A realidade das estradas brasileiras ainda é muito desconhecida. Jornadas exaustivas, que levam motoristas profissionais ao uso de drogas, colocam em risco não apenas a vida dos próprios, mas, também, dos que trafegam nas rodovias. Levantamento da SOS Estrada revela que os exames toxicológicos de mais de 700 mil motoristas profissionais de caminhão, vans e ônibus confirmam uso de drogas. A pesquisa, realizada entre março de 2016 e setembro deste ano, detectou alta presença de substâncias tóxicas. Nesse período, 67% dos testes de portadores de carteiras do tipo C, D e E foram positivos para cocaína.
A SOS Estrada utilizou os dados do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) e do Renainf (Registro Nacional de Infrações de Trânsito) para realizar o estudo. Exames toxicológicos precisam ser apresentados por condutores profissionais na renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e também para contratação e demissão nas empresas. Conforme a pesquisa, 170,8 mil condutores testaram positivo para drogas, com altos índices acima do limite permitido pela legislação. Desse total, 140,7 mil eram motoristas com carteiras C, D e E.
Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, vê o uso de drogas por condutores profissionais um problema e um risco que precisam ser tratados. Para ele, a obrigatoriedade de realização dos exames ajudou a melhorar o quadro em relação aos dados de 2015, mas os números ainda são preocupantes. “Em 2016, houve uma redução importante no uso de drogas por parte desses condutores e, em 2019, houve uma redução, segundo a metodologia aplicada, de 60% de uso de drogas por motoristas profissionais. É uma queda muito importante”, avalia.
Iceberg
“Os dados revelam uma parcela de um iceberg que é o uso de drogas por condutores profissionais”, afirma Rizzotto. Segundo ele, os exames não mostram o uso eventual. “Não é uma pessoa que cheirou cocaína hoje, faz o exame, daqui a um mês, vai dar positivo. É a pessoa que usa regularmente. Ela está acima de um determinado grau de contaminação para ser considerada positivo”, pontua. “Se você considerar quem tem drogas no corpo, mas não foi considerado positivo, nós não estamos falando de 170 mil, estamos falando de uns 700 mil, entre categorias C, D e E. Então, é um problema muito grave”, complementa.
O caminhoneiro Lucas Gonzaga, 21 anos, associa o uso de drogas ao trabalho aceito pelo condutor. “Acredito que a maioria desses caminhoneiros não usa essas substâncias por gostar. O tipo de carga tem grande influência nesses números. Uma carga perecível, como frutas, legumes ou carnes, se atrasar ou demorar, pode estragar dependendo da distância. Assim, o caminhoneiro acaba optando pelo uso de rebite ou da cocaína para fazer a entrega logo”, conta o condutor de cegonhas.
Entrega expressa
O serviço de entrega expressa é o mais cobiçado por esses trabalhadores, por pagar melhor. O caminhoneiro Tica Cyrillo, 45, que tem 25 anos de experiência na profissão, afirma que o uso de drogas é comum nessa prática por exigir que o motorista fique mais horas acordado. “Nós recebemos por comissão. Isso pode ser prejudicial para a maioria dos caminhoneiros. Precisamos entregar muito para receber bem. Além disso, temos o cliente que demanda de um serviço rápido. E, por trabalhar por comissão, tem caminhoneiro que pega uma carga que poderia ser dividida em três e faz sozinho para ficar com todo o lucro da entrega. Logo, viabiliza o uso de drogas e vira um apoio para ele conseguir fechar o serviço. Já vi gente ficar 72 horas sem dormir”, relata.
O acesso a essas substâncias é mais fácil do que se imagina nas estradas. Postos, borracharias e mecânicas podem ser pontos de droga, segundo os motoristas. Há casos em que a empresa financia a droga para o caminhoneiro rodar.
“Eu respeito meus limites e trabalho de forma que meu corpo não se prejudique. Mas, se outra pessoa que está acostumada a usar algum estimulante para trabalhar, ela topa o serviço em que a empresa custeia a droga e vai ter um faturamento que corresponde ao dobro do meu. Para o empresário, financiar o errado acaba sendo vantajoso financeiramente”, lamenta Cyrillo. Segundo ele, não é difícil encontrar relatos de pessoas que migraram do rebite para a cocaína e, às vezes, até para o crack.
De acordo com Renato Dias, licenciado da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e, atualmente, presidente da Associação Brasileira de Toxicologia (Abtox), com a realização de exames, é possível atingir uma massa muito maior de motoristas do que em uma simples fiscalização, que costuma ser aleatória. Ele pontua que a lei, agora, prevê multa para motoristas das categorias C, D e E que estão sem o exame toxicológico. “É preciso casar de forma a complementar a fiscalização com a prevenção. É importante deixar claro que a maioria dos caminhoneiros não é usuária de drogas e 93% aprovam a realização do exame toxicológico. Estamos falando de minoria, que, por várias circunstâncias, entre elas, o excesso da jornada de trabalho, usa drogas para ter uma jornada prolongada”, afirma.
Rizzotto, do SOS Estradas, destaca que, diferentemente da lei seca, a testagem tem o caráter de prevenção e os altos números trazem muito da cruel realidade enfrentada. Ao comparar os números da lei seca com os dos testes para drogas, ele destaca que, em 2017, 226 motoristas foram testados e deram positivo para o uso de álcool. No mesmo ano, mais de 20 mil testaram positivo para drogas. “Um trabalho como esse, que é preventivo, funciona muito melhor do que a fiscalização”, compara.
Os dados da entidade mostram que, dos motoristas avaliados no levantamento, 80 mil eram condutores de transportes coletivos, como ônibus e vans. Rizzotto conta que “um percentual muito elevado deu positivo ou não compareceu para renovar”. Ele ainda destaca que os motoristas de ônibus vivem também em um estresse muito grande e, muitas vezes, são submetidos a excessos de jornada. Quando viajam em dois motoristas, há revezamento. Um dirige enquanto o outro vai dormindo sentado ou até mesmo no bagageiro.
* Estagiária sob a supervisão de Rosana Hessel