Semanas após o caso da menina de 10 anos estuprada pelo tio e submetida a um aborto legal ser alvo de discussões, uma portaria do Ministério da Saúde provocou novas controvérsias sobre o tema. Publicado ontem, o documento obriga os profissionais de saúde a relatarem à polícia quando uma vítima de estupro desejar realizar um aborto legal. Devem, também, “informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada”. Para especialistas, a nova regra pode coagir as vítimas que procuram uma interrupção de gravidez permitida por lei.
O texto muda as regras de 2005, quando cabia à mulher ou à criança fazer a denúncia. Além disso, altera o “termo de consentimento” assinado pela vítima, dando mais detalhes sobre os efeitos adversos da operação de retirada do feto às vítimas de estupro. Referência na discussão sobre igualdade de gênero e saúde pública da mulher, a antropóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília Debora Diniz usou as redes sociais para criticar a portaria, que descreveu como “perversa” ao direito do aborto legal, colocando as vítimas em posição de “maus-tratos”.
“Uma delas é o uso de tecnologia médica para assustá-las: a oferta de visualizar o embrião ou feto não é para cuidar da vítima, mas para ideologizar o aborto”, criticou, afirmando que esta é uma forma de torturá-las. Para Debora, a portaria veio como “resposta à menina de 10 anos que abortou”. Além disso, afirmou que instruções confundem “profissionais de saúde com profissionais de segurança pública”.
No Brasil, a interrupção da gravidez é permitida quando a gestação implica risco de vida para a mulher, se é decorrente de estupro e no caso de anencefalia. Há semanas, o aborto realizado em uma menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada por um tio durante anos motivou grupos favoráveis e contrárias à interrupção da gestação a se manifestarem na frente do hospital público onde a criança foi internada para a cirurgia de retirada do feto.
A resposta contra a portaria também veio do Congresso, com a apresentação de um projeto de decreto legislativo para sustar a nova regra. A proposta de sustar a portaria foi apresentada pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) em conjunto com outras nove deputadas da bancada feminina da Câmara dos Deputados. Na justificativa, as parlamentares interpretam a mudança como uma reação ao caso da interrupção da gravidez da menina de 10 anos e “não com a base técnica que deveria orientar as políticas públicas”.
Segundo as deputadas, a revitimização é constante no trajeto para que as mulheres façam valer a opção do aborto legal. “Qualquer norma que ofereça constrangimentos para o exercício de um direito deve ser prontamente contestada”, complementam.
Exonerações
Questionado se a mudança trazida com a portaria não funcionaria como uma maneira de intimidar a vítimas e, consequentemente, acabar inviabilizando solicitação do aborto legal, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, defendeu que se trata de uma atualização dentro da lei. “A portaria vem simplesmente para adequar uma normativa do SUS a uma legislação existente. O objetivo principal do legislador quando optou por essa situação foi proteger a integridade da mulher, proteger essas gestantes”. Reiterou, ainda, que as mulheres “não devem se acovardar” em denunciar os agressores.
Quem completou a fala foi o secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Parente. “Antigamente, até 2018, (a denúncia do estupro) dependia do desejo da mulher. A partir da nova lei, não mais. Qualquer profissional que saiba disso é obrigado a notificar. Isso é importante não só para proteger aquela mulher, muitas vezes crianças com estupros continuados que passam por sistemas de saúde e os profissionais não denunciam. Então é fundamental a denúncia para proteger aquela criança, aquela mulher e também a sociedade, porque, geralmente, o estuprador não ficou só em uma vítima”, defendeu.
Um dia antes da publicação, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, chegou a negar que o governo federal traria mudanças na legislação sobre aborto legal. “Não, o governo Bolsonaro não vai apresentar nenhuma proposta para mudar a legislação atual de aborto. Isso é um assunto do Congresso Nacional”, disse.
Antes mesmo da discussão ganhar destaques nas últimas semanas, exonerações no Ministério da Saúde foram justificadas nos bastidores como fruto de divergências ideológicas entre servidores e o governo. Em junho, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, exonerou técnicos e bolsistas da Saúde que assinaram uma nota técnica sobre acesso à saúde sexual e reprodutiva na pandemia que, na interpretação do presidente Jair Bolsonaro, sugeriria a legalização do aborto.
“As políticas públicas de saúde continuam sendo mantidas, havendo troca ou não. O país não perde quando troca um presidente da República, o ministério não perde quando troca o seu ministro. Da mesma forma, é com os cargos de direção, secretários e os técnicos-chefe de departamentos. De forma alguma houve prejuízo na assistência e na execução das políticas públicas, seja para pacientes gestantes ou não”, alegou Franco.