Sociedade

Poucos negros no poder e violência policial evidenciam racismo estrutural no Brasil

Baixa presença de negros em cargos de poder e violência policial contra população afrodescendente evidenciam racismo estrutural no Brasil

João Pedro Matos, 14 anos; Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos; Eduardo de Jesus, de 10 anos… A lista de vítimas negras que tiveram a vida interrompida no Brasil é extensa. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no país. Em 2018, 75,7% das vítimas de homicídios eram pessoas negras. Elas são de todas as idades e sofrem não apenas quando são mortas, mas por toda a trajetória de vida, desde ofensas gratuitas, baseadas simplesmente na cor da pele, até decisões judiciais com forte teor racista. O racismo está enraizado nos indivíduos, no idioma, na política, na educação, nas profissões, nos estereótipos.

A historiadora Yordanna Lara Pereira Rego explica que esse racismo estrutural surgiu no período das colonizações como uma política de governabilidade, guardando relação direta com a formação do capitalismo, que se inaugurou também naquela época. O conceito de raça tem origem no novo Estado burguês, para legitimar a hierarquização e a manutenção da hegemonia do branco europeu, diz ela. “O racismo é a base de fundação do modelo de Estado e de economia que vivemos hoje. Como resultado, as instituições externam violentamente o racismo de forma cotidiana, e a sociedade o reproduz.”

Em 25 de maio, o norte-americano George Floyd, de 46 anos, morreu asfixiado, após um policial se ajoelhar sobre seu pescoço por mais de sete minutos. A morte dele causou indignação e deflagrou o movimento Vidas Negras Importam, que teve repercussão em vários países. Dois meses depois, outro caso nos Estados Unidos foi marcado pela brutalidade: Jacob Blake, de 29 anos, foi baleado sete vezes nas costas pela polícia de Wisconsin, quando entrava no carro em que estavam os três filhos. 

 

Gomez/CB/D.A Press - Crime de racismo

 

Normalização

Mas não é preciso viajar ao exterior para constatar a presença do racismo na sociedade. No Brasil, esse tipo de violência é normalizado, e a realidade também assusta. João Pedro Matos, de 14 anos, recebeu um tiro de fuzil nas costas dentro da própria casa, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, durante uma operação policial na comunidade. A pequena Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, também morreu por um tiro nas costas, quando estava com a mãe dentro de uma Kombi no Conjunto de Favelas do Alemão, no Rio, em setembro de 2019. A bala que matou a menina teria vindo de uma arma da polícia, que atirou contra uma moto, mas atingiu mais uma criança negra.

No processo de hierarquização das humanidades que sustenta o racismo, a negritude é construída como perigosa — e o que é perigoso para sociedade precisa ser exterminado. A própria educação a que mães de filhos negros são obrigadas a recorrer evidencia quão perverso é esse ciclo vicioso. “Não saia de casa sem documentos, não use tal roupa, não corra, não ande sozinho são recomendações dolorosas que a branquitude não experimenta”, exemplifica Yordanna, que é também pesquisadora de relações étnico-raciais, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Mas, se essa é uma questão recorrente há séculos, por que ganhou tanta repercussão somente agora? Segundo Yordanna, devido ao maior acesso da população negra à universidade e a espaços políticos e à crescente representatividade de pessoas negras na mídia, frutos da luta de movimentos sociais, como o Movimento Negro Unificado (MNU). “Estamos ocupando espaços que, antes, eram impensáveis para a população negra, cobrando uma democracia real, resistindo ao racismo em todas as suas dimensões — estrutural, institucional e individual”, afirma.

Foi dentro das próprias comunidades negras, e das redes de apoio delas, que foram criadas e desenvolvidas as medidas mais eficientes contra o racismo. “Que são, também, resultado de medidas anteriormente tomadas, como as cotas raciais nas universidades, em concursos públicos e processos políticos”, pontua a historiadora. No entanto, o caminho ainda é longo e passa pelo reforço das políticas de cotas. “São elas que estão garantindo a presença de pessoas negras em espaços de construção e legitimação de conhecimentos, de decisão política e midiáticos”, diz Yordanna.

 

Pilar de sangue

Para especialistas, é no preconceito contra pessoas negras que boa parte da vida em sociedade se estrutura. “O racismo no Brasil não é apenas uma ação individual, nem apenas uma ação institucional. Ele organiza as nossas relações sociais, políticas e econômicas. O racismo atravessa nossas relações subjetivas, ele forma as nossas subjetividades”, explica a professora Andreia Marreiro, presidente do Instituto Esperança Garcia, doutoranda e mestre em direitos humanos pela Universidade de Brasília.

Com isso, o racismo acaba orientando tanto ações conscientes quanto inconscientes. “No momento pós-abolição, foi construída na intelectualidade brasileira, inclusive, um mito da democracia racial”, explica Andreia. “Politicamente, tivemos um processo de embranquecimento da população, com o incentivo da imigração de europeus. De outro lado, um projeto de afirmar que o povo brasileiro era cordial, que vivia harmonicamente com as diferenças”, conta.

Os prejuízos desse imaginário da democracia racial passam pela negação do problema. “Esse mito vai dizer que o racismo não existe, que o racismo está nos olhos de quem vê, que as pessoas que denunciam racismo estão de ‘mimimi’. São falas de silenciamento, tal qual a de que ‘em briga de marido e mulher, não se mete a colher’. Elas não assumem o problema”, completa Andreia. “Mas, sem reconhecer essa realidade, cria-se a dificuldade de enfrentá-la.”

No entender de Andreia, para combater o racismo estrutural, não basta denunciar episódios individuais do cotidiano. “É preciso construir um outro projeto de sociedade, fazer rupturas muito profundas”, afirma. “O racismo forja as relações econômicas e todas as relações sociais e políticas, por isso vemos uma baixa representatividade de pessoas negras na política, por exemplo”, pondera, destacando a importância da diversidade nas profissões e nas formas de poder.

O Estado que mata

A violência é um problema recorrente no Brasil, em especial para a população negra. Em 2018, 75,7% das vítimas de homicídios no Brasil eram negras. No total, o país registrou quase 58 mil homicídios, o equivalente a 27,8 mortes por 100 mil habitantes. Entre as mulheres, são as negras que correspondem à maior fatia dessas mortes. Elas são 68% do total de mulheres assassinadas e são, também, as que mais sofrem com os feminicídios.

Os dados integram o Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, publicados no Atlas da Violência 2020, produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). O levantamento mostra, ainda, que, entre os negros, a taxa de homicídio aumentou 11,5%, na última década, enquanto caiu 12,9% na população não negra.

Em entrevista sobre uma pesquisa feita pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) e pelo Datalab Fogo Cruzado — RJ, a mãe de João Pedro, Rafaela Matos, comentou o assassinato do filho. “Meu filho foi assassinado durante uma pandemia. Eu estava mantendo meu filho dentro de casa. Estava protegendo o João de um vírus e ele foi morto por um vírus muito pior, o vírus do Estado que mata”, disse.

Os dados do levantamento feito no Rio de Janeiro analisam os números do período de 31 dias, a partir 5 de junho deste ano, data em que foi suspensa a ação da polícia em comunidades da capital fluminense, por decisão liminar do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF); e o período de 2007 a 2019. De acordo com o levantamento, no período referido, 30 vidas teriam sido poupadas. Ampliando esse número para o espaço de um ano, seriam 360 mortes evitadas simplesmente suspendendo operações daqueles que deveriam proteger a todos, independentemente da cor da pele, da crença ou da classe social.

“A gente luta para que a violência policial seja nomeada dessa forma, mas temos, dentro da própria estrutura jurídica, um modo de negar essa violência, por meio de uma figura chamada de auto de resistência”, pontua Andreia Marreiro, mestre em direitos humanos pela Universidade de Brasília. Ela destaca que “é urgente denunciar essa violência policial, que promove, nas periferias do país, um extermínio da juventude negra”. (MN e RR)