e implicar em ações para o seu impedimento”, afirmou Cintra, destacando que, antes de se discutir o que entrará ou não no PNI, é preciso que haja a real aprovação de uma imunização eficaz e segura.
Imunização coletiva
Após o efetivo registro de uma vacina, o virologista Flávio da Fonseca, da Universidade Federal de Minas Gerais e do Centro CT-Vacinas, destaca que a única chance de se criar um bloqueio contra a covid-19 é uma imunização coletiva e abrangente. “A alternativa que a gente tem para realmente bloquear as nossas zonas de ocorrência, diminuir o espalhamento e evitar novas ondas da doença é a vacinação de massa. Muito mais do que um instrumento individual de saúde, é um instrumento coletivo de saúde pública”.
O virologista destaca que, do ponto de vista técnico, uma aplicação compulsória seria a melhor estratégia para garantir o alcance de mais pessoas, fazendo funcionar a barreira contra a infecção. “No entanto, é necessário observar as questões éticas relacionadas à obrigatoriedade da vacina e criar mecanismos legais para fortalecer esse movimento”. Apesar de a legislação brasileira prever a obrigatoriedade de vacinas infantis, inclusive sendo um dos requisitos, por exemplo, para continuidade de repasse de auxílio a beneficiários de programas sociais, a determinação legal não ocorre com adultos.