Fosse um paciente, a educação brasileira estaria em situação crítica após seis meses de pandemia da covid-19. O problema é dramático na alfabetização. Uma das 20 metas previstas no Plano Nacional de Educação é erradicar o analfabetismo até 2024. Mas, o impacto do novo coronavírus, somado às dificuldades históricas no ensino, torna ainda mais distante a realização desse objetivo. Bastou um semestre para a pandemia exacerbar diferenças de décadas nas escolas do Brasil.
“O impacto nos grupos mais pobres do país é desastroso. Essas crianças estão fazendo o quê, agora? Quem se importou com elas?”, desabafa Francisco José Rengifo-Herrera, coordenador do mestrado em Educação da Universidade de Brasília. Para o especialista, a educação é um pilar no desenvolvimento da sociedade. “Temos de relacionar o futuro com a alfabetização. Muitas crianças que vão iniciar (pós-pandemia) na escola deverão ter um mínimo de garantias de se engajar e de aprender a ler. Se não garantirmos isso, além do impacto severo que a pandemia trouxe, teremos o impacto de não ter respondido à altura com modelos que permitam processos efetivos, eficientes e competentes para aprender a ler”, complementa.
Thaiane Pereira, coordenadora de projetos do Todos pela Educação, ressalta que o processo de alfabetização, independentemente da metodologia aplicada, está muito centrado na figura do professor. “Com a pandemia, assim como todas as outras etapas escolares, a alfabetização também sofreu muito, e o processo de alfabetização depende muito da interação entre professor e aluno”, pontua. “Previamente a desigualdade já era muito presente no sistema educacional. A pandemia reforçou o quanto a gente ainda tem essas lacunas entre os alunos dentro do sistema educacional. O quanto alguns alunos têm muito mais vantagens por terem nascido no CEP X ou Y”, avalia.
Outro ponto que ficou evidente com a pandemia é a dificuldade de acesso à tecnologia para crianças de famílias mais pobres. “É preciso considerar que a questão não é somente a oferta de aulas não presenciais, mas o acesso dos estudantes a esses meios tecnológicos. Grande parte dos estudantes de classes sociais mais pobres vive em um contexto de vulnerabilidade social. Agrega-se a essa realidade o pouco acesso à internet e a computadores, tablets e celulares”, pondera Xênia Mara Honório, coordenadora do programa de pós-graduação em Educação do Centro Universitário Estácio de Brasília.
Thaiane Pereira, do Todos pela Educação, considera fundamental o esforço em integrar alunos socialmente vulneráveis no ensino remoto. “É importante que o sistema de ensino continue tentando traçar soluções para chegar a essas crianças e desenvolver a alfabetização da melhor forma possível, porque o cenário já era bem preocupante prévio da pandemia”, destaca Thaiane. Segundo a especialista, a última avaliação nacional de alfabetização é de 2016. “Está um pouco ultrapassada, mas o que os dados mostram é que 50% das crianças não atingem aos níveis adequados de leitura ou de matemática até os 8 anos. Isso é bastante preocupante, é uma tragédia silenciosa, porque a alfabetização é o primeiro de todos os outros processos que vão se desencadear”, explica.
Esforço
“Enquanto não temos um horizonte de quando as aulas voltarão a ser presenciais, e isso não depende de uma decisão de um secretário de educação, mas de uma situação maior, cabe aos secretários de educação e às redes fazerem ações para viabilizar a participação desses alunos nas aulas remotas.” Sobre o cenário pós pandemia, Thaiane acredita que é preciso um esforço em avaliar o que foi de fato aprendido pelas crianças durante o período que as atividades remotas são ministradas. “Precisamos começar a pensar desde já programas de reforço e recuperação, assim que for possível, ou até antes, devemos ter diagnósticos que consigam avaliar o que as crianças aprenderam e não aprenderam nesse período, o que foi possível fazer, o que não foi possível, e, a partir daí, traçar um plano de reforço e recuperação para esses alunos”, sugere.
A professora Xênia Mara Honório acredita que é preciso, com urgência, repensar a educação, levando-se em conta o paradigma da pandemia. “Uma situação é certa: as perdas pedagógicas nesse período de distanciamento social são amplas e perspectivas de recuperação dessa defasagem carecem de pesquisas mais aprofundadas”, pondera. Apesar das perdas, a especialista elogia a atuação dos professores, que têm se dedicado a minimizar o impacto dessa nova realidade. “Os docentes estão investindo na própria formação, reinventando as práticas pedagógicas, reorganizando o planejamento e superando expectativas no que se refere à oferta de atividades educacionais adaptadas ao contexto atual. Certamente, estes serão profissionais fundamentais na reconstrução educacional do país após o período de pandemia”, acredita a especialista.
Francisco Herrera elenca uma série de mudanças necessárias. “Tanto no macro quanto no micro devemos pensar em ações concretas. Análise das formas como planejamos o sistema geral de ensino; produção de sistemas curriculares contextualizados e construídos a partir das dinâmicas e características específicas, e não modelos gerais universalizantes”, descreve. Ele afirma, ainda, ser fundamental a inclusão social nesse processo: “(É preciso) propor modelos que incluam todas as camadas socioeconômicas, com valorização da leitura, e não apenas modelos para alguns tipos de famílias com recursos suficientes. As políticas públicas e as ações específicas e corriqueiras devem ser para todos”, conclui.
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A "chave" perdida na infância
O Brasil conta com 11 milhões de analfabetos acima de 15 anos. Há uma forte correlação entre esses cidadãos e a pobreza. Segundo levantamento publicado em julho deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais no país ficou em 6,6% em 2019. Em relação a 2018, a estatística caiu 0,2 pontos percentuais, o que equivale a cerca de 200 mil analfabetos a menos em 2019. Mais da metade dos iletrados vive na região Nordeste, e 21,7% residem no Sudeste. “Norte e Nordeste são regiões com maiores indicadores, onde as taxas são o dobro da média brasileira. Isso impacta nos processos de inclusão social, nos índices de desigualdade, nas possibilidades de promoção social e na perpetuação de condições de pobreza que se reiteram de geração em geração”, analisa Francisco Herrera.
“A alfabetização é a “chave de ouro” para que a criança entre no mundo convencional e social. Sem o acesso aos sistemas notacionais (os códigos que compõem a escrita), ela não poderá se aproximar do jornal, da lista, das instruções, da receita de cozinha e dos livros. Tudo isso a afastará das narrativas e histórias e a deixa excluída e marginalizada”, avalia o especialista. “Se a criança, nos primeiros anos, não consegue acessar os sistemas convencionais e de códigos, estaremos diante de um potencial “abandonador” da escola. O aluno não achará graça, não conseguirá entender o que se fala, se sentirá separado, segregado. E ele, de fato, será, porque, normalmente, ninguém o vê na sala de aula. Ele, algum dia, não voltará. Passará a fazer parte de outras dinâmicas, nas quais a marginalização e a pobreza o engolirão. Nunca mais iremos saber nada dele. Ele será um dos “invisíveis” do Estado brasileiro”, alerta o especialista em educação.
Recortes
Na análise por raça, pretos e pardos têm 5,3% a mais de analfabetos do que os brancos. A taxa de analfabetismo também aumenta entre os brasileiros mais idosos. Entre a população com 60 anos ou mais, o percentual chega a 18%, quase 6 milhões de pessoas. Agregando-se a cor da pele, a diferença torna-se gritante: entre pessoas pretas ou pardas com mais de 60 anos, a taxa de analfabetismo chega a 27,1%, enquanto que, entre os brancos, o índice é de 9,5%. “No caso da alfabetização de jovens e adultos, é importante mencionar a dificuldade natural desses estudantes em acessar os meios digitais de informação e comunicação. Boa parte das competências a serem desenvolvidas nesta modalidade estão voltadas para a ampliação do letramento digital, fato que fica bastante desafiador se pensarmos em um contexto remoto de ensino”, pondera a professora Xênia Mara Honório.
Pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), divulgada em 2017, revelou que mais da metade dos estudantes do 3º ano do ensino fundamental possuem nível insuficiente de leitura e em matemática. “É cruel ter um contingente tão grande de crianças que não foram alfabetizadas na idade adequada”, lamenta Thaiane Pereira, coordenadora do Todos pela Educação. Ela explica que uma criança com alfabetização deficiente sofrerá muitos impactos na vida escolar. “Dificilmente ela adquirirá outras habilidades mais complexas se não tiver o domínio total da questão de entender textos. Alfabetização, como primeiro passo de uma jornada escolar, é absolutamente imprescindível”, define Thaiane Pereira.