Ao anunciar que estavam abrindo vagas exclusivamente para estagiários negros, no dia 18 passado, os executivos do Magazine Luiza jamais imaginariam ser acusados de um estapafúrdio “racismo reverso”— ou seja, “discriminação” de jovens brancos. E que, inacreditavelmente, a empresa enfrentaria na Justiça pessoas que acreditam que tal ação afirmativa é discriminatória — 11 processos com esse argumento foram impetrados junto ao Tribunal Superior do Trabalho, que os arquivou alegando, entre outras coisas, que a iniciativa da rede varejista tem respaldo da Constituição e no Estatuto da Igualdade Racial. Esse episódio, para o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, escancara o racismo no mercado profissional. De acordo com a consultoria Talenses, no Brasil, somente 5% dos presidentes de 532 grandes empresas brasileiras são negros e apenas 2% ocupam postos em conselhos de administração. “Descobriu-se (com o episódio do Magazine Luiza) que o racismo estrutural no mercado de trabalho tem proporções homéricas. Apesar da polêmica, percebemos que é fácil fazer a mudança: se não tem negros nos cargos executivos e de gerência no país, é só prepará-los; basta criar oportunidades”, sentencia Vicente, acrescentando que “esse discurso de racismo reverso sempre foi falso”. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.
O fato de o Magazine Luiza abrir um programa exclusivamente para estagiários negros trouxe para a superfície o racismo que boa parte dos brasileiros negam que exista. Para piorar, houve quem impetrasse ações judiciais –– todas arquivadas –– alegando discriminação aos candidatos brancos. Isso mostra que o Brasil está indo na contramão de alguns marcos evolutivos?
Diria que o caso Magazine Luiza nos proporcionou um salto civilizatório no tema da discriminação e da exclusão de negros em ambientes corporativos, e nos demais ambientes em nosso país. Porque, primeiro, o Brasil se debruçou para discutir uma questão que era sempre discutida de forma lateral — e veio para o centro da mesa. Descobriu-se, então, que o racismo estrutural no mercado de trabalho tem proporções homéricas. Todo ambiente corporativo e empresarial deve olhar para si mesmo e refinar o discurso. Apesar da polêmica, percebemos que é fácil fazer a mudança: se não tem negros nos cargos executivos e de gerência, é só prepará-los; basta criar oportunidades. Mas, a parte mais sensível que precisava ser superada era o questionamento da legalidade, da constitucionalidade de uma ação dessa natureza. E vimos que tanto o Ministério Público quanto a Justiça do Trabalho assinaram embaixo. Ou seja: é legal, é constitucional e é oportuno. De modo que foi provado que a medida era necessária, constitucional e adequada. Esse caso construiu um paradigma no país e vai obrigar todos a seguirem pela mesma régua.
As ações judiciais questionavam um certo “racismo reverso” da empresa, além de um suposto oportunismo. Ou seja, seria um viés meramente argentário, mas com tintas de reparação social. O que o senhor diz sobre isso?
Esse conceito de racismo reverso sempre foi falso. Além de ser antiguíssimo, foi superado e sacramentado pelo que tem sido as discussões teóricas, doutrinárias e as discussões sociais. Não existe “racismo reverso”; o que existe é o racismo, que tem como vítima o negro. E, por conta disso, é mais do que legítimo e necessário que se façam as correções do que esse racismo significou. Porque, caso contrário, seria o caso de questionar: se o racismo contra os negros vale, não vale o reverso? Sobre a possibilidade de ser oportunismo da empresa, não é o caso. Particularmente, acredito que não, pelo perfil da empresa. Primeiro, que a Luiza Trajano e a sua empresa demonstram uma postura séria, com clareza nas suas questões e nos encaminhamentos. Não tenho dúvida de que se trata de uma disposição e de uma vontade sincera e honesta. Mas, qualquer empresário mede o risco das suas ações. Se fosse apenas marketing, poderia haver um estrago terrível, a ponto de jogar a opinião pública contra o Magazine. E não foram poucas as empresas que lançaram projetos de inclusão parecidos nos últimos dias, como também não são poucas as que, mesmo antes desse projeto do Magalu, têm praticado diversas ações afirmativas de inclusão do negro no ambiente corporativo. Trata-se de uma mudança de postura de empresas ligadas à Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e de empresas como o Magazine Luiza, que compreenderam que chegamos no fundo do poço. Damos um passo civilizatório acerca desse tema ou vamos produzir um retrocesso de profundidade terrível, que talvez nem permita um caminho de volta.
Fala-se muito que, em outros países, o racismo é visível e que, no Brasil, escondemos a discriminação. Esse episódio não desmente isso, ou seja nosso racismo é tão escancarado quanto o dos Estados Unidos ou da África do Sul?
O nosso racismo não deixa de ser menos violento e menos agressivo do que os outros, sobretudo o americano. Somos 54% e estamos brigando pelo compartilhamento das verbas do processo eleitoral para que consigamos eleger os primeiros deputados negros na proporção do que somos no país. Ainda estamos brigando para conseguir um presidente negro nas cinco mil maiores empresas do Brasil. As nossas cinco maiores empresas não têm um vice-presidente ou presidente negro, isso em um país miscigenado como o nosso. Nossa democracia racial é mais danosa do que o racismo americano e do que tantas outras xenofobias que existem pelo mundo. O fato é que, para tratar dessa violência, o país nunca se debruçou com profundidade para combatê-la.
E quanto ao estereótipo de que o negro só está gabaritado para falar sobre negritude, africanidade e questões afins, quando, na verdade, está apto para abordar qualquer assunto. Como resolver isso?
Com mudança de mentalidade e com uma ação intensa dos órgãos que possuem a obrigação legal de fazer a fiscalização da implementação da lei. A solução é, sobretudo, com a punição daqueles que fraudam e transgridem a legislação. Por exemplo: aprovaram uma legislação de combate ao racismo estrutural na sua gênese, ao determinar que, na educação privada e pública, desde os anos iniciais, tenha-se pelo menos 20% da grade curricular falando da história do negro e da história da África. Ou seja, uma forma de combater as intolerâncias, promover empatia e mostrar as construções e realizações importantes dos negros brasileiros e africanos. No entanto, passados 15 anos, até hoje, essa lei não é cumprida. Avançamos em alguns aspectos, e isso precisa ser celebrado, mas temos, também, outros lugares em que o tema do racismo não conseguiu andar, consolidar-se, nem cumprir seus objetivos.
*Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi