Investigação da Polícia Civil de São Paulo identificou atividades de um ramo do Primeiro Comando da Capital (PCC) cujo nível de organização e penetração no poder público é semelhante ao das máfias italianas. Ela mostra que bandidos da facção não só dominaram o setor de saúde de uma cidade da Grande São Paulo, como também comandavam a coleta de lixo. E, assim, fraudavam licitações, empregavam seus protegidos no governo, ameaçavam concorrentes e até desviavam medicamentos comprados pelo município para misturar à cocaína vendida pelo grupo.
A Operação Soldi Sporchi (dinheiro sujo, em italiano), deflagrada pelo 4º Distrito Policial de Guarulhos, desbaratou a organização criminosa que agia em Arujá, cidade com 90 mil habitantes. De acordo com o delegado Fernando José Santiago, o esquema tinha a participação do vice-prefeito da cidade, Márcio José de Oliveira (PRB), que chegou a ser preso no dia 30, com outros sete acusados de envolvimento no esquema que nasceu como forma de lavar dinheiro do tráfico de drogas e agregou à organização criminosa os crimes surgidos pelo domínio da administração da cidade.
Para especialistas em crime organizado ouvidos pelo Estadão, o esquema é muito semelhante ao mantido por organizações mafiosas, como a Ndrangheta, a máfia de origem calabresa, hoje a mais poderosa da Europa. "Nunca havia visto nada parecido", afirmou o promotor Lincoln Gakyia, que há mais de 15 anos investiga as atividades da cúpula do PCC. O grupo teria recebido R$ 77 milhões em contratos da prefeitura. O acusado de liderar o grupo era Anderson Lacerda Pereira, o Gordo, um dos maiores do PCC.
Gordo está foragido. Ele manteria ligações com André Oliveira Macedo, o André do Rap, um dos maiores traficantes do PCC. Preso em 2019, André mantinha ligações com a Ndrangheta para enviar droga à Europa e com membros do cartel de Sinaloa, o mais importante do narcotráfico do México.
De acordo com a polícia, Gordo é dono de um patrimônio que envolve sítios, casas, carros de luxo e embarcações. Além de políticos de Arujá, ele teria sido flagrado mantendo contatos com deputados de São Paulo. "Ele tinha o traficante colombiano Pablo Escobar como modelo. Tinha até um jacaré em uma de suas propriedades, um sítio", afirmou o delegado.
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Em Arujá, a ação do grupo começou em 2016, durante a campanha para prefeito, quando Gordo procurou o vice-prefeito da cidade, Márcio Oliveira. Ele ofereceu a Oliveira dinheiro para a campanha do prefeito José Luiz Monteiro (MDB) em troca da promessa de que, caso a chapa fosse eleita, teria o controle dos serviços de saúde e coleta de lixo da cidade. De acordo com o delegado, o bandido entregou ao candidato o dinheiro, mas o vice teria se apossado da quantia.
Após a eleição, Anderson passou a cobrar o cumprimento do trato. Segundo o inquérito, o vice Oliveira levou o prefeito Monteiro a uma reunião na casa de Gordo, onde, segundo relatos colhidos pela polícia, "havia uma quantidade razoável de pessoas em postura intimidatória". Lá, o prefeito teria tomado conhecimento do acordo feito pelo vice e, ao retornar à prefeitura, disse a auxiliares que, se o município não permitisse a entrada de pessoas jurídicas ligadas a Gordo nos contratos da saúde, "todos iriam morrer".
A partir daí, licitações da prefeitura passaram a ser fraudadas e direcionadas para empresas ligadas a laranjas de Anderson. A essa altura, Anderson já dominava 60 clínicas médicas e odontológicas em diversas cidades da Grande São Paulo que seriam usadas para lavar dinheiro. Primeiro, ele passou a dominar a coleta de lixo de Arujá. Para isso, montou uma empresa - a Center Leste - e a registrou em nome de laranjas.
Em 2018, o grupo do traficante resolveu expandir seus negócios com a prefeitura, passando a dominar dois institutos, usados como organizações sociais que deviam administrar um hospital e um posto de saúde da cidade. Gordo empregou nas entidades parentes e conhecidos de pessoas ligadas à organização, dominando setores essenciais, como o de compras.
"Não é exagero dizer que a organização criminosa é dona da saúde de Arujá", afirmou o delegado em seu relatório. De acordo com ele, o Hospital Maternidade Dalila Ferreira Barbosa e o posto de atendimento do Barreto "são administrados por laranjas e familiares de Anderson desde 2018". A gestão foi marcada por falta de manutenção de equipamentos, desvio de recursos, atraso no pagamento de funcionários e fornecimento de comida estragada. O contrato era de R$ 17 milhões.
O Estadão procurou o vice-prefeito de Arujá, Márcio Oliveira, e a prefeitura, mas não obteve resposta. O vice foi solto e responde às acusações de lavagem de dinheiro e organização criminosa em liberdade. O prefeito Monteiro não foi acusado nessa fase das investigações. A reportagem não conseguiu localizar a defesa de Gordo.
A investigação da Polícia Civil revelou a criação de toda uma cadeia logística que mesclava as atividades da organização dentro do poder público com os negócios do grupo ligados ao tráfico de drogas.
Na primeira fase da Operação Soldi Sporchi, os agentes descobriram que Gordo havia adquirido, em 2009, o controle de uma indústria química para ter acesso a insumos necessários para batizar a cocaína distribuída no Estado. Assim, o criminoso conseguiria desviar lidocaína e cafeína sem despertar a suspeita da polícia.
Ao assumir o controle do setor de saúde da cidade, a organização criminosa, segundo o delegado, manteve "o mesmo modus operandi". Mas a diferença, "é que, em vez de adquirir o controle de uma indústria química, hoje Anderson (Gordo) assumiu o controle de unidades de saúde e de todo o serviço público de um município inteiro".
Desta forma, conforme revela a investigação da polícia, o bandido comprava medicamentos como morfina e opioides (drogas com efeito analgésico semelhante ao do ópio) em grande quantidade e com o prazo de validade próximo do vencimento.
Pagava-se mais barato e deixava-se a droga vencer. O remédio com o prazo vencido se tornava lixo hospitalar e, assim, devia ser descartado. Mas, em vez de ser colocado pelos administradores do hospital e do posto em sacos habitualmente destinados ao lixo hospitalar, os remédios eram colocados em sacos de lixo comum - que, por sua vez, eram recolhidos pelos caminhões da coleta de lixo dominada pelo traficante de drogas. Com isso, em vez de ir para um aterro sanitário, o material era recuperado pelos criminosos para ser misturado com cocaína trazida da Bolívia e do Peru.
Os investigadores apreenderam com um dos acusados uma receita com instruções sobre como misturar as substâncias para batizar a cocaína e, dessa forma, aumentar o seu peso e, portanto, o lucro.
Com essa manobra, nos pontos de venda da droga só 20% do total entregue aos usuários era de cocaína. Além de morfina, os investigadores detectaram o desvio do remédio Fentanest, feito com o opioide cloridrato de fentanila, além de outros medicamentos misturados ao entorpecente.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.