Em um país onde a violência matou 628 mil pessoas em 10 anos, com uma média de 60 mil homicídios por ano, sendo que a metade das vítimas de assassinatos são jovens, a discussão sobre melhoria da segurança pública é premente, sobretudo quando o sistema policial remonta ao século 19. Para debater o futuro do serviço público essencial a todos os brasileiros, o Correio realizou, nesta quinta-feira (10/9), um webinar com parlamentares, representantes das forças policiais e especialistas.
Durante o Correio Talks Modernização da Segurança Pública do Brasil, o advogado criminalista Roberto Darós descortinou o atraso do modelo do país ao lembrar que Dom Pedro II dissolveu milícias e criou duas polícias, iniciando o ciclo incompleto, alvo de críticas por ainda permear as corporações. Como se não bastasse, o inquérito policial, como é hoje no Brasil, foi instituído em 1871, pela Princesa Isabel. “A promulgação da Constituição Federal vai completar 32 anos, em outubro, sem que o capítulo reservado à segurança pública tenha uma lei orgânica para cada uma das organizações policiais”, disse.
Luís Antônio Boudens, presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), pontuou que a modernização necessária passa pela mudança da estrutura de carreiras, pelo fim da divisão das polícias e pela eliminação da burocracia. Para o deputado Ubiratan Sanderson (PSL-RS), só com a reformulação do sistema, o país terá condições de enfrentar o crime organizado.
O senador Marcos do Val (Podemos-ES) destacou que a sociedade tem sua parcela de culpa. “Quem consome droga tem responsabilidade no ciclo de violência”, ressaltou. Apesar de todos concordarem que a modernização é urgente, o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-RJ) disse não ver força política no governo de Jair Bolsonaro para combater as questões relativas à segurança pública.
32 anos de defasagem policial
Em um momento em que se discute a modernização das corporações policiais, é preciso lembrar que a Constituição Federal completa mais um aniversário, em outubro, sem que o capítulo reservado à segurança pública tenha uma lei orgânica implementada, observou o advogado criminalista Roberto Darós durante o debate. “Estamos vivendo a falência da segurança pública, porque são 32 anos de defasagem. O Congresso deve à sociedade brasileira a regulamentação da lei orgânica para cada uma das organizações policiais”, afirmou.
O especialista desnudou o atraso do modelo do país ao lembrar que Dom Pedro II dissolveu milícias e criou duas polícias, o que se mantém até hoje. Além disso, lembrou, o inquérito policial, como é hoje no Brasil, foi instituído em 1871, pela Princesa Isabel. “Passou da hora de o país modernizar a segurança pública. Mas isso não significa comprar mais equipamentos e fazer concursos, isso são insumos. Basta uma análise superficial para perceber que a atividade policial é ineficiente”, destacou.
Segundo ele, 60 mil homicídios por ano e 500 policiais mortos são resultado de um patrulhamento ostensivo malfeito e insuficiente. O reflexo dessa estrutura antiga e pouco ágil, conforme Darós, é que do total de inquéritos policiais abertos, em apenas 8% define-se autoria e materialidade. “Desses, só em 5% o Ministério Público entende que há prova suficiente para instaurar o processo. Aí, o Judiciário condena apenas 2%. Qualquer cidadão que se empenha em ser criminoso no Brasil tem a certeza da impunidade”, opinou.
Darós destacou, também, que são investidos 6% do Produto Interno Bruto (PIB) em segurança pública. “Mas a segurança beira o caos, porque os recursos são mal geridos por gestores incompetentes”.
Improviso
Na opinião do advogado, que também fez carreira policial, só é possível para uma corporação realizar um trabalho eficiente com base na carreira única, ocupando cargos de comando por meritocracia. “Hoje, é uma completa improvisação. Enquanto o Congresso traz a polícia penal, beneficiando agentes e transformando-os em policiais, há guardas civis municipais que acabam entrando na área da Polícia Militar. É preciso definir área geográfica. Também sou favorável à especialização”, defendeu.
Apesar do cenário negativo, o advogado não perde a esperança de melhorar o setor. “Há interesse do Executivo. É uma caminhada difícil, mas não há como fugir disso. O cidadão não precisa de sentimento de segurança, ele precisa de estado de segurança, não só da sensação. Passou da hora de o Congresso redimensionar o capítulo da lei orgânica das polícias, definir ciclo completo de carreira”, reforçou. O especialista sustentou que o setor só vai funcionar quando os gestores entenderem que investigação criminal se dá por equipes transdisciplinares. “Tenho esperança de sensibilizar nossos representantes.” (SK)
Burocracia, atraso e ineficiência
Enquanto o crime organizado modernizou-se, com formatações até empresariais, a polícia está tão atrasada que os brasileiros não confiam na sua capacidade de solucionar os problemas de segurança pública. A constatação é de Luís Antônio Boudens, presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), para quem há uma sensação de que os crimes não são punidos no Brasil.
Segundo ele, a federação tem levado ao Congresso várias propostas de modernização da segurança pública. “Verdadeira, não apenas de floreios, como compra de equipamento, viatura, concurso. Isso é dia a dia normal. Temos que sair do lugar-comum e deixar claro o que serve realmente para modificar, principalmente a parte preventiva e a de investigação”, ressaltou o especialista.
A modernização necessária passa por três aspectos, conforme o presidente da Fenapef. “Precisamos mudar a estrutura de carreiras, com porta única de entrada para as polícias civil, militar e federal. Hoje, no Brasil, são várias portas de entrada, cada uma com um tipo de exigência”, afirmou. Boudens comparou a organização com o sistema da Polícia Rodoviária Federal (PRF), no qual há apenas uma entrada. “Foi a que mais cresceu nos últimos anos. Implementou nível superior como requisito mínimo de ingresso, cuidou internamente de sua estrutura e vem deslanchando”, comentou.
Segundo ele, no Brasil, criou-se a ideia de dar salários iniciais mais altos para alguns cargos, o que atrai “castas do direito”. “Isso faz com que o direito tenha prevalência ao conhecimento multidisciplinar. Quando o certo seria uma entrada e evolução na carreira conforme o mérito”, sustentou.
Desconfiança
A segunda mudança essencial para a modernização, continuou Boudens, seria mexer na parte estruturante. “Nos estados, a Polícia Militar é ostensiva, e a Civil, de investigação. Essa divisão acaba propiciando duas meias-polícias”, disse. O terceiro ponto é a eliminação da burocracia. “As polícias de investigação (Federal e Civil) herdaram toda a burocracia do sistema judiciário. O brasileiro nem procura delegacia, porque não confia na polícia. Não acredita que seu bem será retornado. O índice de solução no caso de homicídio é 8%, imagina roubo de celular. O cidadão não confia que a polícia vai trazer resultado”, reiterou.
O dirigente ressaltou, ainda, que existem barreiras corporativistas. “Há uma tentativa de manter o status quo, é uma luta corporativista. Mas, com números tão vergonhosos, está evidente a necessidade de modernização”, disse o especialista. “Nos colocamos à disposição do Congresso e do Poder Executivo para levar essas propostas de modernização”, completou. (SK)
Usuário alimenta violência
Ressaltando as competências de diferentes entes na segurança pública brasileira, o senador Marcos do Val (Podemos-ES) disse, durante o debate do Correio sobre a modernização da segurança pública, que a sociedade precisa compreender suas responsabilidades quando se fala sobre violência no país. O parlamentar citou, especificamente, a questão do consumo de drogas ao abordar o tema. “A sociedade não se responsabilizou. Aqueles que consomem drogas não entenderam a responsabilidade neste ciclo de violência. Se não consumisse, não haveria comércio, tráfico e briga de território.”
De acordo com Marcos do Val, quem consome drogas, muitas vezes, vive em “outra realidade”, fazendo uso de entorpecentes aos fins de semana sem pensar que estão contribuindo com a criminalidade. “A sociedade precisa entender que, se consumir droga, que seja um baseadinho, você é corresponsável pelos assassinatos e crimes que acontecem na sua cidade e no Brasil”, frisou.
Ao falar sobre possibilidade de liberação das drogas, o senador do Espírito Santo se contrapôs à ideia citando o consumo de álcool. “Foi liberado na década de 60 e a violência continua, principalmente nas famílias, violência contra a mulher”, ressaltou. O parlamentar sustentou, ainda, que, além da sociedade, os políticos e os próprios profissionais da segurança pública, também, precisam ser responsabilizados pelo cenário de violência no país.
Marcos do Val frisou a importância de se investir na Polícia Civil, responsável pelas investigações no âmbito do estado, e criticou os governos estaduais, “que preferem investir na Polícia Militar”. E completou: “Coloca 3 mil PMs, um em cada esquina, recebendo uma miséria por uma função tão perigosa, e não entende que aquilo não dá a efetividade que se daria caso investisse na Polícia Judiciária.”
De acordo com ele, o trabalho da Polícia Federal passa “uma sensação de punição”. “Se você cometer um crime de corrupção no Brasil, a sensação é de que a Polícia Federal vai bater à sua porta às 6h. Isso tem que partir para outros setores, principalmente o da Polícia Civil. Mas os governos não investem na Polícia Civil, porque ela (a sociedade) não vê. Igual investir em saneamento básico: não dá voto, ninguém vê, porque está embaixo da terra”, sustentou.
Carreira única
Outro ponto levantado pelo senador é a necessidade de se criar uma carreira única das polícias no país, em vez de apenas um tipo de carreira para cada carreira. Citando o exemplo dos Estados Unidos, ele expôs que no país norte-americano o policial entra como patrulha, capacita-se, faz cursos, e segue para atuar na investigação. E, aos poucos, torna-se um chefe de polícia. “Lá, você passa por todos os setores, sabe como funciona patrulhar na rua, entende as dificuldades.”
Ir direto à fase de acusação
Integrante da Polícia Federal licenciado para o exercício do mandato de deputado federal, Ubiratan Sanderson (PSL-RS) defende o fim do indiciamento, o que considera uma etapa desnecessária, que tira agilidade da ação policial. “Não vejo necessidade de continuar com o instrumento do indiciamento. Ao levar a polícia investigativa para essa fase, perde-se tempo e gasta-se dinheiro. Poderíamos trabalhar para elucidar mais casos e crimes. Os índices de elucidação não são bons”, levantou.
Segundo ele, o processo pode ir direto para a acusação. “Aí, o acusado passa a figurar como réu, com direito a plena defesa. E, na triangulação defesa, Ministério Público e Judiciário, temos o caminho para a Justiça”, disse. Sem agilidade, “o processo, hoje, permite que casos graves como homicídios sejam julgados em cinco, seis anos, até mais. Não há justiça sendo aplicada nesses casos”, acrescentou.
Para o deputado, é necessária uma série de reformulações. “Ciclo completo é absolutamente necessário. Além da eficiência, traz economia aos cofres públicos”, destacou. Como está hoje, o agente precisa levar a ocorrência para uma reanálise, que tem de ser feita por uma autoridade policial, que vai dizer se há crime e qual a tipificação penal a ser adotada. “Se foi a PRF, por exemplo, que fez o flagrante, todo o seu trabalho não será levado em consideração”, explicou.
O parlamentar lembrou que há inúmeras propostas no Congresso para modernizar a segurança pública e observou que a PEC 168/2019, do deputado Aluisio Mendes (PSC/MA), busca tornar o ciclo completo nas polícias. “A Câmara tinha o objetivo de entregar um substitutivo ainda em 2020, para um código penal mais ágil, que valorize o resultado e menos a prática cartorial e burocrática, que torna o processo moroso.”
Reforma administrativa
Indagado por internautas que acompanhavam o Correio Talks se a reforma administrativa proposta pelo governo afetaria as polícias brasileiras, Sanderson disse que são carreiras de Estado e que, portanto, ficarão como estão. “As corporações federais continuarão com estabilidade. Porque uma equipe que está investigando o governo não pode trabalhar se puder ser simplesmente exonerada. A reforma separa funções típicas de Estado”, explicou.
Outra defesa do deputado é que o município participe da segurança pública, hoje um serviço prestado pelos estados e pelo governo federal. Nas principais cidades brasileiras há guarda municipal, mas não têm poder de polícia. “Na maior parte dos países, há envolvimento do município. Menos no Brasil”, disse. Segundo Sanderson, a modernização da segurança pública é urgente. “Temos que enfrentar cada um desses gargalos, procurando, sempre com o debate democrático, encontrar o melhor modelo.”
Risco de virar um narcoestado
Em sua fala no seminário virtual, o deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP) ressaltou o risco de o Brasil se tornar um “narcoestado”, afirmando que há, no país, políticos sendo alimentados pelo tráfico de drogas. “Temos políticos financiados por narcotraficantes, e esse número é sempre alto”, disse. De acordo com ele, a situação no Brasil é crítica e “não evoluiu desde 2014, desde o impeachment da (ex-presidente) Dilma Rousseff”.
“Estamos pior em questões de Justiça, de leis, de segurança pessoal e até mesmo de dar mais poder às polícias. Ou seja, estamos regredindo. E eu não vejo que o atual governo tenha força política, em função de uma série de dinâmicas que não vale a discussão nesse painel. Mas vemos que os bandidos estão ganhando, também, o jogo político”, disse.
Sem citar nomes, o parlamentar do PSL garantiu que o “narcotráfico já financia políticos”. “Há juízes coniventes, há leis sendo passadas que são coniventes com os crimes e coniventes, também, ao facilitar a vida do criminoso e travar a vida do policial. Há empresários do Brasil e de fora, também, que têm interesse no narcotráfico. Eles têm interesse em ver o Brasil desandar, como na situação da Venezuela, da Líbia, da Síria, onde não há Estado”, declarou.
O parlamentar ainda criticou as prioridades do Congresso. “Temos, aí, tramitando uma comissão para liberalizar droga, a produção, distribuição e comércio de droga. Isso é um descalabro e uma inconsciência histórica inacreditável. Por que houve agenda política para instalar essa comissão e não houve agenda política para instalar uma comissão para avaliar uma PEC de segurança pública?”
O deputado federal disse que “o sistema ainda está agindo contra a sociedade brasileira e talvez muito mais do que esteve”. Ele ressaltou a importância de haver uma reforma interna das polícias, “tanto do ciclo completo quanto da carreira única”. “Eu acho que já se está em um debate bem maduro, e nada melhor do que os policiais para trazer isso à tona”, frisou. Para ele, cabe aos policiais tomarem a liderança do processo.
Armas
Bragança afirmou ser preciso entender a dinâmica do problema da segurança pública e citou o Rio de Janeiro, trazendo como proposta de solução ao estado a distribuição de propriedade privada e o armamento da população. “O Rio está se tornando um não estado, uma miniVenezuela dentro do Brasil, onde as facções já tomaram conta. Mas o que seria a grande revolução, aqui, para que não haja necessidade de fazer uma intervenção policial nesse território? Seria ter distribuição de propriedade privada, dessas áreas urbanas tradicionalmente ocupadas. Com as pessoas com sensação maior de propriedade do seu território, elas naturalmente combaterão e vão querer proteger e melhorar aquela região. Para isso, precisam ter liberdade para poder adquirir armas.” (ST)